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sexta-feira, 6 de julho de 2012

Critérios subjetivos de julgamento

Os juízes paranaenses julgam muito mais baseados em critérios pessoais extraídos do caso concreto do que na teoria. É o que afirmam pesquisadores da Universidade Federal do Paraná em estudo publicado, nesta sexta-feira (6/7), pelo jornal paranaense Gazeta do Povo.

A conclusão é polêmica. Adstritos à lei e à jurisprudência, os magistrados deveriam, em tese, aplicar às questões que chegam aos gabinetes normas e entendimentos pacificados. No entanto, é comum o uso de princípios gerais do Direito para ajudar quando há regras conflitantes. Além disso, qualquer norma pode ser interpretada, o que abre um leque de entendimentos possíveis.

É o que afirma o juiz Fernando Ganem, presidente da Associação dos Magistrados do Paraná. “As lacunas deixadas pela lei exigem a aplicação de princípios”, explica. Segundo ele, a jurisprudência é saída para os chamados casos “de massa”, em que as teses são repetidas e há uma coleção de decisões a respeito. “Já em questões polêmicas, a ideologia e o posicionamento social prévio influenciam na decisão, justificada, depois, com a doutrina e a jurisprudência.”

Para o juiz, o comportamento não gera insegurança jurídica. “Há divergência na própria jurisprudência. Há câmaras de um mesmo tribunal que decidem de forma diferente os mesmos temas. Divergir é natural do ser humano”, opina.

O criminalista Edward Rocha de Carvalho , do escritório Miranda Coutinho & Advogados, discorda. Para ele, a prática no Direito Criminal pode levar a injustiças, “principalmente quando se leva em consideração o sistema inquisitorial brasileiro, que confere poderes ao juiz que ele não deveria ter, justamente para ser a ele possível fugir das armadilhas das conclusões precipitadas e da tomada da iniciativa como se fosse parte”, diz. Para ele, a pesquisa comprova o que o senso comum já previa: “Chega-se antes a uma conclusão sobre o caso e depois se buscam os meios de a sustentar. Juízes, como são humanos, também agem assim, apesar de a Constituição e a lei não lhes darem muita margem para manobras hermenêuticas.”

Já para o advogado Arnold Wald, um fator tem estado cada vez mais presente nas decisões, fruto de uma maior preocupação com a eficiência: “Há uma ponderação entre o exame das consequências do julgamento e a melhor distribuição da Justiça”, afirma. “É o direito do possível, ou seja, o melhor direito que se pode assegurar às partes em determinadas condições. É o que chamamos o pragmatismo ético.”

Crítico da liberdade reclamada pelos juízes para decidir, o procurador de Justiça do Rio Grande do Sul, professor da Unisinos e presidente de honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Lênio Streck, comentou, por e-mail, a reportagem:

"Os dados não surpreendem. Apenas confirmam a crise de paradigma que venho denunciando há anos. Nossa formação jurídica, nosso ensino, nossas práticas, encontram-se arraigadas a um paradigma filosófico ultrapassado. Sei que é dificil dizer isso, mas falta filosofia. Falta compreensão. Nosso imaginário juridico está mergulhado na filosofia da consciência. Nele, cada juiz é o "proprietário dos sentidos". É um equívoco dizer que sentença vem de sentire. Essa é uma das grandes falácias construídas no Direito. É o que eu chamo de "solipsismo", que é a tradução de selbstsüchtiger, o sujeito egoísta da modernidade.

Meu livro O que é isto - decido conforme minha consciência? denuncia esse fenômeno. Na democracia, as decisões não podem ser fruto da vontade individual ou da ideologia ou, como queiram, da subjetividade do julgador. A primeira coisa que se deveria dizer a um juiz, quando ele entra na carreira é: não julgue conforme o que voce acha ou pensa. Julgue conforme o direito. Julgue a partir de princípios e não de políticas. Aceitar que as decisões são fruto de uma 'consciência individual' é retroceder mais de 100 anos. E é antidemocrático. Meu direito depende de uma estrutura, de uma intersubjetividade, de padrões interpretativos e não da 'vontade'.

Quem disse que a interpretação era um ato de vontade foi Kelsen. E todos sabem que ali, em Kelsen, estava o ovo da serpente do decisionismo e do subjetivismo. Juiz não escolhe, quem escolhe é o cidadão, na sua razão prática cotidiana. Juiz tem responsabilidade política. Ele decide. A consciência do juiz não é um ponto cego ou isolado da cultura. Quando o desembargador diz que não dá para esperar que o juiz se separe de seus conceitos politicos e religiosos etc, tem um problema: ninguém nessa altura da campeonato acha que o juiz é uma alface ou que esteja amarrado aos textos como no iluminismo. Desde há muito que a hermenêutica, principalmente a filosófica, superou isso, na medida em que a carga de pré-conceitos não é um mal em si, mas é uma aliada. Interpretar não é atribuir sentidos de forma arbitrária, mas é fazê-lo a partir do confronto com a tradição, que depende da suspensão dos pré-conceitos. Se o juiz não consegue fazer isso, não pode e não deve ser juiz. São os dois corpos do rei, como diria Kantorovicz. Dworkin diz muito bem que não importa o que o juiz pensa; não importa a sua subjetividade. Suas decisões devem obedecer a integridade e a coerência do Direito.

Mas isso tudo quer dizer: precisamos sofisticar a discussão no Brasil acerca de como se aplica o Direito. Urgentemente. O Direito não pode ser simplificado, estandartizado. O problema é que estamos colonizados por uma baixa literatura, que confunde conceitos e teorias. Basta ver os concursos públicos, que mais estão preocupados em fazer pegadinhas do que perquirir questões reflexivas. Hoje, já não se estuda para concurso; treina-se.

Outra coisa: quando se diz que o juiz primeiro decide e, depois, fundamenta, cai-se em uma armadilha filosófica. É o famoso "livre convencimento motivado". Como posso admitir que, na democracia, alguém tenha "livre convencimento"? E como é possível que alguém acredite que a "motivação" resolva o problema? A questão é de raiz. De fundamento. Por isso tudo, não me surpreende a pesquisa. Se a estendermos aos tribunais superiores, com certeza os resultados serão similares."

Leia a reportagem:

Como julgam os magistrados

Estudo da UFPR indica que juízes paranaenses buscam a solução para o caso concreto, dentro daquilo que eles entendem como Justiça, para depois encontrar o Direito

por Sandro Moser

Sentenças baseadas na interpretação das teorias jurídicas ou com fundamentos nas circunstâncias do caso concreto? Convicções pessoais dos magistrados influem nas decisões a ponto de extrapolar os limites da legislação? Afinal, como os nossos juízes têm decidido? No debate entre pesquisadores, advogados e magistrados, há pontos de vista bem diferentes e conclusões conflitantes.

No meio acadêmico, há quem perceba tendência de uma inversão da lógica do Direito nas sentenças proferidas pelos juízes atualmente, em que o critério pragmático de seletividade decisional tem prevalecido. Estudo elaborado por pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) indica que os juízes paranaenses julgam muito mais baseados em critérios de conveniência extraídos do caso concreto, em vez de utilizar a teoria ou um critério geral.

Depoimento

“Sempre estará presente carga cultural e formação”

"Não se pode generalizar o raciocínio de que os juízes, em seus julgamentos, convencem-se primeiramente pelos aspectos materiais e pessoais das partes, para, em seguida, buscar teorias jurídicas e legislação que possam fundamentar sua conclusão, como se a sentença fosse sempre uma retórica calcada em ideologias. Isso pode acontecer como mecanismo natural relacionado, muitas vezes, à formação do magistrado, mas não como modelo absoluto de julgamento, que resulta de orientações diversas, dentre elas a jurisprudencial, esta cada vez mais em voga.

Num primeiro olhar, esse mecanismo estaria normalmente obedecendo ao aforismo da mihi factum, dabo tibi jus, significando que o magistrado aplica o Direito ao fato, ainda que aquele (o Direito) não tenha sido invocado na petição. E, se invocado, o juiz pode conferir aos fatos qualificação jurídica diversa da atribuída pelo autor da demanda. O direito brasileiro prestigia esse aforismo, conjuntamente com o jura novit curia (o juiz conhece o direito).

O tema traz à tona, uma vez mais, a neutralidade e a imparcialidade do juiz. A imparcialidade é, sim, princípio de rigor observância nos julgamentos (o juiz não pode ser suspeito ou impedido para determinado julgamento).

Todavia, tem-se considerado um mito o juiz neutro, na visão de que, como produto cultural de seu meio, suas decisões receberão a influência de sua formação jurídica, de suas crenças religiosas, de sua personalidade e de sua condição econômica. Há estudos sobre o perfil da magistratura (origem econômica e social do magistrado) e suas consequências na interpretação das leis ou, a melhor dizer, na aplicação do direito ao caso concreto.

Por tudo isso, encontramos decisões diferentes para situações semelhantes, uma vez que, na interpretação dos fatos e da lei, sempre estará presente a carga cultural e a formação do magistrado."

José Maurício Pinto de Almeida, desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná

“Em vez de alguns julgadores buscarem o Direito para encontrar a solução, eles buscam a solução – dentro daquilo que entendem como Justiça – para depois buscarem o Direito”, constata o professor de Direito Constitucional da UFPR, Emerson Gabardo, um dos pesquisadores envolvidos no estudo.

Para Gabardo, entre os magistrados há uma busca da sentença que faça Justiça no caso concreto, em detrimento de decisões que procurem justificar teorias doutrinárias. A mesma constatação é feita na prática diária por advogados que percebem que alguns entendimentos de tribunais variam de caso para caso, de julgador para julgador, e, em alguns casos, de dia para dia. “Um mesmo relator em casos análogos foi capaz de aplicar duas teorias diferentes para a resolução do mesmo problema, sem nem ao mesmo mencionar que houve mudança de entendimento”, disse um advogado, que pediu para não ser identificado.

Decisões que levam muito mais em conta as circunstâncias do caso concreto no convencimento dos magistrados são, explica Gabardo, em parte, influenciadas pela “mudança de paradigma” das teorias do chamado neo-constitucionalismo ou pós-positivismo, que abrem as possibilidades hermenêuticas do magistrado fazendo com que os princípios constitucionais também funcionem como regras. “Antes haviam padrões mais bem estabelecidos e a vinculação formal à lei era um mecanismo de segurança jurídica importante.”

Para ele, atualmente os juízes estão muito mais preocupados, conscientemente ou não, a fazer a justiça conforme seus próprios critérios subjetivos. “É paradoxal, mas a abertura para os princípios acaba acarretando uma ampliação da influência da consciência na decisão. Formalmente a decisão é objetiva, materialmente não. Isso já acontecia no auge do positivismo, mas de forma muito mais tímida e controlável”, compara.

Insegurança

Esta amplitude aumentada das possibilidades da sentença, no entanto, é motivo de preocupação para uma ala mais conservadora da advocacia. “Temos hoje quase 16 mil juízes, cada um com formação ou convicção pessoal diversa. Ao se permitir várias interpretações cria-se uma insegurança muito grande”, avalia o advogado Ives Gandra Martins Júnior.

O advogado e pesquisador da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul João Gabriel Figueiró Salzano defende que para a decisão judicial não se configurar em arbitrariedade é necessário que nas sentenças constem os fundamentos que levaram o juiz a escolher aquela opção (dentre as opções contidas na lei), bem como os fundamentos que levaram o juiz a rejeitar outro tipo de alternativa.

“A fundamentação se configura como meio de controle da atuação do juiz em seu poder discricionário”, explica. Ele vê como “anacrônica” a ideia de que se esperava do juiz um distanciamento do conflito submetido à sua apreciação, “como se o resultado final do processo pudesse prescindir da atuação mais efetiva e direta desse sujeito da relação jurídica processual.”

Volume de processos prejudica análise

A avalanche de processos em todas as esferas do Judiciário é outro fator que pode influenciar na qualidade das sentenças produzidas no Brasil. De acordo com o Anuário da Justiça 2012, o Poder Judiciário conta em todo país hoje, em todos os graus de jurisdição, com cerca de 80 milhões de feitos em tramitação. A demanda faz com que os magistrados atuem pressionados na tentativa de atingir as metas de eficiência estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Nestes casos, a falta de tempo pode prejudicar a análise de todos os aspectos legais e materias dos julgados.

Para o vice-presidente do Tribuna Regional Federal da 1ª Região, José Amilcar de Queiroz Machado, o grande volume de trabalho obriga os juízes a, além de se preocuparem com os aspectos formais e matérias das decisões, desenvolverem habilidade de administrador. “O juiz não precisa ser gestor, mas tem de estar consciente da necessidade de uma gestão eficiente do Poder Judiciário.”

Machado sustenta que as metas de produtividade fixadas pelo CNJ são necessárias, mesmo que muito ambiciosas. “O Judiciário chegou a este ponto de estrangulamento porque faltou gestão”, aponta.

Nos tribunais superiores, o número de processo tem caído em um movimento impulsionado pelo uso mais frequente de filtros. Para o advogado Arnoldo Wald, o uso “responsável” destes filtros recursais tem repercutido na celeridade das decisões de forma positiva. Segundo Wald, há também um avanço qualitativo nas decisões. “Os tribunais passaram a enfatizar a eficiência e as consequências econômicas e sociais de suas decisões”, avalia.

Para ele, o Judiciário está entrando em um momento de “pragmatismo ético”. “Não se trata de ativismo judiciário, mas de complementação pelo judiciário do atraso, da obsolência e lacunas legislativas sem que, contudo, se afete a segurança jurídica.”

Revista Consultor Jurídico, 6 de julho de 2012




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