"Eles prenderam meus dois irmãos ontem à noite e os levaram
presos. Somos negros, este é o nosso único crime", relatou à Deutsche
Welle o morador de Trípoli Zeinab Muhamed.
À primeira vista, o clima mudou dramaticamente no antigo clube
esportivo da capital líbia, em frente ao porto principal. No antigo
local de encontro de proprietários de iates e de veleiros, encontram-se
hoje prisioneiros e seus familiares que esperam do lado de fora. Todos
são negros residentes no bairro antigo de Trípoli, Medina.
"Nenhum deles é líbio. Esses caras que prendemos aí dentro são todos
estrangeiros pagos por Kadafi para matar os nossos. O que querem que a
gente faça com eles? Eles são mercenários." Assim explica Abdulhamid
Abdulhaki, funcionário do conselho local de rebeldes, falando à Deutsche
Welle, através do portão principal.
Aparentemente, a visita de jornalistas vindos do exterior à prisão
improvisada o deixou nervoso. "Vocês sabiam que Kadafi nunca deixaria
jornalistas trabalhar como vocês estão trabalhando? Essa não é a prova
real da democracia na nova Líbia?", argumenta.
Mão de obra barata
Zeinab Muhamed rebate: "Eles dizem que não somos líbios, mas não é
verdade. Nasci em Chade, mas nos mudamos para Sebah [900 quilômetros ao
sul da capital] 20 anos atrás. Temos passaportes líbios praticamente
desde o dia em que nos mudamos".
Salwa Eisa, de 36 anos, moradora na cidade velha, também faz fila à
entrada, carregando uma bolsa com comida para seu esposo. "Chegamos do
Chade dois anos atrás, e Abdullah, meu marido, fez todo tipo de
trabalho, menos aceitar dinheiro de Kadafi para matar gente." Ela é da
mesma opinião que os demais familiares reunidos do lado de fora do clube
transformado em presídio: "Nosso principal problema é a cor da pele".
Durante suas quatro décadas no poder, o ditador líbio Muammar Kadafi
abriu as fronteiras do país para os imigrantes dos países vizinhos à
procura de melhores condições de vida. Uma decisão compreensível,
considerando-se que a população de cerca de 6 milhões é mínima, em
relação às proporções do país norte-africano e suas gigantescas reservas
de petróleo. A maior parte desses imigrantes foi empregada como mão de
obra barata.
Provas suficientes?
Na entrada da prisão improvisada, guardas e parentes limpam os pés em
um capacho com o retrato de Kadafi. A poucos metros, dezenas de homens
negros estão sentados na sombra.
"Eu vim de Gana no ano passado porque meu irmão me disse que era
fácil encontrar trabalho como limpador de rua. Parece que todo mundo que
faz esse trabalho aqui é preto. Eu juro que nunca peguei numa
arma neste país", assegurou o prisioneiro à Deutsche Welle, pouco antes
de o repórter ser impedido de continuar conversando com os detidos.
"Eles não estão presos. Nós os estamos mantendo aqui até terminarmos a
investigação. Os que não estiveram envolvidos em violência vão ser
liberados imediatamente, mas os culpados serão transferidos para Jdeida
[principal presídio de Trípoli]." A declaração é de Ali Mohamed, de 22
anos, que alega ser o "inspetor-chefe" do Conselho Nacional de Transição
(CNT), liderado por rebeldes.
Segundo as autoridades locais, existem numerosas provas de que os
detidos participaram de atos de violência: armas encontradas em suas
residências, ferimentos de combate, fotos de celulares que os mostram
empunhando armas ou o fato de se encontrarem entre os seguidores de
Kadafi.
"Caçada humana"
"Todo mundo se conhece neste bairro", esclarece um guarda. Um outro
acrescenta que os antigos prisioneiros sofriam "as torturas mais cruéis
durante o regime de Kadafi", enquanto hoje em dia eles são "bem
alimentados" e os policiais rebeldes de Trípoli "nem encostam a mão
neles".
Haveria 50 detidos no clube transformado em casa de detenção. "Não
posso lhe dar o número exato das pessoas que prendemos durante os
últimos dias, mas acho que seriam umas 5 mil, na cidade inteira",
anunciou o porta-voz do Conselho Militar de Trípoli numa coletiva de
imprensa realizada na semana passada.
Repórteres internacionais residentes em Trípoli estão descrevendo
como "caçada humana" o que está acontecendo na capital e arredores. Na
semana passada, a Deutsche Welle testemunhou a prisão de pelo menos 30
cidadãos negros no bairro antigo de Trípoli. Os rebeldes estavam
organizados em grupos de dez, bloqueando a entrada das ruelas e levando
embora os detidos a pé.
Diversos moradores locais revelaram à DW terem cada vez mais medo,
muitos planejam ou retornar a seus países natais ou emigrar para a
Europa.
ONGs apelam
Mohamed el Gadi, da ONG local Juntos pelo País, alega que parte das
notícias tem sido exagerada. "Visitamos numerosos centros de detenção
nos últimos cinco dias e não encontramos nenhum preso sendo maltratado."
Entretanto, outras ONGs mais estabelecidas chegaram a conclusões
diferentes.
Num relatório divulgado no domingo, a Human Rights Watch (HRW) apelou
ao CNT para que suste "as detenções arbitrárias e os abusos contra
trabalhadores imigrantes africanos e contra líbios de cor negra acusados
como mercenários". A organização humanitária sediada em Nova York
aponta que tais atos vêm espalhando medo entre a população africana da
capital. "Atualmente é perigoso ter pele escura em Trípoli", observa
Sarah Leah Whitson, diretora do departamento encarregado do Oriente
Médio e África do Norte da HRW.
A Anistia Internacional (AI) igualmente denunciou diversos episódios
de violência indiscriminada contra cidadãos de cor negra, inclusive o
espancamento de pacientes em hospitais por rebeldes armados. "Tememos o
que possa estar acontecendo com os detidos longe das vistas dos
observadores independentes", comentou o secretário-geral da AI, Claudio
Cordone.
De volta a Medina, o muezim chama para as preces vespertinas. À
noite, os homens se entrincheiram em casa e apenas gangues de
adolescentes vagam pelas ruas estreitas e sujas.
Autor: Karlos Zurutuza (av)
Revisão: Roselaine Wandscheer
Revisão: Roselaine Wandscheer
Fonte: DEUTSCHE WELLE
Nenhum comentário:
Postar um comentário