A animação "Rio" de Carlos Saldanha é uma gracinha. Mas, pela primeira vez, um brasileiro assume sem culpa os estereótipos da brasilidade
LUÍS ANTÔNIO GIRON
Luís Antônio Giron Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV
O longa-metragem de animação infantil Rio, produção da Fox dirigida pelo brasileiro Carlos Saldanha, já é um sucesso de recepção de público e crítica. Ou, pelo menos do público e deste crítico. Adorei o filme. Eu e todas as torcidas do Brasil. Na pré-estreia de sábado, dia 2 de abril, as nove salas de um shopping center em São Paulo se encontravam lotadas, com pais e crianças felizes da vida, aplaudindo e vibrando a cada sequência da aventura do americano Blu e da brasileira Jade, as araras-azuis que são reunidas para acasalarem porque a espécie está quase extinta. O filme ostenta uma exuberante beleza tropical. As vistas e favelas monumentais do Rio de Janeiro, a graça frágil dos animais de Saldanha (já famoso pela criação do esquilo pré-histórico Scrat, dos três desenhos de Era do Gelo) e o Carnaval da Marques de Sapucahy, todos esses aspectos visuais e sensoriais transfigurados em algoritmos digitais vão ficar na história da animação. É como se o Brasil fosse pela primeira vez compreendido e traduzido para o universo do desenho digitalizado de Hollywood.
Parece que Saldanha, aos 42 anos e uma década radicado em Los Angeles, quis se vingar da Era Glacial onde se meteu desde 2001 e, para isso, embriagou-se das cores mais berrantes de seu Rio natal. Não percebi nem me irritei com os erros apontados por Alexandre Mansur em Época desta semana. No cinema, é preciso suspender o ceticismo por algumas horas e aceitar que os bichos falem, sem o prejuízo da inteligência. O desenho animado faz um alerta para o problema do tráfico de animais, e isso já é algo a aplaudir, malgrado as impropriedades ornitológicas cometidas pela produção, que, evidentemente, deveria ter pesquisado com mais precisão as particularidades da fauna e da flora tropicais.
Claro que se paga um preço por esse traslado. As imprecisões em geral são reflexos de uma incompreensão mais profunda sobre a cultura alheia. Gostaria de sugerir, como tema de reflexão, um tema que Rio traz de volta à tona depois de muitos anos: a representação da cultura do Brasil pelo cinema americano, e a profunda incompreensão deste para com aquele. Nesse sentido, a animação Rio pode ser interpretada como uma cornucópia de clichês e ideias adquiridas sobre a vida abaixo da linha do Equador, como havia muito não chegava por aqui. Na década de 2000, os criadores dos Simpsons trataram o país como uma selva e um antro de malandros, e nisso foram seguidos por produtores menores em filmes ultrajantes, que, felizmente foram esquecidos e cujos nomes faço questão de ignorar. Em Rio, o retrato se revela mais simpático, mas nem sempre infenso ao olhar preconceituoso.
São pequenos detalhes a compor o quadro estereotipado e que se resumem em quatro elementos: natureza, miséria, futebol e carnaval. Segundo a visão transmitida no filme, as reservas naturais correm perigo por causa da miséria, que gera a violência e o tráfico de animais. Mas a miséria também tem o seu lado bom e lírico, que se expressa no entusiasmo pelo futebol e pela sensualidade do carnaval. O espectro social não tem nuances. O Rio é uma espécie de viveiro de contradições. Certos personagens encarnam os tais “tipos populares”. Há os traficantes, tipos pardos ou negros, liderados por um sujeito com biótipo de nordestino. O menino Fernando é mulato, mora na favela e veste o tempo todo a camisa 10 da Seleção Brasileira. Ele rouba os pássaros a mando dos traficantes, mas se arrepende e passa para o lado dos mocinhos. Estes são figuras de classe média: a livreira americana Linda, dona de Blu, e o ornitólogo brasileiro Túlio, um preservacionista que toma conta de Jade. Os dois são brancos, jovens e programados para se apaixonar, homologamente às araras de que tomam conta.
Os animais refletem igualmente as diferenças de classe: Jade e Blu são a aristocracia perseguida e sequestrada pelos traficantes. Ela é corajosa e impetuosa; ele, como animal criado em uma pequena cidade do estado americano de Minnesota, não sabe voar por ter sido criado como um animal de estimação. Seus salvadores são os pequenos pássaros sambistas, amigos de um buldogue serralheiro, que rompe as correntes do casal de aves preso. O vilão Nigel, uma ave de rapina tropical ligada aos bandidos, obriga um bando de macaquinhos meliantes para ajudá-lo a encontrar o casal de fugitivos. O chefe dos macacos usa relógio de ouro e corrente como um traficante de favela. Quando os símios não obtêm sucesso, ele vem com este comentário: “É isso que dá contratar macaco para trabalhar!” Se isso não é politicamente incorreto, podem me chamar de mico. Eu não ri da piada, mas a plateia gargalhou.
Felizmente, todas as contradições e diferenças se dissolvem e se harmonizam no carnaval. A população em peso do Rio de Janeiro se despe e se fantasia. Até a dentista de Túlio aparece rebolando de biquíni em um bloco de Copacabana. Os bandidos e o buldogue se travestem de mulher. Durante o desfile, Túlio e Linda se fantasiam de araras e vão sambar na Sapucahy. Linda é colocada no topo de um carro alegórico. O chefe de harmonia lhe grita: “Rebola! Rebola!” Túlio tenta encorajá-la: “Sacode o bumbum!” Ao que ela exclama: “Em Minnesota ninguém sacode o bumbum!” Linda termina sambando na avenida, para a alegria da galera... Tudo isso ao som de uma trilha-sonora organizada por Sergio Mendes. Então não podem faltar “Mas que nada” e “Garota de Ipanema”, entre outros lugares-comuns da bossa nova famosa em Los Angeles.
O Rio não passa de um lírico antro de perdição embalado por boa música. Parece que os produtores de Hollywood fazem questão de passar tudo o que lhes parece estranho pelo filtro da simplificação, mesmo quando a intenção é reabilitar uma política de boa vizinhança com a gente. Algo muito parecido com o que produziu a Hollywood dos anos 30 e 40, quando os Estados Unidos em crise precisavam se aproximar dos vizinhos do Sul. Daí surgiram Zé Carioca, Carmen Miranda e o Bando da Lua. Rio é um revival dos estereótipos daqueles tempos. A animação anuncia o protótipo da imagem que a cidade do Rio quer passar nos Jogos Olímpicos de 2014. Ele recicla a simbologia de chavões da vida carioca, como um produto da nova política de boa vizinhança.
Confesso que me divirto com tantas distorções. Meu gosto, porém, deve ser colocado sob suspeita. Sempre ri muito da forma como Hollywood representou o Brasil em seus filmes. A começar por Voando para o Rio, de 1933, comédia musical que lançou Fred Astaire e Ginger Rodgers, estrelada pelo primeiro ator brasileiro a fazer sucesso nos Estados Unidos, o grande galã e cantor Raul Roulien. O filme trazia números de maxixe compostos por músicos da Broadway, como o inesquecível número “Carioca”, em que a trupe inteira dança um suposto maxixe que mais parece uma conga em boate de Havana. E Roulien cantando em inglês um tango é mais que uma lembrança bizarra. Adoro o desenho da Disney Você já foi à Bahia? (1944), com aquele número que Aurora Miranda faz ao lado de Zé Carioca, do Pato Donald e do Bando da Lua na rampa da casa de Carmen Miranda, irmã de Aurora, em Beverly Hills. Assim como me divirto com Carmen Miranda cantando “Mamãe eu quero” em Serenata Tropical (1941) ou contracenando com Groucho Marx emCopacabana (1947). Sou fã de certas extravagâncias dos musicais. Dei boas gargalhadas com “Mas que nada” enquanto as araras voam pela paisagem maravilhosa.
Eu diria que Carlos Saldanha é, mutatis mutandi, uma espécie de Zé Carioca do século XXI, pelo fardo simbólico que carrega. Ou Carmen Miranda. Em 1939, quando Carmen fez shows no Cassino da Urca no Rio depois de um ano nos Estados Unidos, a cantora e atriz foi acusada de ter voltado americanizada. E ela se defendeu com um samba-choro de Luiz Peixoto e Vicente Paiva intitulado “Disseram que voltei americanizada”. “Eu digo mesmo eu te amo, e nunca I love you/ Enquanto houver Brasil/ Na hora da comida/ Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu”. Carmen tinha necessidade de se justificar, de preconizar a brasilidade e de justificar a forma como ela adotou os chavões para divulgar o Brasil. Carlos Saldanha, ao contrário, não parece sentir nenhuma crise de consciência de adotar a leitura estereotipada da brasilidade. Saldanha inova porque é o primeiro brasileiro americanizado que tem prazer em representar seu país como uma caricatura. Ele dá a entender que acredita totalmente no estereótipo de um Brasil de miséria, futebol e carnaval. Que a mais perfeita tradução do país está na macumba para turista. Nesse sentido, o diretor reflete o público nacional da atualidade. A crer nas primeiras reações ao desenho, os brasileiros adotaram a macumba para turista. Estão adorando ser retratados como eternos foliões, inconscientes e predadores da beleza que os circunda. Talvez a gente queira ser isto mesmo: um inofensivo estereótipo de nós mesmos.
(Luís Antônio Giron escreve às terças-feiras.)
Fonte: Rev. ÉPOCA
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