Acusações mais recorrentes estão relacionadas à administração pública.
Ao menos 59 dos 513 deputados federais que tomam posse nesta
terça-feira (1º) chegam à Câmara na condição de réus em ações penais, ou
seja, respondem a processos nos quais são acusados de crimes, de acordo
com levantamento realizado pelo G1 em 61 tribunais, entre eles o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF).
É a segunda vez que o G1 faz um levantamento desse tipo. Em 2007, a pesquisa levantou 74 deputados processados ou investigados por crime (como os critérios usados na época foram diferentes, os números não são comparáveis; saiba as diferenças). O levantamento atual também faz parte de uma série que o G1 vem publicando desde sábado (29), com informações que traçam um perfil da nova Câmara dos Deputados (saiba mais).
Juntos, os 59 deputados do levantamento deste ano respondem a pelo
menos 92 processos – em alguns casos, o deputado é acusado pelo
Ministério Público por mais de um crime. A maioria das acusações se
refere à administração pública, como crime contra a Lei de Licitações,
peculato (quando o funcionário público se apropria de bens ou valores
públicos) e corrupção. Há ainda casos de crime contra o sistema
financeiro, crimes eleitorais e até crimes contra a pessoa, como
homicídio e lesão corporal.
O desembargador Fernando Tourinho Neto, que atua no Tribunal Regional
Federal da 1ª Região e é vice-presidente da Associação dos Juízes
Federais (Ajufe), afirma que é preciso cautela para não condenar
antecipadamente um cidadão que responde a processo judicial.
“Uma pessoa ser denunciada não quer dizer que praticou o fato. Isso vai
para instrução, para ser apurado. Pode ser condenada, mas pode ser
inocentada. A Constituição prevê a presunção de inocência, até que haja
uma condenação transitada em julgado. A Constituição é para todos, o
direito protege a todos nós”, afirma o magistrado.
Lei da Ficha Limpa
Em 2007, no primeiro levantamento feito pelo G1, a Lei
da Ficha Limpa ainda estava em discussão. Ela só começou a ser aplicada
para a eleição do ano passado, determinando a inelegibilidade de
políticos condenados em decisão colegiada, seja em ação criminais ou
cível.
Dos 59 deputados da nova Câmara processados por crime, quatro já foram
condenados em decisões monocráticas, ou seja, de apenas um juiz, e estão
recorrendo; quem deve analisar o caso a partir de agora é o Supremo.
Um deles foi condenado por decisão colegiada do próprio STF e chegou a ser barrado pela Lei da Ficha Limpa. No entanto, conseguiu uma liminar para ser diplomado.
O levantamento do G1 foi realizado entre novembro e
janeiro em 61 tribunais: os 27 tribunais de Justiça nos estados e os 27
tribunais regionais eleitorais; os 5 tribunais regionais federais; e os 2
tribunais superiores, o STJ e o STF (clique para ver os critérios adotados pela reportagem). Não foram consultados tribunais militares e tribunais da Justiça do Trabalho.
Além dos deputados federais atualmente réus em ações, o G1
localizou outros 13 já denunciados pelo Ministério Público por crimes,
mas não contabilizou esses casos porque a Justiça ainda não decidiu se
aceita ou não a denúncia.
Além disso, outros 32 deputados são investigados em inquéritos que
tramitam em tribunais consultados. Esses também não foram computados no
levantamento do G1 porque, nesses casos, os
parlamentares ainda não foram denunciados – a maioria desses inquéritos
se encontra em fase de diligências policiais. Alguns deputados entre os
59 que são réus em ações penais também estão entre os investigados
nesses inquéritos.
Entenda as diferenças de tratamento em um processo criminal | |
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Inquérito Um inquérito nada mais é do que uma investigação. Durante a investigação, é possível que haja o indiciamento, ou seja, a oficialização de que há indícios de que uma pessoa cometeu determinado crime. Nessa fase, o cidadão é somente suspeito e não há nenhuma implicação contra ele. |
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Denúncia Se, ao final da investigação, o promotor ou procurador entender que há provas que apontem para a participação de determinada pessoa em um crime, ele oferece denúncia à Justiça. A Justiça ainda precisa analisar se recebe a denúncia. Se aceitar, o inquérito vira uma ação penal. Caso contrário, o Ministério Público ainda pode recorrer em outras instâncias. Após a denúncia, a pessoa se torna oficialmente acusada do crime. |
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Ação penal Após a Justiça aceitar a denúncia, o acusado vira réu e é aberta uma ação penal. Começa a fase do processo na qual são ouvidos os réus, testemunhas de defesa e testemunhas de acusação. É somente depois disso tudo que o acusado é julgado pelo crime. Mesmo se houver condenação, ainda há uma série de recursos que podem ser apresentados à Justiça para tentar reverter a situação. |
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Trânsito em julgado Alguém só pode ser considerado culpado de um crime se houver condenação transitada em julgado, ou seja, sem possibilidade de novos recursos. |
OAB
Para Ophir Cavalcante, presidente nacional da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), “impressiona” o número de deputados processados.
“Qualquer número desse tipo impressiona. São apurações feitas pelos
ministérios públicos, que estão em processamento. Por isso que
trabalhamos muito pela Lei da Ficha Limpa, para evitar que esse número
fosse ainda maior. Temos que respeitar a presunção de inocência, mas
queremos ser respeitados.”
Para o advogado e procurador da República aposentado Antonio Carlos
Mendes, professor de direito constitucional da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), é natural que deputados respondam a um
número elevado de processos. “O que existe é que essas pessoas estão
muito expostas, e a conseqüência dessa exposição é que têm muito
litígio.”
Foro privilegiado
O artigo 53 da Constituição Federal garante que deputados federais e
senadores sejam julgados apenas no Supremo Tribunal Federal. Todos os
processos contra os deputados federais empossados que tramitam em outros
tribunais serão remetidos para o Supremo, mas não há prazo legal para a
remessa.
De acordo com Maurício Correa, ministro aposentado do STF e
ex-presidente da Corte (2003-2004), mesmo que o deputado seja réu
atualmente, quando o processo “subir” para o Supremo, o procurador-geral
da República precisa dar um novo parecer sobre a denúncia, e o plenário
do tribunal é que decide se o parlamentar continua réu.
“Em função do foro dele ser privilegiado, a ação não é mais do juízo
[tribunal] ao qual ele respondia. Se for ação civil, segue tramitando no
juízo comum. Se for de natureza penal, ela vai pra o Supremo. Se a
denúncia foi recebida no juízo comum, geralmente o Supremo aceita a
mesma denúncia que foi feita, mas precisa passar pelo tribunal. De modo
geral, o Supremo aceita a mesma denúncia. Confirmado o recebimento, ele
continua réu”, explica o ex-presidente da Corte.
Ophir Cavalcante, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),
diz que o foro privilegiado é uma “excrescência” do ponto de vista da
democracia.
“O foro privilegiado foi introduzido no ordenamento jurídico durante o
regime militar, para defender os detentores do poder. É uma criação
puramente desse regime. Depois que acabou o regime de endurecimento
democrático, em vez de ser banido, foi ampliado para um sem número de
autoridades, totalmente em desconformidade com o que acontece em outros
países do mundo.”
Para o desembargador Tourinho Neto, do Tribunal Regional Federal da 1ª
Região (TRF-1), o foro favorece a prescrição [quando se esgota o prazo
em que o réu pode ser condenado por um crime] também por conta do tempo
que leva para os processos transitarem entre os tribunais.
“Isso é uma desgraça porque, [por exemplo], o sujeito não tem foro
privilegiado [e] está respondendo a processo na primeira instância.
[Aí], se elege deputado estadual e então o processo vai para o TJ ou o
TRF, dependendo do fato. Demora para subir [o processo]. Nesse tempo,
ele se elege deputado federal e vai para o Supremo. Isso tudo leva muito
tempo e privilegia o sujeito porque atrasa o julgamento.”
Durante a consulta do G1, foram encontradas diversas
ações penais e inquéritos que acabaram arquivados devido à prescrição do
crime. Eram processos que, em alguns casos, tramitaram por mais de 15
anos sem uma solução final.
O promotor de Justiça de Santa Catarina Affonso Guizzo Neto,
idealizador da campanha “O que você tem a ver com a corrupção?”, do
Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, afirma que a própria
legislação favorece a demora dos julgamentos.
saiba mais
“Não é culpa do Judiciário. É culpa da sistemática processual. Hoje, o
Código de Processo Penal, as leis criminais, dão grande possibilidade
para aquele que tiver um bom advogado empurrar o processo com a barriga e
vir a ocorrer a prescrição”, diz o promotor.
O Senado aprovou no fim do ano passado um novo texto do Código de Processo Penal (CPP), legislação que determina o rito dos processos na esfera criminal. O projeto ainda passará por análise da Câmara dos Deputados.
Entre as mudanças previstas, está a limitação do número de recursos nos
processos criminais; o fim da prisão especial para autoridades e para
quem tem curso superior; e a determinação de dois juízes em cada
processo, um para a fase de instrução, na qual são produzidas as provas,
e outro para o julgamento do acusado.
(Ilustração: Arte/G1)
(*) Participaram da reportagem André Nery, Ardilhes
Moreira, Carolina Iskandarian, Cíntia Paes, Débora Santos, Fabíola
Glênia, Fernanda Nogueira, Flávia Cristini, Gabriela Gasparin, Maria
Angélica Oliveira, Mariana Oliveira, Mariana Pasini, Marília Juste,
Mirella Nascimento e Roberta Steganha.
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