Não parece haver dúvida de que a cultura autoritária prevalecente na América Latina - em detrimento da cultura das liberdades - seja, pelo menos em parte, herança que a Península Ibérica deixou às suas ex-colônias. O historiador inglês Toby Green, autor deInquisição - O reinado do medo, obra que acaba de ser lançada no Brasil pela Editora Objetiva, insinua algo semelhante.
O livro, que abrange um período de 300 anos, não trata da Inquisição medieval ou italiana - estas, controladas pelo papado e seus representantes, os bispos -, mas da Inquisição na Espanha e em Portugal, controladas diretamente pelos reis (Fernando de Aragão e Isabel de Castela; João III).
Escreve Green: "Uma das melhores razões para se concentrar na Inquisição em Portugal e na Espanha é o fato de que se trata de uma história de poder e abuso de poder, e não uma desculpa para reprisar a propaganda anticatólica do passado. Durante o estabelecimento da Inquisição em Portugal, o papado foi sempre mais benevolente do que o governo português de João III: o rei proibiu os judeus convertidos de deixarem Portugal em 1532, enquanto o papa Clemente VII lhes concedeu indulto em 1533; após a criação da Inquisição, em 1536, João quis que o bispo de Lamego indicasse um português para o cargo de inquisidor-geral, mas o papado se recusou, temendo que ele fosse violento demais; e quando, em 16 de julho de 1547, o papa Paulo III (...) finalmente outorgou à Inquisição portuguesa as mesmas liberdades que sua correspondente espanhola, ele o fez com a condição de que, pelo período de um ano, todos os que quisessem poderiam deixar Portugal livremente para escapar da perseguição."
O fato é que os abusos na Península Ibérica eram mais políticos do que religiosos, o que leva o historiador a dizer - mas seria preciso outro livro para estabelecer essas conexões - que a Inquisição foi "a primeira semente dos governos totalitários".
Será mesmo? "Não há dúvida", responde o autor, "de que ela teve inúmeros sucessores, ao menos por analogia. Houve a rede de informantes da Stasi (...), que durante a Guerra Fria se espalhou pela Alemanha Oriental como familiares inquisitoriais para monitorar os politicamente incorretos; e os carrascos de Mao Tse-tung, que amputavam a laringe de suas vítimas para que não pudessem protestar, assim como as vítimas dos autos de fé eram amordaçadas, e que cobravam das famílias dos mortos as balas usadas para executá-los, assim como as vítimas da Inquisição tinham que pagar pela tarefa de seus torturadores."
No caso espanhol, a influência das práticas inquisitoriais perdurou até o fim do franquismo (nos anos 70), com suas execuções públicas dos prisioneiros pelo "Garrote vil". No caso português, até o fim do salazarismo. Note-se que o general Franco a Antônio Salazar foram os últimos ditadores na Europa, que já enterrara o fascismo e o nazismo, mas conviveria ainda com o comunismo até 1989-91.
O antiliberalismo na América Latina, que certamente se deve em parte a essa herança ibérica, é responsável pelas frequentes recaídas autoritárias que o continente viveu no século passado e apresenta ainda em pleno século XXI, cujo exemplo mais retrógrado é a Venezuela chavista. Acrescente-se que, por aqui, ainda sobrevivem as ideias comunistas, das quais o resto do mundo já se desvencilhou.
Com esse tipo de cultura política, a democracia estará sempre em risco.
(Na foto, Torquemada, primeiro inquisidor-geral da Espanha).
Fonte: BLog do ORLANDO TAMBOSI, via CANGABLOG
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