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domingo, 26 de junho de 2011

Como os árabes salvaram a cultura ocidental





Jonathan Lyons trabalhou como correspondente da Reuters no Oriente, até se dedicar mais a fundo a estudar a relação entre leste e oeste


Em tempos de radicalização de posições na oposição Oriente versus Ocidente, vale a pena lembrar que árabes e ocidentais não são inimigos naturais, e que a cultura que permeia Europa e América deve muito aos muçulmanos. É o que procura fazer o americano Jonathan Lyons, do Centro de Pesquisas sobre Terrorismo Global da Universidade Monash, em Melbourne, Austrália. Em A Casa da Sabedoria (tradução de Pedro Maia Soares, Zahar, 294 páginas, 44 reais), Lyons conta como os árabes, que dominaram a Península Ibérica por oito séculos, assumiram o papel de guardiões e disseminadores do saber clássico ocidental, em um momento em que a Europa estava imersa na escuridão da Idade Média. E, mais do que isso, criaram a Renascença, período em que os europeus se voltaram à cultura clássica, e cuja autoria tomam para si.

O título do livro é emprestado da biblioteca criada em Bagdá no século IX para abrigar, traduzir e expandir conhecimento, muçulmanos recuperaram, copiaram e difundiram textos gregos sobre filosofia, ciência e astronomia, por vezes checando e corrigindo dados encontrados. Os documentos foram levados às terras de língua árabe, formando também a base para os trabalhos originais de pensadores islâmicos.

Foi da grande admiração de Lyons por esse trabalho empreendido pelos árabes que surgiu a motivação para contar esse trecho da história da ciência um tanto esquecido no Ocidente. Sem esse trabalho, diz o autor de A Casa da Sabedoria, o mundo apresentaria uma configuração muito diversa da que tem hoje. Mais do que isso: sem esses esforços muçulmanos, os ocidentais poderiam não ter a noção de que são capazes de explorar e manipular o mundo à sua volta sem entrar em conflito com Deus.

Em entrevista ao blog VEJA Meus Livros, Jonathan Lyons fala sobre as razões que fizeram com que a operação pró-conhecimento efetuada pelos árabes tenha pouco ou nenhum destaque atualmente, em especial no Ocidente – a principal delas é, como se pode imaginar, o olhar preconceituoso formado nos últimos anos sobre o Islamismo. E explica como os pensadores árabes estabeleceram os fundamentos da Renascença ocidental – inovações erroneamente atribuídas aos europeus.

Quais as principais contribuições árabes para a cultura ocidental?

Há duas maneiras de abordar a questão. Primeiro, nós podemos listar os campos específicos, ideias e tecnologias que são tributários à cultura árabe e muçulmana. Aqui, entram a navegação astronômica, os estudos de anatomia, a arte de fazer mapas, a álgebra e a trigonometria, entre muitos outros. Mas há uma contribuição mais profunda, que eu acredito ser fundamental para o que hoje entendemos como Ocidente. É a ideia de que o homem pode explorar e até manipular o mundo sem interferir nos poderes de Deus. Isso abriu deu aos homens poder em um grau considerável, mas não absoluto, sobre seu mundo. E essa é a história subjacente de A Casa da Sabedoria.

No livro, o senhor conta como grande parte da pesquisa produzida pelos árabes era desvinculada da fé islâmica e da obrigação de estabelecer doutrinas.Sim, mas, antes de tudo, é preciso dizer que boa parte do trabalho científico foi, de fato, desenvolvida para atender a questões da prática religiosa, como traçar a direção correta de Meca para rezar (os muçulmanos fazem suas orações voltados para Meca) ou para fazer a peregrinação e estabelecer os horários das cinco orações diárias, determinados por medições celestes. O interessante é que os muçulmanos do período medieval aceitaram as orientações dadas pelos cientistas para essas obrigações religiosas, sem a tensão entre fé e religião que caracteriza a experiência ocidental.


A imagem que os árabes têm hoje no mundo, influenciada pelas práticas terroristas, é muito diferente daquela que lhes era correspondente durante a Idade Média, quando salvaram parte importante da cultura ocidental. Foram os árabes que mudaram ou nós que mudamos na forma como os vemos?Não há dúvida de que as sociedades árabe e muçulmana não são mais as líderes do mundo da ciência, da filosofia e das artes. Mas é importante ressaltar que nós não temos muita informação desse processo de declínio, porque, como ocidentais, elegemos o Islã como causa e nos contentamos com essa resposta simples. Por que olhamos automaticamente para as questões do Islã para explicar o mundo muçulmano atual? Eu posso pensar em muitas outras formas de explicar esse universo: a destruição do sistema de irrigação que sustentava o grande império abássida; o desmoronamento do império islâmico em si; a “descoberta” ocidental das raízes comerciais para a Índia e para a China; a desertificação da região central do Iraque e assim por diante. E, enquanto nos obstinamos com o Islã, há cerca de 100.000 documentos científicos nas principais línguas muçulmanas (árabe, turco, persa e urdu), que nunca tiveram atenção acadêmica séria. Em outras palavras, pode haver um mundo inteiro de conquistas científicas e intelectuais lá fora, esperando para serem descobertas. Mas ninguém está olhando.


Por que muito dos avanços conquistados pelos árabes são atribuídos aos europeus do período renascentista?


Durante o período da Renascença, houve uma tentativa deliberada e consciente da crescente classe de “humanistas” de criar uma linhagem nova para a cultura ocidental que ignorasse a contribuição árabe, bem como a experiência da Europa medieval que muito dependia dos muçulmanos. Quando se olha, por exemplo, para o jeito como esses humanistas recontaram a história da álgebra, uma invenção árabe com nome árabe, podemos ver um lento, mas contínuo processo de apagamento dos traços da influência muçulmana. Isso permitiu aos humanistas avançar posições como pretensos fornecedores de uma nova cultura pura do Ocidente, sem a mácula da influência externa árabe. Fruto do empreendimento pró-saber dos árabes, a chamada Renascença é mais uma continuidade do que uma revolução cultural.


As traduções de textos científicos e filosóficos gregos feitas pelos árabes é fiel aos originais ou carrega interpretações influenciadas pela cultura islâmica?

Essa é uma ótima e importante pergunta. A história do Ocidente, como a contam os textos de faculdade, posicionam os árabes como os cuidadores da aprendizagem ocidental – a partir dos grandes textos gregos sobre filosofia, ciência, engenharia etc. –, mas raramente contam quais foram as suas contribuições originais a esse saber. Os árabes não apenas fizeram traduções e cópias de textos clássicos, como também os usaram como ponto de partida para suas próprias pesquisas originais e, mais importante ainda, checaram e frequentemente corrigiram dados e cálculos de astronomia e geografia encontrados. Eles completaram as traduções para o árabe, tornando-as melhores e mais valiosas que as originais. Curiosamente, no entusiasmo da Renascença por textos gregos genuínos, muitas dessas versões árabes melhoradas foram ignoradas ou perdidas. Mas antes, na época medieval, textos sobre a metafísica de Aristóteles e que explicassem um trabalho complexo para leitores e estudantes eram muito populares na Europa. Foi através das lentes árabes, com as inevitáveis influências da cultura islâmica, que boa parte do Ocidente conheceu Aristóteles e a filosofia grega em geral.

Como operava a Casa da Sabedoria? 


A Casa da Sabedoria, o título, é, antes de tudo, uma metáfora para a estratégia organizada e deliberada dos governantes do grande império islâmico, com sede em Bagdá, de coletar e expandir sua coleção de aprendizagem e sabedoria. Os estudiosos defendem, por vezes de forma apaixonada, que se tratava de um espaço real e duradouro. Outros, no entanto, a veem como uma invenção da história ocidental. Para mim, ela representa a política oficial do Império Abássida para promover o aprendizado. Parece que a Casa da Sabedoria foi modelada após as primeiras bibliotecas reais dos persas e fornecia apoio administrativo e financeiro para a realização de interpretações científicas e filosóficas e para traduções de textos hindus, gregos e persas. Esses textos foram copiados e disseminados amplamente pelas terras de língua árabe e formaram a base para muitos dos trabalhos originais feitos pelos pensadores árabes e muçulmanos.





A contribuição árabe foi fundamental para a construção da cultura ocidental tal como é hoje. Ao longo de oito séculos, os muçulmanos traduziram, por vezes corrigiram e difundiram o conhecimento clássico grego entre si, salvando e entregando aos europeus, que viviam então na Idade Média, um vasto saber. No livro A Casa da Sabedoria (tradução de Pedro Maia Soares, Editora Zahar, 294 páginas, 44 reais), o americano Jonathan Lyons, do Centro de Pesquisas sobre Terrorismo Global da Universidade Monash, em Melbourne, Austrália, se dedica a mostrar como os árabes foram inclusive responsáveis pela Renascença, período cuja autoria os humanistas europeus procuraram tomar. Leia abaixo a segunda parte da entrevista de Lyons a VEJA Meus Livros. 

Islamismo e Catolicismo são religiões aparentadas na origem. Por que os árabes incentivaram a leitura enquanto os católicos a censuravam?

A resposta está na estrutura das duas fés. O Islã não tem uma hierarquia, embora sempre tenha havido tentativas dos poderosos de impor uma. Como resultado, cada crente tem sua responsabilidade vinculada diretamente a Deus, e é responsável por ler e interpretar a seu modo o Alcorão, que eles acreditam ser a própria palavra divina. Definir quem é um mau muçulmano e quem é um bom muçulmano é um dos maiores desafios para a comunidade islâmica. No Irã, por exemplo, os clérigos muçulmanos que estão no poder (responsáveis por barbaridades) costumam definir seus rivais políticos como “anti-islâmicos”. Mas isso realmente não tem sentido, porque não há nenhuma autoridade central para determinar exatamente o que significa ser um bom muçulmano, embora haja princípios acordados a serem seguidos. Na tradição cristã, e aqui estou me referindo principalmente à Igreja Católica, há uma autoridade reconhecida na figura do Papa. Essa hierarquia determina exatamente o que é preciso para ser um bom católico. Em um ambiente como esse, é menos importante ler do que obedecer. Além disso, há uma conhecida forte tradição dentre o sacerdócio católico de que se valorizar a leitura entre o clero, que deve interpretá-la para os fiéis.

Como as diferenças entre as duas religiões – Islamismo e Catolicismo – se refletem em diferenças entre as culturas árabe e ocidental?

Um dos maiores desafios para qualquer estudante de religião – e eu me doutorei em Sociologia da Religião – é determinar onde acaba a “cultura” e começa a “religião”. No caso do Islã, com a morte do profeta Maomé, a comunidade muçulmana perdeu ao mesmo tempo seu líder político e espiritual, e deixou de ter alguém a quem recorrer para obter uma decisão “islâmica” sobre uma questão social, religiosa ou política. Com o tempo, como acontece em qualquer religião, os ensinamentos e ideias do profeta foram registrados por uma crescente classe de sacerdotes, trabalho concluído no período medieval, centenas de anos após a morte de Maomé. Valores culturais, preocupações e questões desse período posterior se confundiram com os ensinamentos maometanos. Então, coisas que são imperativos culturais tornaram-se imperativos religiosos.



A história de como a valorização do conhecimento pelos árabes transformou a civilização ocidental é contada através da figura do filósofo Adelardo de Bath. Qual a sua importância nesse processo?

Adelardo de Bath foi uma figura notável que anulou o sentimento antimuçulmano prevalecente em sua época e procurou ver o que os árabes poderiam ensinar ao Ocidente. Infelizmente, não se sabe muito da sua motivação e experiência pessoais. Em A Casa da Sabedoria, eu tento trazer Adelardo à vida porque ele é um dos meus heróis. Mais especificamente, ele voltou para casa com os “elementos de Euclides”, a fonte do nosso estudo de geometria, trabalhos de astronomia e astrologia, primeiras noções de química. Mas o maior tesouro que ele trouxe foi a permissão para o Ocidente estudar o mundo ao nosso redor.

Como foi feita a pesquisa para escrever o livro?


Eu iniciei esse projeto com a ideia de explorar ligações entre a poesia árabe e o surgimento da literatura secular ocidental. Queria, por exemplo, olhar para o relacionamento entre a poesia cortês da Espanha islâmica, conhecida como al-Andalus, e os trovadores. Mas, enquanto pesquisava a transmissão cultural do leste para o oeste, fiquei fascinado com questões maiores de ciência e filosofia. A Casa da Sabedoria é, na verdade, dois livros em um: a história da ciência e filosofia árabe no período medieval, e a história sobre como o conhecimento viajou para o Ocidente e os efeitos que produziu ao chegar lá


Beatriz Souza


Fonte: REV. VEJA

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