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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Juízes, crimes, castigos e as esperanças que não morrem

 Por Enio Squeff



JustiçaTalvez não seja preciso entender de leis para concluir que a Justiça é tão corruptível quanto a mais presumivelmente honesta instituição do mundo. Não que os juízes errem mais que do os outros mortais. Ou que a recomendação de Cristo sobre “a primeira pedra”, não lhes valha, pelo menos para entendê-los em sua dimensão humana.
Talvez não seja preciso entender de leis para concluir que a Justiça é tão corruptível quanto a mais presumivelmente honesta instituição do mundo. O Marquês de Pombal comprou a extinção, pelo Vaticano, da Companhia de Jesus, por um punhado de ouro do Brasil. Há um episódio na história inglesa, entretanto, que não é menos exemplar por mostrar o contrário. O caso teria acontecido durante a Idade Média: um príncipe foi flagrado a promover arruaças em plena Londres. Quando o detiveram e o levaram a um juiz, ouviu, perplexo, que, apesar de príncipe, seria punido com uma detenção. Avisado a tempo, o rei podia ter interferido, mas não o fez. Acatou a sentença com elogios ao magistrado. Que, mais tarde, se tornaria uma espécie de ministro da Justiça do próprio príncipe, quando este, por sua vez, sucedeu a seu pai.
Elogios e palmas – a Justiça venceu. Mas Friederich Dürrenmat (1921-1990), escritor suíço, tem um trabalho arrasador sobre os juízes. Na novela “A Pane”, ele conta de um jovem que, inadvertidamente, por causa de um problema em seu carro, numa aldeia, é convidado para um jantar com juízes aposentados e que é submetido a um interrogatório impiedoso – simples divertimento para os magistrados que revivem assim os “velhos tempos”. Na brincadeira, porém, o jovem confessa seus erros – não mais que as baixezas que todos cometemos em vida. Como resultado, antes do final da madrugada, após um lauto jantar, o jovem se suicida – o que deixa os velhos magistrados apenas um pouco consternados.. Não se sabiam tão poderosos com o que consideraram apenas uma brincadeirinha.
A novela não encerra qualquer moral edificante: Dürrenmat foi um crítico acerbo de seu país. A Suíça das contas “secretas”, da neutralidade nas guerras, uma espécie de arquétipo das boas intenções entre as nações do mundo contemporâneo, seria a seu ver, como Estado, portador de uma hipocrisia solerte, sombria, só justificável por sua condição de país “não alinhado”. Como os juízes de sua novela, para Dürrenmat a Suíça não resistiria a uma análise mais acurada – seria apenas cruel na sua assepsia, construída sob a aparência de civilidade. Pode-se admitir a hipótese.
Dürrenmat, porém, deve ter sido mais rigoroso com a Suíça por ser seu país e por conhecê-la mais de perto. No fundo, todos nos reconhecemos nos juízes – sejamos brasileiros, argentinos ou israelenses. Todos teríamos uma Suíça dentro de nós. Mas não apenas enquanto nação ou representação.

Essa a tese, das pinturas de Georges Rouault (1871-1958). Foi um católico fervoroso, e grande parte da sua obra são imagens dilaceradas de Cristo, santos mártires, prostitutas e palhaços. Trata-se de um universo até previsível, com a exceção notável de algumas pinturas em que ele figurou, justa e explicitamente, juízes. Nelas, os magistrados são representados mais do que o comum dos mortais, como a encarnação do cinismo. Não parece um tema para ser levado muito a sério, pelo menos sob o ponto de vista conceitual. Rouault, atualmente um pouco ignorado, foi um grande pintor. Afora um ou outro crítico, ninguém contesta que suas pinturas figurem no Museu d’ Orsay ao lado das de Matisse e Picasso. Fica em aberto, mesmo assim, seu juízo sobre os juízes: ninguém nega que eles errem – mas quando o fazem, serão eles os únicos culpados?
Foi uma das perguntas que Dostoivesky deve se ter feito quando se viu arrolado num processo que marcou sua vida. Ao ser flagrado como membro de uma organização revolucionária (hoje ela seria chamada de “terrorista`) na Rússia czarista, o então jovem escritor viu-se condenado à morte pela Justiça. De nada valeram as primeiras apelações: o juiz manteve a sentença de pena capital, que, felizmente para a literatura universal, só não foi levada a termo, porque um decreto de clemência promulgado pelo Czar em pessoa, pouco antes da execução, livrou o escritor do pior.
Dostoievsky seguiria para uma prisão na Sibéria, onde vegetou por quase três anos, mas da qual resultou uma de suas primeiras grandes obras-primas, “Lembrança ( ou recordação) da casa dos Mortos” – um livro seco, arrasador, mas, como tudo em Dostoievsky, de uma humanidade acachapante, o começo de uma produção literária genial que, a depender da fria sentença de um juiz desumano, quiçá corrupto, que certamente modificaria o seu veredicto, se Dostoievesky fosse um homem rico, (digamos, filho de um banqueiro ou de um grande empresário), certamente seria outra. Sorte do escritor, enfim, que o Czar tenha tido um gesto magnanimidade. A grande literatura agradece.
Não que os juízes errem mais que do os outros mortais. Ou que a recomendação de Cristo sobre “a primeira pedra”, não lhes valha, pelo menos para entendê-los em sua dimensão humana.
Há os episódios na história recente do Brasil. Os juízes que aceitaram julgar os presos políticos da Ditadura Brasileira, certamente tinham medo. E só quem não esteve sob o guante de um regime como o que vigeu no Brasil, dirá que resistiria, ou que não acataria uma detenção política, por “delito de opinião”. Mas todos sabemos como as coisas andam, não apenas no Brasil. E fala-se, não só das ditaduras ou apenas das questões políticas. No filme “O Julgamento de Nürenberg,” de Stanley Kramer – uma ficção em tudo pertinente do que aconteceu em Nurenberg depois da Segunda Guerra, há um momento em que um dos juízes alemães que, por sua vez, está no banco dos réus com os chefes nazistas, alega que uma só vez ele se compôs com o regime hitlerista. Não achava que estava sendo sentenciado com justiça, pois, no mais, ignorava os crimes cometidos pelo regime hitlerista.
Seria uma razão ponderável que, no entanto, foi logo desqualificada por seu colega americano – um de seus antigos admiradores, mas agora encarregado de julgá-lo: ele lhe dirá o que é verdade. Basta transigir uma única vez com a injustiça (como se faz atualmente nos Estados Unidos com a tolerância à tortura e ao assassínio dos inimigos políticos), e ela contaminará todo o resto, o poder inclusive. Foi o que transpareceu na reflexão de um monarca português, o rei Dom Pedro I, de Portugal, no século XIII. Ao ouvir da Corte que deveria absolver dois pajens que mataram um judeu para roubar – já que se tratava “apenas de um judeu” – ele fez, entre dentes, uma consideração que valeu como sentença: “Hoje é um judeu”, dizia e repetia, “amanhã será um cristão”. E para a consternação geral das damas da Corte, que tinham os dois jovens assassinos em alta conta (eram “bonitos”), ordenou que os executassem, sem quaisquer outras considerações. Ainda que se lhe possa condenar por seu rigorismo, o rei deixou claro que crimes são crimes, sejam contra quem forem. E por quem quer que os cometam.
Na época, o assassínio era punido com a morte; não havia qualquer comiseração. Ao recontar a história, porém, o romancista e historiador Alexandre Herculano não deixa de registrar que o rei fez sua fama de justiceiro, também a partir daquele episódio: a justiça em Portugal não vigeria, se realizada na suposição de que uns valeriam mais que os outros. Ou bem a justiça fazia-se para todo o mundo, a despeito da religião – ou do poder econômico . Ou não haveria justiça.
No Brasil as religiões quase já não contam muito – mas e a riqueza?
Consagrado e amplamente aceito o princípio democrático de que “todos são iguais perante a lei”, parece haver quase um consenso de que uns podem ser menos iguais que outros. O fato de não se contestar que pessoas de baixa renda sejam algemados, independentemente do crime que praticaram, parece consagrar o espírito da diferença. Todos seríamos desiguais perante a lei; a bolsa ditaria tudo. Quanto mais recheada, não importa o crime – ela, a bolsa, falaria mais alto. Pode ser um juízo precipitado e sabemos que nem tudo caminha assim.
Pois há a sociedade. No programa “Roda Viva” realizado recentemente pela TV Cultura – emissora do governo de São Paulo – foi levada ao ar uma entrevista com um assassino conhecido como “Cabo Anselmo”. Talvez interessasse pouco a sua história real, seu papel de agente duplo e a sua notória participação nos crimes da ditadura – mas foi um também colaboracionista com a criminalidade oficial, criminoso por isso mesmo. Confessou claramente ter sido o responsável pela morte de mais de cem pessoas. E sequer omitiu ou se envergonhou de seu ato talvez mais facinoroso, de ter entregue a mulher grávida de um filho seu, para um criminoso degenerado como foi o delegado Sérgio Paranhos Fleury. O que se viu e ouviu, em suma, foi mais uma história de horror – porém, honesta e livremente divulgada por uma fundação governamental.
Seria o caso de se pensar que nem tudo está perdido?

Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

Fonte: CORREIO DO BRASIL


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