Capa de 'Cidadão do Mundo', de Maria Luiza Tucci Carneiro
Historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro fala em seu novo livro sobre negligência do Brasil em relação aos refugiados judeus do nazifascismo. Ela constata ainda que "o antissemitismo persiste por trás de novas máscaras".
Em seu mais recente livro – Cidadão do Mundo (São Paulo, 2010), a ser lançado na Alemanha durante a Feira do Livro de Frankfurt de 2013 – a historiadora paulista Maria Luiza Tucci Carneiro, atual coordenadora do LEER (Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da Universidade de São Paulo), investiga o papel do Brasil diante do Holocausto e dos judeus refugiados do nazifascismo entre 1933 e 1948.
Esta nova publicação complementa as denúncias contra o Estado Novo já registradas emO Antissemitismo na Era Vargas, publicado em 2001. Na época, a professora da Faculdade de História da Universidade de São Paulo revelou informações até então amplamente ignoradas sobre as circulares secretas emitidas durante o governo Vargas para impedir a imigração de judeus ao Brasil e desmistificou a imagem de ponderação e cordialidade de diversos políticos da época, sobretudo de Oswaldo Aranha, ministro das Relações Exteriores de Getúlio.
Em Cidadão do Mundo, também publicado pela Editora Perspectiva, a pesquisadora aprofunda agora suas investigações sobre o antissemitismo do Estado Novo e do governo Dutra, processando informações de outros 5 mil documentos secretos aos quais teve acesso somente a partir de 1995, com a abertura dos arquivos do Itamaraty e do Deops de São Paulo.
Tomando como pano de fundo a ascensão do nazismo na Alemanha e o agravamento da onda de refugiados judeus com a ocupação alemã do Leste Europeu, a pesquisadora delineia em detalhe o jogo duplo do governo brasileiro, que manteve uma retórica cordial diante dos planos de resgate de refugiados da Liga das Nações, ao mesmo tempo em que fechava – desde muito cedo – as portas do país para os judeus ameaçados pelo extermínio nazista. Revelador é o relato sobre o papel que os diplomatas brasileiros no exterior desempenharam na propagação do discurso antissemita e eugenista do Terceiro Reich no país e no bloqueio não oficial da imigração de judeus até 1948.
As pesquisas de Maria Luiza Tucci Carneiro sobre antissemitismo e racismo, iniciadas em 1975, culminaram na publicação de inúmeras obras, na criação do Arqshoah (Arquivo virtual sobre Holocausto e Antissemitismo da USP) e de um programa de conscientização sobre o antissemitismo junto a professores do ensino fundamental e médio.
Deutsche Welle: Em Cidadão do Mundo, você descreve em minúcia a política dupla de Getúlio Vargas e de Eurico Gaspar Dutra em relação aos judeus refugiados do nazifascismo. Até que ponto a postura de negligência do Brasil na época se diferenciava da de outros países que, à parte de um discurso humanitário, também dificultaram a concessão de vistos aos refugiados?
Maria Luiza Tucci Carneiro: Em primeiro lugar, temos que considerar que o Brasil, a partir do primeiro governo Vargas, tomou uma posição antissemita não oficial, passando a controlar a imigração de refugiados e – de forma assistemática – a negar vistos. Mas por outro lado permitia a circulação no país de elementos simpatizantes do nazismo. Um exemplo disso é a formação do primeiro partido nazista em São Paulo e no Rio de Janeiro, a partir de 1932. Desde o início do governo Vargas, percebe-se – portanto – uma postura de simpatia, o que já o diferencia de alguns outros países, principalmente latino-americanos.
Já em 1933, com a mobilização dos vários países europeus no sentido de salvar os refugiados e lhes providenciar documentos, o Brasil – ao lado da Argentina – tomou uma posição contrária à entrada de judeus, alegando que não haveria condições financeiras de sustentar esses indivíduos que, segundo o discurso antissemita brasileiro, queriam se concentrar nas cidades, não se dedicavam ao trabalho braçal e exploravam o outro. O que constatamos pela documentação é que, a partir de 1933, as autoridades brasileiras começaram a construir um discurso antissemita assimilado daquele que estava em evidência na Alemanha. Os documentos diplomáticos a partir dessa época reproduzem acusações e estigmas próprios do discurso nazista alemão – por exemplo, o argumento de que um cidadão não é ariano puro ou é judeu, da "raça" semita. Esse discurso foi sendo assimilado, até que, em 1937, culminou na promulgação da primeira circular secreta e no fechamento das portas da imigração brasileira.
Aí realmente temos um corte, uma ruptura histórica, pois o governo brasileiro (com o envolvimento dos ministérios das Relações Exteriores, da Educação, da Justiça, de Negócios Interiores) resolveu formar um conselho interministerial que pudesse opinar sobre a qualidade do refugiado. E o critério seria: "se formos conceder visto a algum judeu refugiado, ele tem que ter bens que garantam sua sobrevivência no Brasil". A partir daí, o governo passou a emitir o que os diplomatas chamavam de "visto capitalista". Ou seja, selecionava-se o judeu rico que tinha condições de "comprar" um visto mediante um depósito no Banco do Brasil. Aliás, essa é uma questão a ser investigada, para ver quanto o Brasil conseguiu recolher desses judeus refugiados.
Muitos dos estigmas antissemitas que você enumera em Cidadão do Mundo são correntes até hoje no discurso racista e xenófobo. Algumas constantes são, por exemplo, o temor da propagação de doutrinas exóticas, a formação de uma rede internacional supostamente perigosa, a constituição de "quistos" estranhos e inassimiláveis pela sociedade majoritária. Como é possível uma longa reflexão sobre o Holocausto não ter alterado a essência desse discurso?
Isso continua sendo muito atual, pois se percebe a continuidade de uma mentalidade intolerante, fundamentada em estigmas, alimentada por mitos políticos e persistente ao longo de séculos. Se retrocedermos na história ibérica, por exemplo, percebemos que a gênese desse mito ariano se encontra no século 15 na Espanha, quando já se identificavam as pessoas "puras de sangue" ou as "infectadas" pelo sangue de judeus, mouros, cristãos-novos e ciganos.
Hoje podemos notar elementos comuns nesses discursos da intolerância. Percebe-se a construção da ideia de um "inimigo objetivo" (para usar um conceito de Hannah Arendt) que interfere no imaginário coletivo. Em momentos de crise, surge a tendência de se apontar para alguém. São momentos perigosos, porque as pessoas reveem os seus valores – econômicos, políticos, sociais – e certos grupos podem aproveitar a ocasião para tentar introduzir seus valores e seus fantasmas.
Isso é sistemático ao longo de séculos. Nessa mentalidade de longo prazo, nota-se a persistência de mitos e estigmas que vão sendo revigorados – como um camaleão que muda de cor, mas mantém em seu interior o veneno da intolerância. E essa intolerância pode ser direcionada para um inimigo objetivo, que também chamamos de bode expiatório.
Em meus livros, tanto em O antissemitismo da Era Vargas como em Cidadão do Mundo, procuro buscar os elementos que persistem nesse discurso, como certos termos comuns na mentalidade intolerante: "ariano", "puro de sangue", "infecto", "indesejável", "perigoso", "agente secreto". Isso é muito evidente no discurso dos diplomatas brasileiros que estavam em missão do exterior, em várias comissões da Liga das Nações, sobretudo ao argumentarem por que não poderiam colaborar e abrir as suas portas aos refugiados.
Em Cidadão do Mundo, você documenta com exatidão o jogo duplo entre o antissemitismo velado e as "máscaras da cordialidade". Será que hoje a crescente pressão por um discurso politicamente correto não agrava ainda mais esse escamoteamento da discriminação?
Acho que sim, porque nenhum país gosta de parecer racista ou antissemita diante da ONU ou de outras nações. Essa é uma das razões pelas quais o Brasil manteve vários de seus arquivos fechados durante anos e continua mantendo fechados os arquivos da ditadura militar e grande parte dos documentos do Exército. Afinal, a partir do momento em que esses documentos são divulgados, revela-se uma outra faceta até então oculta e silenciada. Aqueles que estão no poder querem preservar a imagem de um país humanitário e não estão interessados em divulgar que houve tortura, discriminação racial, entre outras coisas.
Outro projeto que estamos desenvolvendo no LEER é o levantamento das obras racistas e antissemitas, um dicionário que deve sair daqui a dois anos: o primeiro dicionário histórico-biográfico brasileiro sobre obras antissemitas. Desde o começo de século 20, houve uma proliferação de obras racistas escritas por intelectuais supostamente liberais, por exemplo, contra o perigo semita, "amarelo", "negro", "vermelho" ou comunista. A partir dos anos 1920 até o final dos anos 1940, o Brasil teve uma produção incrível de obras eugenistas. Havia grandes intelectuais defendendo a eugenia enquanto ciência aplicada pelo Estado brasileiro. Isso coincide exatamente com o momento em que a Alemanha nazista também estava desenvolvendo esse tipo de pesquisa. Acho que temos que rever – do ponto de vista científico – o papel desses intelectuais, políticos e diplomatas brasileiros, até mesmo para contestarmos essa imagem da cordialidade que se mantém até hoje, muitas vezes pelo próprio desconhecimento e pela falta de pesquisas.
Mas o que temos hoje é uma outra faceta do racismo, que já não se apoia mais em teorias científicas como as dos anos 30 e 40, mas se configura como neorracismo cultural, fundamentado na identidade cultural.
A reflexão sobre o Holocausto infelizmente não desapareceu com a reflexão sobre o Holocausto. Como você descreveria a "máscara" do antissemitismo no Brasil hoje?
Hoje você não tem mais a antiga forma de antissemitismo, e nem poderia ter, porque a própria imprensa denunciaria qualquer país que se fundamentasse em teorias eugenistas para fazer uma limpeza étnica, por exemplo. Mas você tem um antissemitismo travestido de antissionismo.
Hoje as pessoas dizem "Não sou antissemita, mas sou contra Israel". Muitas vezes posso até não estar de acordo com certas posturas do governo de Israel, mas nem por isso sou antissemita. Mas há quem use isso de argumento. Essa é uma nova máscara; e por trás dessa máscara se escondem aqueles que buscam no discurso secular justificativas para o que chamo de novo antissemitismo, que é muito mais político do que científico.
Ninguém se atreveria a usar as justificativas da elite da diplomacia brasileira dos anos 30 e 40, que se sustentava em argumentações "científicas". A revista criada pelo Conselho de Imigração e Colonização de 1938 publicava textos de grandes nomes da ciência brasileira sobre o "imigrante indesejado". Era ali que o suprassumo da intelectualidade brasileira justificava através da psiquiatria, da psicologia e da medicina por que aqueles cidadãos – do ponto de vista biológico – não seriam adequados para compor a população brasileira.
Hoje você não ouve mais isso, a não ser uma semente dessa argumentação no discurso dos neonazistas. No Brasil, nota-se agora uma proliferação de grupos neonazistas, principalmente nas regiões sul do país, que estão retomando o discurso racista dos anos 30 e 40, muitas vezes sem ter noção do perigo e dos efeitos que isso causou na época. Daí a importância de se criarem políticas públicas direcionadas para esses jovens, que muitas vezes acabam se tornando adeptos de tais teorias por desconhecimento e ignorância.
No início de dezembro do ano passado, o governo brasileiro reconheceu o Estado palestino nas fronteiras existentes em 1967. Como você contextualizaria essa atitude que Lula tomou um pouco antes do fim de seu último mandato como presidente?
Vejo a decisão do governo Lula não tanto como uma questão de justiça com os palestinos ou como uma retomada da questão da partilha da Palestina. Acho que essa atitude foi tomada para marcar uma posição nas negociações políticas com o Irã. A meu ver, esse reconhecimento do território da Faixa de Gaza está muito mais relacionado às ligações do governo brasileiro com o iraniano. Isso é muito perigoso, pois um país que está contra Israel e nega o Holocausto não é o melhor companheiro para o Brasil. Aqui novamente temos a máscara da cordialidade e uma discrepância muito grande entre o discurso e as atitudes.
Isso é perigoso, porque no passado o Brasil também fez uma política de bastidores, fazendo concessões nas negociações com a Alemanha nazista e com outros países. A questão é ver como esse discurso aparece na mídia depois. Além do mais, isso reforça a postura do Brasil contra Israel e basicamente retoma uma postura passada que abre espaço para a revitalização do pensamento antissemita.
Você dirige o Arquivo Virtual sobre o Holocausto e Antissemitismo (Arqshoah). Como vem se desenvolvendo esse trabalho?
Esse projeto nasceu das pesquisas que realizo sobre antissemitismo no Brasil desde 1975, quando comecei meus primeiros estudos sobre a persistência ou a gênese de um pensamento racista no Brasil. Fiz uma seleção bastante volumosa de documentos, sobretudo do arquivo histórico do Itamaraty e dos arquivos do Deops de São Paulo, abertos em 1995, que mostram a postura que o governo brasileiro havia tomado em relação aos judeus que sobreviveram ao Holocausto e buscaram o Brasil como pátria de acolhimento. Resolvi disponibilizar essa documentação do meu arquivo pessoal para consulta pública, pois ela possibilita um volume muito grande de estudos sobre a postura do Brasil diante do Holocausto, diante da Alemanha nazista e de países colaboracionistas.
Em 2006, a Fapesp começou a financiar o projeto de digitalização do meu arquivo pessoal, que também inclui documentos que pesquisei no exterior. Hoje o arquivo já está online e é consultado diariamente por pesquisadores de diversas partes do mundo. Além de virtual, o Arqshoah já tem uma sede fixa aberta aos pesquisadores.
Com isso, também abrimos uma porta muito interessante para o registro da memória dos sobreviventes que vieram ao Brasil. O volume dessa documentação é muito grande, pois ainda há diários, fotografias, passaportes esquecidos nas gavetas dos sobreviventes e mesmo dos que já morreram. Chamo tais registros de "lições do Holocausto", pois aprendemos muito com essas narrativas.
Hoje o projeto do Arqshoah caminha para a configuração do Instituto Shoah de Direitos Humanos, que será implementado numa parceria do LEER com a BeB'nai B'rith do Brasil e incentivará estudos nessa direção. A ideia desse projeto a ser financiado por empresas é formar pesquisadores em nível de excelência que trabalhem com a temática do Holocausto e do antissemitismo.
Autora: Simone Lopes
Revisão: Carlos Albuquerque
Fonte: DEUTSCHE WELLE
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