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terça-feira, 10 de agosto de 2010

Shoa - Memórias de um sobrevivente

Memórias de um sobrevivente PDF Imprimir E-mail
Alexandre Paim

O ano era de 1945 na Europa, mais precisamente na Alemanha. A data exata ele só viria a saber no corrente ano de 2004. Pesando apenas 28 quilos aos 17 anos; os pais, parentes e familiares (por volta de 50 pessoas) estavam todos mortos. Aleksander Henryk Laks sabia que ia morrer.

— E esperava a morte. Eu ouvi lá fora tiros, gritos, relâmpagos mas não era mais comigo, eu estava morrendo e estava em paz comigo. Chegou perto de mim uma pessoa, me catucou, abri os olhos e ele falou algo que até hoje eu não sei o que é. Ele saiu, depois voltou e me deu um caneco de leite para beber. Ele me deu porque eu não podia levantar os braços, estava sem força, ele reclinou minha cabeça, colocou aquele leite dentro de mim e foi embora.

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Aleksander foi uma das milhões de vítimas do nazi-fascismo que assolou a Europa e até hoje não sabe como sobreviveu, mas sabe para quê sobreviveu:

— Para contar a minha história, para que nunca mais aconteça de novo com ninguém. Que o meu passado nunca seja o futuro de ninguém.

Aleksander nasceu na Polônia, na cidade industrial de Lodz, numa família de classe média (seu pai era gerente de um frigorífico e sua mãe dona de casa), e teve uma infância normal até os 12 anos de idade.

Durante a infância, Aleksander não sentiu os efeitos do anti-semitismo que já existia na Polônia antes mesmo do nazismo, originário de questões religiosas.

— A igreja bem recentemente, até João XXIII, principalmente a católica e as outras religiões cristãs, sempre insistiam no fato de que foram os judeus que mataram Cristo. E como os poloneses eram muito católicos, desde criança a igreja incutia isso neles. Os judeus, então, eram discriminados e faziam na Polônia, e na Europa em geral, o papel que os negros fazem nas Américas, eram cidadãos de segunda classe. Havia restrição no ensino, não podiam exercer determinadas profissões que somente os cristãos podiam fazer, como a profissão de porteiro por exemplo. Para entrar na universidade havia cotas para não entrar judeus demais, chamavam-se números clausos.

As vítimas do nazi-fascismo

Apesar disso, Aleksander só viria a sentir o peso do ódio e do racismo aos 12 anos, quando o exército nazista alemão invadiu a Polônia e imediatamente começou a usar a força de trabalho dos poloneses, judeus ou não, em favor de sua máquina de guerra imperialista.

Primeiramente, Aleksander foi aprisionado no gueto de Lodz onde, segundo ele, diferentemente do histórico gueto de Varsóvia e alguns outros, era impossível que houvesse um levante porque as condições de sobrevivência eram ainda piores:

— Não houve (levante) por que a nossa luta diária era a da sobrevivência, minuto a minuto. Nós estávamos hermeticamente fechados. Um comitê de judeus colaborava indiretamente, pois havia a polícia judaica tomando conta de nós. Os alemães arrebanhavam as pessoas para os campos de extermínio e por aí em diante. E, além disso, demoliram as residências que havia em volta do gueto, criou-se então um cordão sanitário, por assim dizer. Não sabíamos o que estava acontecendo do outro lado do muro. Se tentássemos fugir, íamos cair nas mãos da população que trouxeram da Alemanha para ficar em volta do gueto.

Provando sempre a supremacia dos exércitos populares, onde os oprimidos travam embates heróicos com seus opressores, o levante em Varsóvia é mais um destes momentos históricos em que os oprimidos conseguem resistir bravamente ao poderio desproporcional de seus opressores, fato este também salientado por Aleksander:

— Já no gueto de Varsóvia e outros guetos, as pessoas não eram tão hermeticamente fechadas, havia muros, mas as pessoas podiam fazer buracos nos muros, saiam, entravam armas enferrujadas, mesmo que a preços exorbitantes, entrava alguma comida. O levante no gueto de Varsóvia foi uma resistência heróica, em que as pessoas lutaram com as mãos contra os alemães em 1943. Pessoas esfomeadas e esfarrapadas lutaram contra o exército mais poderoso da época, que era o alemão. Eles foram vencidos, mas não derrotados.

Em 1944, Aleksander e seus pais foram levados para o temido campo de concentração de Auschwitz, onde sua mãe foi morta na câmara de gás, enquanto ele e seu pai passaram a executar trabalho escravo, de acordo com a macabra divisão da estrutura dos campos de concentração.

— Os grandes campos de extermínio, como Auschwitz, por exemplo, eram centrais e em volta estes campos eram divididos em três. Eram campos de extermínio, para as pessoas que tinham menos condições de trabalhar. Eram campos de trabalho, não dentro de Auschwitz, mas nas fábricas em volta. As pessoas iam trabalhar para a indústria de guerra, e se estivessem já muito cansadas pela própria subnutrição, pelas surras que levavam ou se não agradavam ao chefe, eram mandadas de volta para os campos de extermínio para serem executadas. E também eram depósitos para vender os prisioneiros para empreiteiras. Eu fui uma deles e meu pai também.

Três semanas antes da libertação, o pai de Aleksander foi morto a pauladas e queimado em uma pira, somando-se aos incontáveis mortos que não foram executados na câmara de gás.

Sendo o fascismo a política do capital financeiro, em sua fase de degeneração, a guerra é o seu principal instrumento de extração de lucros. Assim, o nazismo, fascismo em sua forma mais agressiva, posto em prática na Alemanha, foi a forma encontrada pelo capital financeiro para sair de uma colossal crise de superprodução começada na década de 20, da qual a quebra da bolsa de Nova Iorque, em 1929, foi o sinal mais visível. Desta forma, grandes empresas lucraram direta e indiretamente com a guerra, como grandes monopólios que tiveram um crescimento exponencial na época da guerra, por se utilizar do trabalho escravo, conforme atesta Aleksander:

— Judeus eram empregados, inclusive eu, em trabalho escravo. Em Auschwitz fui vendido para uma empreiteira para fazer fortificações contra a ofensiva soviética. Ganhava uma ração de 200 calorias e trabalhava de sol a sol. Muitos foram levados para fábricas de munição e também para a fábrica de grandes empresas, como Volkswagen, Siemens, Atlas (empresa que faz elevadores), Krupp, Mercedez-Benz e também Opel (hoje fundida com a General Motors). Enfim, trabalhavam em toda a indústria de guerra. Claro, não só judeus eram superexplorados pela indústria nazi-fascista, como todos os povos que caíram sob seu tacão, caso dos franceses, tchecos, poloneses, austríacos, soviéticos, sendo que o extermínio sistemático, além dos judeus, se estendia principalmente aos comunistas dos países agredidos.

O genocídio continua

Já está cientificamente comprovado que o número de calorias necessárias para a sobrevivência de um ser humano é de 2.400 por dia. Porém, a dieta a qual os prisioneiros dos campos eram submetidos era de 200 calorias, para trabalhos pesados e intensos. Partindo deste dado, podemos refletir que o genocídio perpetrado naquela época não é tão diferente do que vem sendo feito atualmente com os povos pobres do mundo, só que de maneira mais difusa, através de desemprego em massa, salários aviltantes e indiferença para com os países afetados por guerras civis fabricadas e intervencionismo imperialista. Ao que se percebe, vários povos do mundo ainda são submetidos à dieta de 200 calorias. A mesma indiferença para com os povos pobres do mundo feita pelas potências “democráticas” (leia-se imperialistas) atualmente foi aplicada ao crescimento do nazismo na Alemanha, vendo inclusive esta como uma alternativa para combater o comunismo.

— Aí o nazismo começou a se expandir, os alemães nazistas atravessaram o Reno, Hitler chegou ao poder e começou a rearmar a Alemanha, apesar de ser proibido. Mas, ninguém falou absolutamente nada, o mundo “democrático” fechou os olhos. A razão disso é que Hitler se proclamava campeão anti-comunista, anti-bolchevique, e isso deu status para ele perante as ditas democracias. Logo em seguida, o apetite de Hitler começou a crescer e disse que, como a língua falada na Áustria era a alemã, não existia a Áustria e sim a Alemanha, anexou a Áustria e ninguém falou nada. Aí chegou a vez da Tchecoslováquia, hoje separada: tinha uma parte lá que falava alemão. Então ele disse que essa parte não era Tchecoslováquia e, sim, Alemanha, tomando o país. O governo de lá decidiu entrar em guerra, mas, mais uma vez, ninguém se mexeu, relembra Aleksander.

A “liberdade” e a volta à Europa anos depois

Ao narrar sua libertação, Aleksander faz algumas ressalvas aos franceses que o libertaram: — Eu fui libertado pelos franceses e fomos deixados como se fôssemos lixo na Alemanha. Muita gente morreu depois da libertação, os franceses não mandaram nem médicos, nem enfermeiros, nem assistente social. Enfim, não ligaram pra gente.

Surpreendentemente, Aleksander esteve perto da morte por duas vezes: a primeira quando estava sendo transportado por trem para ser morto por afogamento e recebeu um copo de leite de um soldado francês.

— Mas depois de mais ou menos três dias eles (os franceses) voltaram avisando para retroceder, que os alemães do SS iam voltar e quem quisesse podia ir com eles. Mas eu não tinha condições, não podia andar nem meio metro e tinha que caminhar 21 quilômetros. Eu simplesmente não podia, fiquei. No dia seguinte, os alemães voltaram e fomos chamados para sermos fuzilados, disseram que nós saqueamos a cidade, que nós éramos bandidos. Nós estávamos com roupa de soldado, mas não estavamos calçando nada, porque tinhamos os pés inchados. Fomos levados para sermos fuzilados. Na entrada do bosque, apareceu um padre, um pastor e dois civis, que falaram com esse major. Disseram: “quando vocês matarem e forem embora, os franceses irão voltar com certeza e vão achar toda esta gente morta, sendo que nós vamos responder por isso, então é melhor deixá-los, eles não saquearam nada mesmo.” Parece que isso entrou na cabeça do major e acabaram nos levando para uma escola e depois nos deixaram num abrigo anti-bombas. Quando saímos desse abrigo, já era bandeira branca, os alemães se renderam. Aí fui libertado, com 28 quilos, 17 anos, sem pais, sem parentes, sem amigos, sem pátria, enfim, sem futuro e perspectiva. Essa foi a minha liberdade.

Recentemente, em 2004, Aleksander esteve de volta na Polônia e na Alemanha, onde revisitou os campos de concentração e enfrentou seus medos, fazendo algumas descobertas surpreendentes como a de que o vice-prefeito da cidade de Emmendingen escreveu um livro onde narrava com datas precisas o momento de sua libertação.

No entanto, apesar das tristes lembranças e das emoções fortes, o saldo da viagem para Aleksander foi positivo porque conseguiu sentir o significado da palavra liberdade:

— O meu intuito e que consegui foi entrar num lugar tão sinistro como Auschwitz e entrar como brasileiro, judeu e homem livre e saí por que eu quis sair como brasileiro, judeu e homem livre.

Aleksander Laks, um brasileiro

Hoje naturalizado, Aleksander frisa bem a sua nacionalidade brasileira, sempre declarando seu amor por esta pátria e seu povo, separando bem a religião da nacionalidade.

— A religião judaica não é uma nacionalidade, é uma religião. E as pessoas confundem, falam judeu, mas é judeu brasileiro, a mesma coisa com cristão ou umbandista, qualquer religião. Essa é uma ênfase que eu sempre faço: sou brasileiro e judeu, assim como me considerava polonês por ter nascido e morado na Polônia.

Vivendo no Brasil há mais de cinqüenta anos, Aleksander já ganhou vários prêmios e homenagens e é presidente da Associação Brasileira dos Israelitas Sobreviventes da Perseguição Nazista, entidade que tem como objetivo manter sempre viva a memória das vítimas do nazismo, além de possuir um grande material em vídeo, contendo mais de 18 horas de filmagem; a instituição inclusive, procura um voluntário que possa editar este material para que fique registrado para as futuras gerações. Em 2000, Aleksander lançou o livro O Sobrevivente – Memórias de um brasileiro que escapou de Auschwitz escrito em parceria com a escritora Tova Sender, que já está na quarta edição, sendo adotado como literatura obrigatória em escolas. Realiza ainda, sempre que convidado, palestras relatando sua história.

Fonte: A Nova Democracia


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