Devoção popular transforma túmulos de vítimas de mortes violentas ou repentinas em locais de peregrinação e reforça pressão para que a Igreja Católica reconheça seus milagres.
João Loes
FÉ
Há 50 anos, Inês de Moraes leva rosas brancas ao o túmulo de Antoninho da Rocha Marmo
No Cemitério da Consolação, encravado no
centro da capital paulista desde 1858, um túmulo chama a atenção por ter
mais flores e receber mais visitas do que qualquer outro. Não é o do
presidente da República Washington Luís, enterrado lá em 1957, ou do
escritor Monteiro Lobato, morador eterno do endereço desde 1948. Hoje, o
destino da maioria das homenagens feitas no campo-santo vai para uma
discreta sepultura no sexto terreno da quadra 80. Lá, cada milímetro de
pedra é disputado por vasos, velas, fotos e placas de agradecimento.
Trata-se do jazigo de Antônio da Rocha Marmo, o Antoninho, morto aos 12
anos de tuberculose em 1930 e invocado por pessoas em busca de graça ou
milagre, principalmente para a cura de crianças e adolescentes. “Ele é
exemplo cristalino da fé que vem direto do povo, sem intermediários”,
explica o padre José Carlos Pereira, autor do livro “Interfaces do
Sagrado” (Editora Santuário, 2011). Sem aprovação da Igreja, apoio de
diocese, ou qualquer respaldo oficial, a devoção a Antoninho cresceu e
floresceu, fazendo dele um santo do povo, ou, como preferem os
estudiosos da devoção popular, um santo de cemitério.
O Brasil está cheio de santos de cemitério como Antoninho e o fenômeno
tem explicação. Apesar de ser a nação com a maior proporção de católicos
em sua população, o País tem apenas dois santos canonizados pelo
Vaticano. Hoje, só Santa Madre Paulina e São Frei Galvão têm
reconhecimento oficial. Há uma espécie de demanda não atendida por
santos nacionais, o que, inevitavelmente, força o fiel para o culto das
figuras ditas marginais, como é o caso de Antoninho. “Montei um site
para divulgar a história dele e receber relatos de graças e milagres
recebidas por intercessão dele”, diz o publicitário paulistano Chrystian
Sidelsky, devoto do menino do cemitério da Consolação e entusiasta da
causa por sua beatificação, que oficializaria o culto. A paulista Inês
Molento de Moraes, 70 anos, outra fiel, diz ter recebido uma graça digna
de nota em abril de 2011. A neta, de pouco mais de um ano de idade,
estava com graves problemas respiratórios e foi curada, segundo a avó,
com a ajuda de Antoninho. “Há 50 anos vou ao túmulo dele, pelo menos uma
vez por ano”, diz ela, que costuma levar rosas brancas para adornar a
sepultura.
Para a Igreja, devoções populares como essas têm um lado bom e outro
ruim. Se essas manifestações mostram o quanto a fé católica continua
viva entre os fiéis, elas também abrem caminho para complicadas
deturpações da doutrina cristã. “A Igreja sempre mostrou muito respeito
pela piedade popular”, contemporiza o padre Hernaldo Pinto Farias,
assessor nacional de liturgia da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB). “Mas, se ignorarmos as normas que criamos para reconhecer
essas manifestações como legítimas, as devoções podem descambar para o
misticismo e impedir a verdadeira experiência da fé”, afirma.
Misticismos estes que costumam ser exacerbados no caso dos santos de
cemitério, já que muitos deles tiveram vida sofrida ou morte violenta.
“Boas histórias estimulam a fertilidade do imaginário popular”,
reconhece Pereira, o autor de “Interfaces do Sagrado”.
Nesse sentido, poucas histórias estimulam a fertilidade de imaginação
religiosa mais fortemente que as grandes tragédias nacionais. O incêndio
do edifício Joelma, por exemplo, que matou 188 pessoas no centro de São
Paulo em 1974, “criou” 13 santos de cemitério dos quais nem sequer se
sabe o nome. Conhecidas como As 13 Almas Benditas, os corpos dividem um
jazigo no Cemitério da Vila Alpina, na capital paulista. Encontrados
juntos e carbonizados em um elevador, suas sepulturas vivem repletas de
pedidos e agradecimentos. Indiferentes à reprovação eclesiástica, os
devotos continuam levando suas aflições às divindades extraoficiais como
as almas do Joelma e o menino Antoninho. Nesse caso, seguem a máxima
popular “a voz do povo é a voz de Deus”.
Fonte: ISTO É INDEPENDENTE
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