Se a minha Igreja fosse assim…
Autor: Antônio Mesquita Galvão
Há dias assisti pela Internet ao teólogo Leonardo Boff. em uma entrevista lúcida e esclarecedora, concedida ao Canal Brasil em 2010, que pode ser vista no site http://www.vimeo.com/18918061, onde o ex-frei franciscano revela sua caminhada na Igreja e fora dela. Boff sofreu censura, foi mandado calar, proibido de escrever, perseguido dentro e fora da Igreja, sendo conduzido a uma renúncia de seu estado religioso, única alternativa que lhe foi deixada.
Frei Leonardo deixou de ser padre, mas não a tarefa de teólogo; continua dando aulas, escrevendo e ministrando palestras e conferências aqui e lá fora. Teve cassada sua cátedra, mas não puderem lhe tirar o carisma. Incapaz de dialogar e de buscar conciliação, a ala burocrática da Igreja, que antes mandava para a fogueira, modernamente silencia, tira espaços e expurga.
É pena notar que o saber de Boff foi desaproveitado pela Igreja. Ele foi elevado ao estado laico em 1982, há, portanto vinte e nove anos. Hoje, em plena atividade de seus setenta e três anos, poderia ter sido um bispo, quem sabe melhor – melhor mas menos submisso – que alguns que estão por aí, um superior na sua congregação ou desempenhando um cargo consultivo na Igreja.
Com Martinho Lutero († 1546) sucedeu algo semelhante. Mesmo sem querer ele se tornou o mentor de reforma protestante. Ele queria protestar contra fatos da Igreja que ele julgava incompatíveis com a fé cristã. Não foi sua intenção abrir uma dissidência na Igreja nem tampouco criar uma nova religião. O que aconteceu posteriormente foi fruto da intransigência e da falta de diálogo de alguns segmentos da nossa Igreja.
Lutero foi um teólogo brilhante, um pensador diferenciado e um músico emérito. Homem de profunda fé revelou um notável senso de piedade. Há tempos li um artigo de um escritor e jornalista italiano que o chamou de um “santo equivocado”, onde o periodista chega a dizer que os mesmos que o chamaram de herege um dia poderão declarar que ele é santo.
O fato é que Lutero disse – através de suas “95 teses” – a coisa certa, talvez na hora errada e para um auditório inadequado. Quem sabe publicou essas teses por não ter outro veículo que o quisesse escutar. Segundo a tradição luterana que celebra a persona Lutero, as “95 Teses” foram afixadas na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, em 31 de outubro de 1517.
Modernamente, tivemos e temos homens notáveis, como o padre José Comblin († 2011), que foi meu professor na Paraíba, que sofreu perseguições por parte das autoridades da Igreja. As ideias de Padre José o colocaram sob suspeita da ditadura e da ala conservadora da Igreja. Como era estrangeiro, foi expulso do Brasil pelos militares em 1971, tendo que se exilar no Chile durante 8 anos, onde também esteve à frente da criação de um seminário em Talca, em 1978.
Em seu livro A Ideologia da Segurança Nacional, publicado em 1977, ele desvendou (e desmascarou) a doutrina totalitária que servia de base para os regimes militares na América Latina. De volta ao Brasil, radicou-se no interior da Paraíba, onde fundou um seminário rural em Alagoa Grande, e esteve à frente da formação de teólogos leigos e animadores de comunidades eclesiais de base. Apesar de seu carisma e notório saber teológico, sofreu perseguições por parte da Igreja. Em seu sepultamento alguém afirmou: “como o profeta Amós, Comblin incomodava…”.
Outro também que não era bem visto pela corte vaticana nem pela direita da Igreja brasileira foi Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal Arcebispo de São Paulo. Nos “anos de chumbo” da ditadura foi uma das poucas vozes – junto com Dom Helder Câmara (de Olinda e Recife) e Dom José Maria Pires (da Paraíba) – que se insurgiram contra as torturas e arbitrariedades do governo militar (1964-1985).
Enquanto a maioria do episcopado silenciou, e outros tomavam chás nos palácios e merendavam nos quartéis, Dom Paulo e Dom José visitavam presos políticos e ajudavam a procurar desaparecidos. Para diminuir sua área de atuação e influência, Roma reduziu o tamanho de sua área de ação, dividindo a Arquidiocese de São Paulo em várias outras dioceses menores. Dom Paulo, Dom Helder e Dom José Maria Pires (o Dom Pelé) foram praticamente as únicas vozes respeitadas pelo governo militar, no negro período da ditadura.
Enquanto a maioria do episcopado silenciou, e outros tomavam chás nos palácios e merendavam nos quartéis, Dom Paulo e Dom José visitavam presos políticos e ajudavam a procurar desaparecidos. Para diminuir sua área de atuação e influência, Roma reduziu o tamanho de sua área de ação, dividindo a Arquidiocese de São Paulo em várias outras dioceses menores. Dom Paulo, Dom Helder e Dom José Maria Pires (o Dom Pelé) foram praticamente as únicas vozes respeitadas pelo governo militar, no negro período da ditadura.
Lamentavelmente, nossa Igreja que se diz “especialista em humanidade”, parece que não aprendeu a lidar com os problemas de seu público interno; não sabe fazer o “dever de casa”, pois não demonstra caridade e sensibilidade no trato com aqueles que se atrevem a dissentir. Como afirmou Padre Zezinho em seu site, “ultimamente a Igreja Católica não está sabendo muita coisa… Isso é delicioso! Faço parte de uma religião que admite que perdeu muito nos últimos anos e aceita reaprender. É a minha Igreja! Católica, Apostólica e Romana. Eu fico! Sereno e feliz, porque acho que vale a pena”.
Não sendo democrática, minha Igreja não sabe dialogar sem impor, nem interagir sem querer dominar. Ela não está aberta para a crítica. Quem critica se arrisca a sofrer represálias. Se for membro da hierarquia, sofrerá algum tipo de censura (como Boff e Ivone Gebara, por exemplo); se leigo, é capaz de ser excluído de algum ministério extraordinário ou eventual cátedra.
Eu faço da crítica, serena e honesta, a bandeira do meu profetismo. Como batizado fui ungido profeta, sacerdote e servidor. Assim como fui crítico em certo momento dos anos oitenta, contra alguns excessos dos seguidores da Teologia da Libertação, que se mostrava mais sociológica que teológica, mais política que eclesial e mais sectária que acolhedora (críticas que me valeram algumas dores de cabeça), hoje me sinto capaz e comprometido para criticar o que entendo que não está certo.
Minha Igreja é crítica com a sociedade, a família, a política, a economia, os costumes, mas sensivelmente acrítica quanto aos seus problemas e mazelas. Ou seja, gosta de criticar e julgar: nós escutamos isto todos os dias nas homilias de todas as missas, mas não admite receber nenhum julgamento ou comentário contrário. A nossa Igreja, vinte séculos depois de contemplada com a ata de fundação pelo Espírito Santo, ainda não aprendeu a conviver com a crítica e a diversidade, mesmo que honesta, justa e pertinente.
Em sua etimologia, a palavra crítica brota de crisis, crise, que nada mais é que um julgamento, uma ocasião para reflexão e decisão. Sempre que se faz uma crítica ocorre um julgamento, porque geralmente há uma crise. Eu não vou criticar a Maçonaria ou a Igreja Luterana, pois não faço parte de nenhuma dessas instituições, não conheço bem suas formulações e seria pretensioso e leviano fazer um julgamento a suas atuações. Mas quanto à minha Igreja me sinto a vontade em fazê-lo, pois sou membro dela desde o dia 13 de junho de 1942, quando fui batizado, e militante em várias de suas frentes pastorais e docentes há mais de cinquenta anos.
A crítica pode, se feita por quem tenha capacidade de fazê-lo, ser dirigida à Igreja pecadora (que sempre necessita de conversão e atualização) e jamais à Igreja santa (como a esposa que desceu do céu para cumprir a vontade do Cordeiro). O Espírito da Igreja é diferente da atitude humana de seus membros. Isto precisa ficar bem claro. É bom, também esclarecer que discordar não é não-amar. Criticamos e repreendemos um filho, mesmo amando-o.
Outro fator de desajuste se refere aos leigos. Estes têm um espaço limitado na Igreja, e o que possuem está sempre sob severa vigilância da chamada “hierarquia”. Há tempos houve um encontro que ia tratar do “protagonismo dos leigos”. Interessei-me pelo conclave. Depois desisti de comparecer, quando vi que os palestrantes e assessores eram padres e religiosas. Numa cidade, por aí, quem coordena a “pastoral familiar” é uma religiosa. Agora em junho assisti, pala Rede Vida – uma televisão que só privilegia produções clericais – alguém falando sobre uma “comissão para o laicato”, onde a cúpula é toda composta de bispos.
Muita gente mudou e continua mudando de religião porque não acreditou na nossa fala; muitos foram para outras Igrejas porque foram seduzidas pela fala do pastor de lá. Trata-se de um fenômeno natural. Nem todos os convertidos a uma religião são convertidos a Deus. Tem os atraídos, os encantados, os que curtem… Conheci jovens que eram fanáticos por seu “movimento”, que lhes permitia tocar violão em uma missa do fim-de-semana, fazer ruidosas reuniões e promover encontros periódicos. Quando houve uma reformulação, a maioria deixou de ir à igreja.
“A cena do século XVI repete-se atualmente em Roma. Os(as) que trabalham pela reforma da igreja católica são considerados(as) ‘personae non gratae’. Reina um espírito de prepotência,
fechamento e mesmo cinismo, como afirmou recentemente o escritor Saramago. Todos e todas que ousam apresentar uma sugestão que não é do agrado das autoridades do Vaticano sentem isso na pele. Como nos tempos de Lutero, necessitamos atualmente de uma reforma protestante a sacudir a igreja católica pela força do espírito evangélico. Temos de protestar, fazer ouvir nossa discordância dos desmandos praticados pelo papa e pelas autoridades do Vaticano”. (E. Hoonaert. In: A Igreja necessita de uma “reforma protestante”. Adital, 2011).
fechamento e mesmo cinismo, como afirmou recentemente o escritor Saramago. Todos e todas que ousam apresentar uma sugestão que não é do agrado das autoridades do Vaticano sentem isso na pele. Como nos tempos de Lutero, necessitamos atualmente de uma reforma protestante a sacudir a igreja católica pela força do espírito evangélico. Temos de protestar, fazer ouvir nossa discordância dos desmandos praticados pelo papa e pelas autoridades do Vaticano”. (E. Hoonaert. In: A Igreja necessita de uma “reforma protestante”. Adital, 2011).
Eu tenho quatro mães: Dona Mercedes e a Virgem Maria, no céu. Tenho também a Igreja, que está a caminho do céu. Além destas, tenho Carmen, esposa e companheira há quase cinquenta anos que me embala com seus carinhos e cuidados maternais, Amo as quatro e não renego nenhuma delas. Todas elas foram e são importantíssimas para mim e para meu crescimento.
Na minha Igreja falam em democracia, mas praticam um grosseiro autoritarismo de cima para baixo. Parece que só Roma é capaz de pensar o que é bom para o povo de Deus. Ainda vige a divisa medieval de Santo Agostinho “Roma locuta causa finita est” (Sermo 131), como se as igrejas particulares não tivessem discernimento e não fossem guiadas pelo Espírito Santo para suas iniciativas e decisões.
Ao que tudo indica, parece que falta à Igreja, como um todo, a coragem, a humildade, o destemor e o discernimento que animou a comunidade em seu começo. Coragem dos dirigentes para tomar as iniciativas necessárias e dos demais para pressionar pelas mudanças. É salutar que se saiba que autoridade quer dizer serviço e não dominação e tirania.
Existem hoje, no mundo todo e também no Brasil, propostas para a revisão de alguns critérios considerados pétreos pela alta hierarquia da Igreja, como celibato do clero, ordenação das mulheres, aproveitamento dos padres casados e democracia nas decisões, sobretudo. Democracia de os padres elegerem o bispo, os bispos elegerem o papa, e assim por diante.
Minha Igreja precisa daquilo que o papa João XXIII, ao abrir uma janela pedindo ar renovado chamou de “aggiornamento”, ou seja, uma vigorosa adaptação da tradição da Igreja à evolução do mundo contemporâneo; uma adaptação ao progresso e às mudanças que cada época preconiza. É preciso se atualizar e avançar no debate social, no diálogo com as religiões, com as minoras e na adoção de uma nova visão, mais incisiva quanto à política e à economia, espaços por onde transitam os cristãos.
Ah, quando a minha Igreja for assim, talvez ela não padeça da baixa adesão de fiéis, com apenas 25% dos batizados frequentando as missas dominicais, em muitos lugares, conforme dados alarmantes informados pelas próprias autoridades católicas.
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