Por Marcelo Auler
Numa iniciativa inédita, a Faculdade de Direito de Santa Maria (Fadisma) ofereceu à Comissão Interamericana de Direitos Humanos denúncia
contra a Organização das Nações Unidas (ONU). O objetivo é
responsabilizá-la pela disseminação da cólera no Haiti a partir da base
militar da Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti
(Minustah), no departamento (estado) de Mirebalais, desde outubro de
2010.
Pelos dados oficiais da Organização Pan-Americana, até
agosto passado foram registrados um total de 439.846 contaminações e
6.309 mortes no Haiti em decorrência da cólera e 17.206 contaminações e
303 mortes na República Dominicana, além de outros casos em países no
continente americano, de vítimas contaminadas a partir de viagens feitas
ao Haiti.
A ação propõe o reconhecimento oficial de que a ONU
violou — e continua violando — os “artigos 4 (direito à vida) e 5
(direito à integridade pessoal) da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos [e/ou art. I (direito à vida) da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem],
além de desrespeitar o artigo 1 n.3 (promoção e estímulo do respeito
aos direitos humanos) da própria Carta da Organização das Nações
Unidas".
Através desta iniciativa, os autores da ação buscam a
partir do reconhecimento oficial da responsabilidade da ONU, que a
entidade faça um pedido de desculpas oficial, solene e público aos povos
haitiano e dominicano; institua controle sobre as condições de saúde
dos militares que participam de suas Missões de Paz; repare
economicamente o Haiti e a República Dominicana, bem como os Estados
Unidos, o México, a Venezuela e o Chile, sem prejuízo das reparações
devidas às pessoas contaminadas e às famílias das vítimas fatais da
cólera; crie novos centros de tratamento e prevenção da cólera no Haiti e
fortaleça os já existentes, com recursos financeiros e logísticos, até a
erradicação da epidemia; e arrecade um fundo de, no mínimo, US$ 500
milhões para a criação de um sistema público de saúde no Haiti.
A
ação é fruto de um trabalho humanitário que a Fadisma vem praticando
desde 2007, através de um convênio com entidades canadenses, de
solidariedade ao povo haitiano, por meio do Projeto Brasil-Haiti.
A inicial apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
assinada pelo diretor da faculdade e coordenador do Projeto
Brasil-Haiti, Eduardo de Assis Brasil Rocha, resultou de um trabalho da
professora de Direito Internacional e Organizações Internacionais e
vice-coordenadora do Projeto Brasil-Haiti, Cristine Koehler Zanella, com
a consultoria de Maria Carolina Silveira Beraldo.
“Trata-se de
ação humanitária por meio da qual colocamos solidariamente nosso
conhecimento jurídico a serviço dos haitianos e demais povos afetados”,
diz Maria Carolina. Ela explica que, “na prática, mais de 5% da
população do país já foi contaminada por uma doença transportada do
estrangeiro por meio de soldados nepaleses a serviço da ONU. Até o
momento — e mesmo com todas as comprovações científicas da origem da
epidemia — sequer um pedido de desculpas oficial a Organização formulou
com relação à introdução (mesmo que não intencional) dessa doença
desconhecida no país por aproximadamente 100 anos”, diz Maria Carolina.
A
denúncia, submetida no âmbito do Sistema Interamericano de proteção aos
Direitos Humanos, tem 29 páginas e a íntegra, com todos os documentos
em anexo, em quatro idiomas, está disponibilizada no site
da faculdade. “No mesmo endereço eletrônico é possível que as
comunidades nacional e internacional manifestem seu apoio, ação que tem a
importante finalidade de sensibilizar os membros da Comissão para a
causa, evitando assim um arquivamento silencioso da questão de saúde
mais dramática que um povo das Américas vivencia hoje”, insiste Maria
Carolina.
De maneira geral, a ação responsabiliza a ONU por ter
levado para o Haiti um soldado do Nepal, portador do vibrião do cólera,
que disseminou a doença ao defecar em um rio, por conta da falta de
tratamento sanitário no acampamento dos militares da tropa das Nações
Unidas.
Segundo a inicial, “o presente caso representa uma
oportunidade ímpar para o Sistema Interamericano de Direitos Humanos
afirmar, no plano regional, a responsabilidade internacional de
organizações internacionais em decorrência de um ilícito que, pelas
conhecidas deficiências materiais e de acesso à Justiça das vítimas,
poderia se perpetuar como um caso histórico, provocado por mera
'confluência de circunstâncias' — tese inaceitável defendida pela
Denunciada —, o que levaria à irresponsabilidade coletiva e à ausência
de consequências jurídicas”.
Para justificar o pedido, a inicial
lembra a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, que “além de
enunciar os direitos protegidos, municiou o Sistema Interamericano de
dois órgãos encarregados de sua proteção e garantia, de forma tanto
preventiva quanto repressiva: a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos”.
Prosseguindo,
diz que a “Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos
aprovou a possibilidade de consideração, por parte da Comissão, de
comunicações sobre situações relativas a violações de direitos por parte
de Estados-membros da OEA que não são parte da Convenção”.
Para
os autores da ação, “o principal critério determinante da competência da
Comissão diz respeito à dimensão espacial do território americano, não
se restringindo à adesão formal do sujeito de direito internacional a um
documento específico”. Com isto, defendem “a possibilidade do Sistema
Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos conhecer, inicialmente
por meio da Comissão Interamericana, da denúncia ora formulada contra a
Organização das Nações Unidas por violação dos direitos à vida e à
integridade física de habitantes das Américas, detentores de
nacionalidade de um Estado-membro da OEA, mormente haitianos e
dominicanos, ou ainda não-americanos que se encontravam em território
das Américas quando dos acontecimentos”.
Eles insistem que “se a
Comissão pode conhecer até mesmo de denúncias com relação a
Estados-membros da OEA que não fazem parte da Convenção Americana pode,
com maior razão, fazê-lo se a denúncia versar sobre violação cuja
responsabilidade recai sobre um sujeito internacional derivado que atua
em território regional e em uma dimensão espacial sob soberania de um
Estado membro da OEA”.
Eles entendem que a ONU não pode “escapar
da responsabilidade que nasce do dano que o seu comportamento lesivo
possa produzir sobre outros sujeitos de direito. Admitir o contrário é
afirmar que não existe consequência que advenha da violação da ordem
jurídica internacional por parte da ONU; é aceitar, no limite, a
inexistência da obrigatoriedade do direito internacional, desnaturando,
assim, a própria ideia de ordem pública internacional”.
A ação diz
ainda que não cabe repassar a responsabilidade pelos ilícitos ao Estado
que “enviou os soldados para compor a missão”. E vai além: “muito
embora essa via regressiva possa, eventualmente, ser posteriormente
considerada, a vinculação direta em relação à atuação em campo haitiano
não se dá com o Estado do Nepal, e sim com os “capacetes azuis””.
Origem do surto
A inicial detalha a forma como o surto da doença chegou ao Haiti e se
alastrou ao longo do rio Artibonite, citando inúmeros estudos realizados
por especialistas. Em um trecho ela descarta “o terremoto ou mutações
naturais como possíveis causas do surto: “O foco infeccioso partiu do
campo dos nepaleses”; “o ponto de origem está precisamente localizado” e
“a explicação mais lógica é a introdução massiva de material fecal no
curso do rio Artibonite de uma só vez”, afirmou o epidemiologista Renaud
Piarroux, enviado pelo governo francês a pedido deste e do Ministério
da Saúde haitiano”, citam.
Criticam fortemente o resultado de um
“painel”, encomendado pela própria ONU a quatro especialistas
encarregados de “investigar e procurar determinar a origem do surto de
cólera de 2010 no Haiti”. Segundo a ação, “ao mesmo tempo em que todas
as evidências apontavam para uma conclusão indicativa das tropas
nepalesas da ONU como fonte da contaminação, o painel, de forma
surpreendente, pois contraditória em relação a tudo que acabara de
constatar, evitou atribuir responsabilidade às tropas concluindo que 'o
surto de cólera no Haiti foi causado pela confluência das circunstâncias
descritas anteriormente e não pela culpa ou pela deliberada ação de um
grupo ou de um indivíduo'”
Dizem os autores que todos os
“pesquisadores demonstram como a resistência da ONU em assumir a
responsabilidade pela epidemia contribui(u) para a rápida disseminação
da doença, para a inadequada alocação de recursos (concentrados na
região urbana em detrimento das zonas rurais, mais afetadas em função do
modelo de contaminação) e para o fracasso no desenho de projetos de
longo prazo para o enfrentamento da epidemia”.
Segundo eles, a
falta de um procedimento mais imediato faz com que os riscos continuem,
pois “recentes informações disponíveis dão nota de que a Organização
mantém a prática irresponsável e inconsequente de despejo de dejetos
fecais humanos sem tratamento em áreas potencialmente contaminadoras das
águas haitianas, como aconteceu em 6 de agosto, a poucos metros do rio
Guayamouc, assumindo assim o risco de provocar novas contaminações e
causando desespero entre a população”. Daí a necessidade, como registra o
pedido, de serem adotadas medidas de saneamento a começar pelos
acampamentos militares das tropas das Nações Unidas.
Marcelo Auler é jornalista.
Fonte: CONJUR
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