Os arquivos secretos da Marinha revelam como o serviço secreto americano mantinha informantes infiltrados entre os comunistas brasileiros
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Nos tempos da Guerra Fria, a atuação agressiva dos serviços secretos era um meio de ultrapassar as fronteiras da “cortina de ferro”, expressão usada para designar a divisão do mundo em áreas de influência dos Estados Unidos e da extinta União Soviética. Espiões infiltrados em governos, partidos e grupos armados tiveram participação determinante em muitos fatos históricos daquele período. A aura de mistério em torno dos agentes secretos criou mitos e inspirou o cinema e a literatura policial. Esse ambiente que mistura lendas e segredos de Estado forneceu farto material para denúncias e especulações sobre a influência da Central Intelligence Agency (CIA), o serviço secreto dos Estados Unidos, em acontecimentos relacionados à ditadura militar instalada em 1964.
Os arquivos secretos da Marinha obtidos com exclusividade por ÉPOCA ajudam a entender a nebulosa relação dos governos militares brasileiros com a agência de espionagem americana. Esta segunda reportagem sobre o conteúdo de mais de 2 mil páginas produzidas pelo Centro de Informação da Marinha (Cenimar) torna públicos, pela primeira vez, documentos da ditadura que comprovam o envolvimento direto de agentes da CIA em fatos ocorridos no Brasil antes e depois do golpe de 31 de março. Nos arquivos do Cenimar, a que ÉPOCA teve acesso, aparecem descritos dois casos de aliciamento de militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o “Partidão”, pela CIA. Um deles, um ano antes da tomada do poder pelos militares, informação que reforça a tese de envolvimento da CIA na preparação do golpe de 1964. Em março de 1963, segundo os documentos, Manoel dos Santos Guerra Júnior, o Guerrinha, militava no PCB quando recebeu a visita de um estrangeiro. De acordo com a versão documentada pelo Cenimar, o desconhecido falava com sotaque e se apresentou como agente da CIA. Sem fazer cerimônias, convidou o dono da casa para trabalhar como informante remunerado da agência americana.
Aos 30 anos, Guerra Júnior conhecia o PCB por dentro. Filho de um veterano comunista, tinha contatos com dirigentes estaduais do partido e atuava no comitê universitário. Sua primeira reação à oferta, dizem os documentos, foi dizer não. Em outro encontro, o visitante disse que fez a abordagem porque sabia que Guerra Júnior, em troca de dinheiro, colaborava havia algum tempo com o Cenimar e com o Conselho de Segurança Nacional (CSN), órgão de assessoramento direto do presidente da República. A revelação feita pelo visitante quebrou a resistência do brasileiro, de acordo com o relato do Cenimar. Guerra Júnior, afirma o documento, passou a trabalhar para a CIA com salário mensal de 60 mil cruzeiros, mais o aluguel de um apartamento e um emprego formal.
O caso narrado acima ficou registrado em um relatório de cinco páginas do Cenimar, produzido em 1964 e rebatido à máquina em abril de 1970. Para ter uma ideia do tratamento especial dado a essas informações, trata-se de um dos poucos documentos com tarja de “ultrassecreto” no material do Cenimar. Esses documentos fazem parte de um pacote de papéis identificado como Operação Master. A curiosa história de Guerra Júnior é contada em detalhes no texto produzido pela Marinha. Antes de ser aliciado pela CIA, Guerra Júnior recebia por mês, de acordo com o documento, 10 mil cruzeiros do Conselho de Segurança e 20 mil cruzeiros do Cenimar. Ele se tornou, segundo o Cenimar, um militante comunista e triplo agente secreto. O documento diz que o Cenimar continuou remunerando Guerra Júnior mesmo depois que ele passou a trabalhar para a CIA e para o Conselho de Segurança.
Advogado, Guerra Júnior hoje tem 79 anos e mora num apartamento de classe média em Copacabana, no Rio de Janeiro. Em entrevista a ÉPOCA, ele negou ter sido agente da CIA, do CSN e do Cenimar, embora tenha confirmado o uso do apartamento e o nome de pessoas com as quais mantinha relações. “Estas acusações são um absurdo”, diz Guerra Júnior. “Nunca fui informante e também não é verdade que eu tenha tido emprego no CSN. Estas informações são uma falsificação. Estes relatórios devem ter sido forjados por organizações anticomunistas para justificar a verba que recebiam do exterior”, afirma o advogado. Guerra Júnior diz ter sido integrante do PCB desde os 19 anos, alinhado com as orientações de Luiz Carlos Prestes, como o pai. Afirma ainda que, por causa da militância, esteve preso duas vezes. “Disseram no partido que eu era policial e, por isso, me afastei da militância depois do golpe. Eu me senti ameaçado”, diz.
Os documentos da Operação Master reúnem informações sobre o período de 1963 até 1973. As relações do aparato de informação montado pelo regime militar no Brasil com a CIA nessa década permaneceram até hoje obscurecidas pela falta de documentos. O segundo caso relacionado à presença da CIA no Brasil registrado pelos arquivos da Marinha expõe detalhes dessa cooperação. No dia 3 de dezembro de 1972, o Jornal do Brasil publicou uma entrevista de página inteira com um homem de 43 anos que se apresentou como “Agente Carlos” e disse ter sido durante mais de dez anos colaborador direto de Luiz Carlos Prestes, secretário-geral e líder máximo do PCB. Ele afirmou que procurara o jornal para denunciar as “maquinações do Movimento Comunista Internacional”. Sem revelar sua verdadeira identidade, relatou como o PCB funcionava na clandestinidade e deu detalhes sobre as conexões com a União Soviética e com os partidos comunistas da América Latina. Boa parte das declarações do “Agente Carlos” se referia às movimentações de Fued Saad, dirigente do PCB responsável pela seção de relações exteriores do partido, e de Prestes, na época exilado em Moscou. O “Agente Carlos” disse ter-se arrependido da militância comunista depois de duas décadas no partido. Também afirmou que, durante muito tempo, foi assediado para se tornar informante no Brasil da KGB, o serviço secreto soviético. Deu também o nome de dois agentes da KGB no Brasil, Nikolai Blagushin e Victor Yemelin. Quatro dias depois da entrevista, o JB publicou a identidade verdadeira do denunciante. O “Agente Carlos” se chamava Adauto Alves dos Santos, integrante da seção de relações exteriores do PCB e auxiliar direto de Prestes.
A atitude de Adauto ao buscar o jornal intrigou alguns dirigentes do PCB. Eles suspeitaram que a CIA tivesse participação no aparecimento público do auxiliar de Prestes. Naqueles anos, vários integrantes da cúpula do partido haviam sido procurados por agentes americanos, mas não havia provas da ação da CIA no episódio. Os arquivos da Marinha sugerem que a entrevista do “Agente Carlos” tenha sido orientada pela CIA. No dia 15 de setembro de 1972, um dos principais oficiais do Cenimar enviou ao então diretor do órgão, almirante Joaquim Coutinho Neto, dois documentos sobre a Operação Sombra, ambos relacionados à entrevista de Adauto. Um dos papéis tem o timbre do SNI e a inscrição “Presidência da República”. Em cinco páginas manuscritas, relata a formação de dois grupos de trabalho, um em Brasília e outro no Rio, ambos com representantes do SNI, do Cenimar e da CIA. O grupo do Rio tinha a missão de, entre outras medidas, criar condições para ouvir, com toda a segurança e sigilo, o “elemento infiltrado” pela CIA no Movimento Comunista Internacional (MCI). O homem foi tratado como “Sr. Sombra”. O plano relatado no documento incluía uma entrevista aos meios de comunicação para denunciar as “manobras do MCI”. Foi o que aconteceu nas páginas do Jornal do Brasil menos de três meses depois.
Um relatório preparado para o almirante Coutinho diz que o “informante” foi entrevistado pelo Cenimar na presença de um representante da CIA. O nome de Adauto, ou do “Agente Carlos”, não é citado no documento, mas o cruzamento das informações do Cenimar com a reportagem do Jornal do Brasil sugere que se trata da mesma pessoa. As referências ao comunismo internacional, à política latino-americana e ao comunista Fued Saad e à KGB são coincidentes. O “informante” também fala ao Cenimar de Nikolai Blagushin e Victor Yemelin, os dois soviéticos que mantinham contato com o PCB no Brasil.
A aparição pública de Adauto cumpriu um cronograma recusado por outros comunistas. Um dirigente do partido, Armênio Guedes, hoje com 88 anos e residente em São Paulo, diz que certa vez foi procurado por um sujeito com aparência de latino que, na opinião dele, era da CIA. “Ele me disse que sabia de minhas divergências com a ala do partido que defendia a luta armada e gostaria de informações. Assustado, eu disse que não podia fazer o trabalho. Alguns dias depois, por segurança, a direção do partido me mandou para o Chile”, afirma Guedes. Outro antigo dirigente do PCB, Givaldo Siqueira, afirma que sabia da infiltração da CIA no partido desde antes do golpe. “Os companheiros que eram abordados pela CIA e nos avisavam eram mandados para o exterior, mas não sabíamos de todos que eram procurados”, diz Siqueira.
Um fato ocorrido em 1987 deixou os comunistas ainda mais intrigados. Durante uma comemoração na Embaixada da União Soviética em Brasília pelos 70 anos da revolução russa, o dirigente comunista Salomão Malina reconheceu Adauto dos Santos entre os presentes. Revoltado, Malina pediu aos integrantes do PCB que se retirassem com ele. No dia seguinte, três representantes do partido estiveram na embaixada para pedir explicações. Não tiveram resposta. Na cúpula do “Partidão” ficou a suspeita de que Adauto também fora agente da KGB, além de informante da CIA. ÉPOCA tentou localizar Adauto em Brasília, em seu último endereço conhecido, mas o porteiro do prédio disse que ele não morava mais no local.
O envolvimento dos Estados Unidos com a ditadura brasileira pouco aparece em documentos oficiais. Registros revelam que, desde 1962, a CIA informava o governo americano das movimentações militares e civis contra o governo João Goulart. Os americanos negam ter participado diretamente do golpe que derrubou o presidente João Goulart em 1964 e colocou o marechal Humberto Castello Branco no poder – embora tenham mobilizado navios de guerra e petroleiros rumo ao litoral brasileiro no episódio conhecido como Operação Brother Sam. Numa carta escrita ao historiador Ronaldo Costa Couto, chefe da Casa Civil no governo José Sarney, o embaixador dos EUA no Brasil na ocasião do golpe, Lincoln Gordon, disse que o objetivo da frota era ajudar cidadãos americanos a deixar o Brasil se eclodisse uma guerra civil. “Estes arquivos da Marinha são fundamentais para o esclarecimento do passado recente do Brasil”, afirmou Costa Couto a ÉPOCA.
O historiador americano Peter Kornbluh, analista do Arquivo de Segurança Nacional dos EUA, afirma que até hoje não haviam aparecido documentos com referências diretas à contratação pela CIA de agentes no Brasil. “Sabemos que existiram operações secretas da CIA na América Latina”, afirma Kornbluh. “Mas não conheço documentos que mostrem atividades assim no Brasil.” Os documentos revelados por ÉPOCA, segundo Kornbluh, podem suscitar novas buscas nos arquivos da CIA. “Com esses papéis, podemos tentar desclassificar documentos da CIA (referentes a essas atividades no Brasil)”, diz. Segundo ele, é um processo longo, que pode demorar entre quatro e cinco anos.
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