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terça-feira, 10 de agosto de 2010

A luta dos Tapebas

Tapebas não negociam o seu território


Fausto Arruda

O clamor maior dos tapebas é pela terra e eles tem lutado bravamente por ela. Suas experiências com as burlas do sistema apodrecido, no entanto, vem mostrando a eles que só um Estado verdadeiramente democrático pode lhes fazer justiça e proceder à reforma agrária. Embora os índios e os camponeses tenham muitos pontos em comum, os indígenas necessitam da terra como território, já que são um povo, uma comunidade historicamente formada, dentro do país brasileiro.

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Agora os descendentes Tapebas se orgulham de entrar na roda e dançar o Toré

Os tapebas, donos milenares de uma região do Ceará cujo centro é Caucaia, próximo à atual capital, Fortaleza, são hoje aproximadamente 4.800 famílias divididas em cerca de 12 comunidades ou aldeias: Lagoa 1, Lagoa 2, Coité, Jardim, Capuan, Trilho, Capoeira, També 1, També 2, Lamerão, Sobradinho e Ponte.

A luta pela reconquista do território se desenvolveu principalmente a partir dos anos 80, quando foram feitas as primeiras identificações e delimitações. Foi aí que aumentaram as tentativas de enganar os tapebas. Pois de acordo com o estudo inicial, a área indígena abarcava 30 mil hectares. Mas, no segundo estudo, esta baixou para apenas 18 mil. Isso, de acordo com as lideranças indígenas, ocorreu por pressão da Funai e de outros oportunistas que alegavam que "assim a terra sairia mais rápido".

Mas o pior ainda estava por vir. A carta demarcatória foi finalmente publicada, mas abarcando somente irrisórios 4,8 mil hectares. Embora essa carta ainda não seja a demarcação definitiva da reserva, os tapebas resolveram não ficar parados. Numa ação coordenada, as aldeias de Lagoa 1, Lagoa 2 e Coité retomaram áreas que consideram suas.

As retomadas de Lagoa 1 e 2 estão dentro daquilo que foi definido na carta demarcatória, mas a do Coité foi uma mostra da disposição de luta desses índios, não aceitando o fato de que essa área tenha ficado de fora do último estudo.

Domínios do índio

Vítimas de acusações falsas e absurdas — entre elas a de que não são mais índios — os tapebas orgulham-se da retomada das terras, que já somam cerca de 80 hectares (30 por parte das comunidades da Lagoa 1 e 2; e 50 por parte da do Coité). Essas áreas estão sendo chamadas de domínios do índio. A decisão dos tapebas, de reaver o que é seu, tem sido acompanhada de muita combatividade. Pois o clima é de constante tensão. Há aproximadamente três anos, uma casa que estava sendo construída ilegalmente no terreno do posseiro Antônio Felix teve que ser destruída pelos índios.

Embora exista uma liminar proibindo qualquer tipo de novas construções nas áreas em litígio, os posseiros sentem-se amparados pela lei para continuarem nas terras indígenas porque a demarcação definitiva ainda não saiu.

Em função disso, a aldeia da Lagoa1 retomou uma a uma as áreas invadidas por quatro posseiros. Foram elas: a do Campo, a do Antônio Felix, a do Leda e a do Murilo. Esta faixa de terra não é contínua. Entre elas existem outros quatro posseiros: Facol, Cerca, Sérgio e Mozart Filho (este terreno possui um morador índio, que anteriormente era hostil, mas que agora vem apoiando a luta de reconquista dos tapebas).

Já a aldeia do Coité retomou, no ano passado, cerca de 50 hectares. Essa comunidade — que enfrenta a falsa suspeita de não ser mais índia — tem contado apenas com suas próprias forças na luta por seus direitos. Isso porque a vacilante Associação dos Índios Tapebas, usando o pretexto de que parte das terras não consta da carta demarcatória, vem corroborando a posição da gerência e se negando a apoiar o pessoal do Coité.

A situação ficou mais tensa nos últimos meses porque um grileiro esteve na área, deixando lá estacas para a construção de cercas. Mesmo assim são 22 famílias bastante combativas e estão decididas a prosseguir.

Um outro ponto de conflito iminente localiza-se na beirada do rio Ceará. Alí os indios trabalham na retirada de areia para a venda. Já houve problemas porque um posseiro trabalha no mesmo local e na mesma atividade. No ano passado, ele colocou um portão com corrente para fechar a área e posicionou seguranças armados. Um grupo de 100 índios arrebentou a corrente e conseguiu garantir o trabalho naquele ano.

Esta atividade produtiva é de fundamental importância para os tapebas porque ocorre num momento do ano (agosto-dezembro) em que não existe o plantio de nenhuma cultura e nem há outra significativa fonte de sobrevivência — à exceção do corte da palha da carnaúba para a confecção de artesanato.

Identidade tapeba

A forte identidade que existe entre os tapebas representa a principal particularidade da luta indígena. "Quando estoura um problema — dizem eles — as várias aldeias apóiam". Este apoio geralmente se dá com o deslocamento de índios das demais comunidades tapebas "para segurar o arrocho".

É uma unidade espontânea, que os órgãos da gerência e entidades oportunistas sempre tentam quebrar. Nem sempre conseguem.

No episódio envolvendo a retirada de areia do rio Ceará vê-se um bom exemplo dessa identidade. A atividade se dá dentro da aldeia Lamerão, mas participam dela índios de várias aldeias, que enfrentam os posseiros e a polícia.

Reforçando a identidade, a questão cultural e espiritual tem hoje uma grande importância. Desde 1860, quando os tapebas (e demais indígenas do Ceará) foram arbitrariamente declarados extintos por decreto, as tradições foram se perdendo.

O passar do tempo fez com que os costumes tapebas fossem se diluindo em meio à cultura burguesa e imperialista. Nos últimos anos, porém, impulsionados pela luta pela terra, os elementos culturais têm se fortalecido, inclusive como necessidade da afirmação do "ser índio". Os trajes, os adornos, as músicas e mesmo os batizados indígenas têm ganhado força. Os índios procuram enaltecer uma espécie de orgulho tapeba. Isso sem dúvida tem aumentado a unidade deste povo e sua disposição de luta.

Sua cultura é a cultura de uma terra livre. Em total antagonismo com o latifúndio, tal visão coloca os índios ao lado dos camponeses na luta agrária. Os tapebas hoje dedicam atenção especial à cultura, resgatando também sua história de resistência, relembrando inclusive os momentos em que lutaram junto aos negros e descendentes pobres de europeus, fundindo-se muitas vezes com eles.

A esperteza do clero

A espiritualidade joga um papel central atualmente na cultura tapeba. É a principal forma de difusão e reprodução de seus costumes. Como é uma religiosidade herdada de uma sociedade primitiva e sem classes, o "deus", o "espírito", significa e se confunde com a própria natureza. Não há uma hierarquia eclesiástica, apenas a religiosidade. A figura do pajé parece ser muito mais a de um conselheiro do que a de um líder político.

A Igreja católica, no entanto, desde sempre tem procurado fundir a espiritualidade do índio com o catolicismo, subordinando-a à sua hierarquia. Zombando da História, a Igreja procura se apresentar hoje como "amiga dos índios". Os tapebas estão começando a notar que isso não corresponde exatamente à verdade.

Escola do índio

No reforço da identidade tapeba as escolas têm tido um papel chave. Muitas vezes a luta pela escola e pela terra se confunde. Nas três aldeias mais combativas existem escolas bem organizadas e muito voltadas para a educação indígena.

O caráter de escola diferenciada é de extrema importância, pois os tapebas enxergam nelas uma independência em relação ao Estado, o que se manifesta através da escolha dos professores (sempre índios) e do controle da direção.

Existe ali uma luta muito interessante para a não utilização dos livros enviados pela gerência. Além disso, os índios vêm desenvolvendo novos métodos de ensino. Isso já ocorre na História e em outras disciplinas, inclusive na Matemática. Existem ao todo oito escolas diferenciadas. Elas atendem até o ensino fundamental 1 (1ª à 4ª série). Para o fundamental 2 (5ª à 8ª série) e ensino médio os tapebas ainda dependem das escolas do governo ali existentes, sendo a maior a da sociedade de Capuan.

Falam as lideranças

AND esteve numa aldeia tapeba e ouviu alguns de seus líderes. Eles falam, com orgulho, de suas lutas e denunciam os inimigos. Abaixo, a íntegra dos depoimentos:

A Associação dos Índios Tapebas foi organizada em 1982. Primeiro foi a luta pelo reconhecimento do nosso povo como índio, a luta contra o preconceito. Havia muita discriminação dos brancos em relação a nós. O povo foi se assumindo. A Associação se iniciou com a participação dos não-índios, inclusive o seu primeiro presidente. Depois os não-índios saíram. Ela começou com o nome de Associação do Rio Ceará, depois ficou Associação dos Índios Tapebas.

Achamos que as lideranças devem soltar os cargos que têm nas ONGs e na Funai. Naquele período houve muita traição no nosso meio, até de um cacique. O Dourado (antigo líder, que hoje se apresenta como candidato em eleições) era contra a capacitação de lideranças. Nossa luta é pela terra, mas a de alguns parece que é pelo dinheiro.

Sobre as escolas que ensinam nossa cultura, elas são as de Capuan, Lagoa 1, Lagoa 2 e Coité. Temos o ensino oficial porque a lei nos obriga. Mas estamos revertendo, ensinando Matemática a nosso modo, o sistema não quer isso. A História também ensinamos a nossa. Ensinamos que Pedro Álvares Cabral não foi um herói, e sim um matador.

Na Matemática partimos sempre pelo básico, que é a noção de conjunto. O que é conjunto? A pessoa diz que "conjunto é um bocado de coisa dentro da roda". Vemos o conjunto em nós: a maraca e suas sementes estão presas, formam um conjunto. A Matemática está em nossa vida, como contar a palha, o milheiro, através dos feixes. Tem muito professor que não sabe tão bem, o índio analfabeto que trabalha na palha sabe muito mais. Isso está se perdendo.

A Seduc (Secretaria de Educação) mandou que tivesse um núcleo em cada escola. Nós nunca tivemos isso, temos sim o responsável. Como ele bate muito contra os políticos, queriam colocar um professor no seu lugar. Mas quem faz a nossa lei somos nós. O sistema diz que a escola tem que ter 500 alunos, isso é para acabar com a escola porque existem algumas que funcionam num quartinho com 20 alunos. O sistema não deixa? Exige 500? Problema dele.

A Seduc, querendo impor, ameaçou fechar nossas escolas, dizendo que iria transferir os alunos. Falamos que quando não havia escola, eles nunca tinham vindo aqui ver. Agora ficavam querendo fechar a escola que nós montamos. Perguntamos: o governo fala em toda criança na escola e ao mesmo tempo quer fechar a nossa escola? Depois da pressão eles disseram: então botem um índio para ensinar. Mas aí nós perguntamos: e o salário? O índio vai ensinar de graça? Porque, se fosse branco, a Secretaria não teria que pagar? Três meses depois o professor estava recebendo seu salário.

Quando entramos na liderança já sabíamos que queríamos era a luta pela terra. O antigo líder nunca falava disso, era só reunião. A escola era uma pobreza, tinha um fogãozinho e um butijão antigo. Quando saiu, ele ainda levou isso tudo embora. Hoje tem panela, freezer, cadeira, quadro. Fomos na Secretaria. Nos barraram. Falaram que não poderíamos levar nada do que precisávamos para a escola. Falamos com a secretária e perguntamos se poderíamos levar ou não. Ela autorizou e nunca mais nos negaram nada. Isso nós conseguimos sem bajular, só cobrando.

Hoje tem o galpão, antes a aula era debaixo do cajazeiro. Ainda nos lembramos daquela época: éramos responsáveis, merendeiras e professores ao mesmo tempo. Ia todo mundo, criança que já pudesse andar estava lá. Sempre dizemos para os nossos professores: as crianças tem que estar bem cuidadas, limpas, unhas cortadas, etc.

Um de nós fazia parte da aldeia da Lagoa 2 e atuava muito com o Dourado. Ele nos mandou para um encontro na Paraíba, fomos no lugar dele.

No encontro mandaram assinar um documento. Então perguntamos: que documento é este? Viram que a gente não era bobo. O documento era para aprovar um projeto que mandava dar o dinheiro dos índios para as prefeituras. Nós dissemos: não aceitamos, o prefeito é inimigo dos índios! Aí viramos liderança. Organizar, lutar juntos, ter escola. Para a escola, aproveitamos um local já existente e começamos. A maioria do povo concordou, mesmo contra outra liderança. Outros líderes nos ajudaram, fomos na Prefeitura, no governo do Estado. O Estado falou que somente no ano seguinte teríamos carteiras e merenda. Fomos na Prefeitura e esta aceitou apoiar. As crianças se animaram, conseguimos tudo com muita luta. Hoje são três professores pagos pelo estado. Todos tiveram capacitação no magistério indígena, fornecida pela Seduc.

Quando entramos na liderança vimos que um homem estava querendo fazer um botequim na nossa terra. Havia uma liminar que proibia qualquer construção em áreas indígenas. Definimos numa assembléia que teríamos que conversar com o homem. Fomos lá e ele falou que o terreno era particular, que só sairia quando tivesse a demarcação definitiva e depois de receber a indenização. Perguntamos se ele iria continuar mesmo. Ele disse que sim.

Voltamos a fazer uma reunião e montamos um grupo. Esperamos o posseiro sair e derrubamos a coisa. Ele ficou doido, perguntou quem tinha sido, foi esbarrar onde nós estávamos: "Quem fez isto? Eu falei que tinha o documento..." Começou a gritar, e nós falamos baixinho: "Mas lhe dissemos que o documento não valia..." O cara nos desafiou a derrubar a casa dos cavalos.

Passou três dias e ele foi na Funai. Nos denunciou e ameaçou processar. Duvidou que a demarcação sairia. "Dou um boi se sair", ele disse. Na mesma semana saiu a carta demarcatória dos 4800 hectares. Ficamos muito alegres, mas queremos a ampliação.

Fonte: A Nova Democracia


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