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quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Cólera no Haiti - Brasileiros querem a condenação da ONU

Por Marcelo Auler

Numa iniciativa inédita, a Faculdade de Direito de Santa Maria (Fadisma) ofereceu à Comissão Interamericana de Direitos Humanos denúncia contra a Organização das Nações Unidas (ONU). O objetivo é responsabilizá-la pela disseminação da cólera no Haiti a partir da base militar da Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti (Minustah), no departamento (estado) de Mirebalais, desde outubro de 2010.
Pelos dados oficiais da Organização Pan-Americana, até agosto passado foram registrados um total de 439.846 contaminações e 6.309 mortes no Haiti em decorrência da cólera e 17.206 contaminações e 303 mortes na República Dominicana, além de outros casos em países no continente americano, de vítimas contaminadas a partir de viagens feitas ao Haiti.
A ação propõe o reconhecimento oficial de que a ONU violou — e continua violando — os “artigos 4 (direito à vida) e 5 (direito à integridade pessoal) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos [e/ou art. I (direito à vida) da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem], além de desrespeitar o artigo 1 n.3 (promoção e estímulo do respeito aos direitos humanos) da própria Carta da Organização das Nações Unidas".
Através desta iniciativa, os autores da ação buscam a partir do reconhecimento oficial da responsabilidade da ONU, que a entidade faça um pedido de desculpas oficial, solene e público aos povos haitiano e dominicano; institua controle sobre as condições de saúde dos militares que participam de suas Missões de Paz; repare economicamente o Haiti e a República Dominicana, bem como os Estados Unidos, o México, a Venezuela e o Chile, sem prejuízo das reparações devidas às pessoas contaminadas e às famílias das vítimas fatais da cólera; crie novos centros de tratamento e prevenção da cólera no Haiti e fortaleça os já existentes, com recursos financeiros e logísticos, até a erradicação da epidemia; e arrecade um fundo de, no mínimo, US$ 500 milhões para a criação de um sistema público de saúde no Haiti.
A ação é fruto de um trabalho humanitário que a Fadisma vem praticando desde 2007, através de um convênio com entidades canadenses, de solidariedade ao povo haitiano, por meio do Projeto Brasil-Haiti. A inicial apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, assinada pelo diretor da faculdade e coordenador do Projeto Brasil-Haiti, Eduardo de Assis Brasil Rocha, resultou de um trabalho da professora de Direito Internacional e Organizações Internacionais e vice-coordenadora do Projeto Brasil-Haiti, Cristine Koehler Zanella, com a consultoria de Maria Carolina Silveira Beraldo.
“Trata-se de ação humanitária por meio da qual colocamos solidariamente nosso conhecimento jurídico a serviço dos haitianos e demais povos afetados”, diz Maria Carolina. Ela explica que, “na prática, mais de 5% da população do país já foi contaminada por uma doença transportada do estrangeiro por meio de soldados nepaleses a serviço da ONU. Até o momento — e mesmo com todas as comprovações científicas da origem da epidemia — sequer um pedido de desculpas oficial a Organização formulou com relação à introdução (mesmo que não intencional) dessa doença desconhecida no país por aproximadamente 100 anos”, diz Maria Carolina.
A denúncia, submetida no âmbito do Sistema Interamericano de proteção aos Direitos Humanos, tem 29 páginas e a íntegra, com todos os documentos em anexo, em quatro idiomas, está disponibilizada no site da faculdade. “No mesmo endereço eletrônico é possível que as comunidades nacional e internacional manifestem seu apoio, ação que tem a importante finalidade de sensibilizar os membros da Comissão para a causa, evitando assim um arquivamento silencioso da questão de saúde mais dramática que um povo das Américas vivencia hoje”, insiste Maria Carolina.
De maneira geral, a ação responsabiliza a ONU por ter levado para o Haiti um soldado do Nepal, portador do vibrião do cólera, que disseminou a doença ao defecar em um rio, por conta da falta de tratamento sanitário no acampamento dos militares da tropa das Nações Unidas.
Segundo a inicial, “o presente caso representa uma oportunidade ímpar para o Sistema Interamericano de Direitos Humanos afirmar, no plano regional, a responsabilidade internacional de organizações internacionais em decorrência de um ilícito que, pelas conhecidas deficiências materiais e de acesso à Justiça das vítimas, poderia se perpetuar como um caso histórico, provocado por mera 'confluência de circunstâncias' — tese inaceitável defendida pela Denunciada —, o que levaria à irresponsabilidade coletiva e à ausência de consequências jurídicas”.
Para justificar o pedido, a inicial lembra a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, que “além de enunciar os direitos protegidos, municiou o Sistema Interamericano de dois órgãos encarregados de sua proteção e garantia, de forma tanto preventiva quanto repressiva: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos”.
Prosseguindo, diz que a “Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos aprovou a possibilidade de consideração, por parte da Comissão, de comunicações sobre situações relativas a violações de direitos por parte de Estados-membros da OEA que não são parte da Convenção”.
Para os autores da ação, “o principal critério determinante da competência da Comissão diz respeito à dimensão espacial do território americano, não se restringindo à adesão formal do sujeito de direito internacional a um documento específico”. Com isto, defendem “a possibilidade do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos conhecer, inicialmente por meio da Comissão Interamericana, da denúncia ora formulada contra a Organização das Nações Unidas por violação dos direitos à vida e à integridade física de habitantes das Américas, detentores de nacionalidade de um Estado-membro da OEA, mormente haitianos e dominicanos, ou ainda não-americanos que se encontravam em território das Américas quando dos acontecimentos”.
Eles insistem que “se a Comissão pode conhecer até mesmo de denúncias com relação a Estados-membros da OEA que não fazem parte da Convenção Americana pode, com maior razão, fazê-lo se a denúncia versar sobre violação cuja responsabilidade recai sobre um sujeito internacional derivado que atua em território regional e em uma dimensão espacial sob soberania de um Estado membro da OEA”.
Eles entendem que a ONU não pode “escapar da responsabilidade que nasce do dano que o seu comportamento lesivo possa produzir sobre outros sujeitos de direito. Admitir o contrário é afirmar que não existe consequência que advenha da violação da ordem jurídica internacional por parte da ONU; é aceitar, no limite, a inexistência da obrigatoriedade do direito internacional, desnaturando, assim, a própria ideia de ordem pública internacional”.
A ação diz ainda que não cabe repassar a responsabilidade pelos ilícitos ao Estado que “enviou os soldados para compor a missão”. E vai além: “muito embora essa via regressiva possa, eventualmente, ser posteriormente considerada, a vinculação direta em relação à atuação em campo haitiano não se dá com o Estado do Nepal, e sim com os “capacetes azuis””.

Origem do surto
A inicial detalha a forma como o surto da doença chegou ao Haiti e se alastrou ao longo do rio Artibonite, citando inúmeros estudos realizados por especialistas. Em um trecho ela descarta “o terremoto ou mutações naturais como possíveis causas do surto: “O foco infeccioso partiu do campo dos nepaleses”; “o ponto de origem está precisamente localizado” e “a explicação mais lógica é a introdução massiva de material fecal no curso do rio Artibonite de uma só vez”, afirmou o epidemiologista Renaud Piarroux, enviado pelo governo francês a pedido deste e do Ministério da Saúde haitiano”, citam.

Criticam fortemente o resultado de um “painel”, encomendado pela própria ONU a quatro especialistas encarregados de “investigar e procurar determinar a origem do surto de cólera de 2010 no Haiti”. Segundo a ação, “ao mesmo tempo em que todas as evidências apontavam para uma conclusão indicativa das tropas nepalesas da ONU como fonte da contaminação, o painel, de forma surpreendente, pois contraditória em relação a tudo que acabara de constatar, evitou atribuir responsabilidade às tropas concluindo que 'o surto de cólera no Haiti foi causado pela confluência das circunstâncias descritas anteriormente e não pela culpa ou pela deliberada ação de um grupo ou de um indivíduo'”
Dizem os autores que todos os “pesquisadores demonstram como a resistência da ONU em assumir a responsabilidade pela epidemia contribui(u) para a rápida disseminação da doença, para a inadequada alocação de recursos (concentrados na região urbana em detrimento das zonas rurais, mais afetadas em função do modelo de contaminação) e para o fracasso no desenho de projetos de longo prazo para o enfrentamento da epidemia”.
Segundo eles, a falta de um procedimento mais imediato faz com que os riscos continuem, pois “recentes informações disponíveis dão nota de que a Organização mantém a prática irresponsável e inconsequente de despejo de dejetos fecais humanos sem tratamento em áreas potencialmente contaminadoras das águas haitianas, como aconteceu em 6 de agosto, a poucos metros do rio Guayamouc, assumindo assim o risco de provocar novas contaminações e causando desespero entre a população”. Daí a necessidade, como registra o pedido, de serem adotadas medidas de saneamento a começar pelos acampamentos militares das tropas das Nações Unidas.


Marcelo Auler é jornalista.

Fonte: CONJUR

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