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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Mais uma decisão do TJ/SC sobre racismo

Processo: Apelação Criminal nº 2003.003640-7
Relator: Irineu João da Silva
Data: 13/05/2003
Apelação criminal n. 2003.003640-7, da Capital.
Relator: Des. Irineu João da Silva.

EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE - PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA - AUSÊNCIA DO TRANSCURSO DO LAPSO TEMPORAL ENTRE OS MARCOS INTERRUPTIVOS - PRELIMINAR AFASTADA.
INJÚRIA QUALIFICADA POR PRECONCEITO (CP, ART. 140, § 3o) - FRASES COM CONTEÚDO DEPRECIATIVO CHAMANDO A QUERELANTE DE "NEGONA" - ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO, CONSISTENTE NA VONTADE DE ULTRAJÁ-LA, EM RAZÃO DE SUA RAÇA, COMPROVADO PELO TEOR DAS EXPRESSÕES UTILIZADAS - RECURSO NÃO PROVIDO.

De acordo com a intenção do legislador, ao editar a Lei n. 9.459/97, que criou a figura da injúria qualificada pelo preconceito, "chamar alguém de 'negro', 'preto', 'pretão', 'negão', 'turco', 'africano', 'judeu', 'baiano', 'japa', etc., desde que com vontade de lhe ofender a honra subjetiva, relacionada com a cor, religião, raça ou etnia, sujeita o autor a uma pena mínima de 1 ano de reclusão, além de multa" (DAMÁSIO DE JESUS, Boletim do IBCrim, 55/16).

Deve ser mantida a condenação nas penas do art. 140, § 3o, do Código Penal, quando presente o conteúdo depreciativo das expressões utilizadas, chamando a vítima de "negona", reiteradas vezes, perfeitamente comprovado o elemento subjetivo do tipo, consistente na vontade de ultrajar a vítima, em razão de sua raça.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de apelação criminal n. 03.003640-7, da Comarca da Capital (3a Vara Criminal), em que é apelante Clélia Natatalina dos Santos, e apelada a Justiça Pública, por seu promotor:
ACORDAM, em Segunda Câmara Criminal, por votação unânime, conhecer do recurso, afastar a preliminar, e negar-lhe provimento.
Custas na forma da lei.
Na Comarca da Capital (3a Vara Criminal), Abigail Conceição Rodrigues Chagas ofereceu queixa-crime contra Clélia Natalina dos Santos, dando-a como incursa nas sanções dos arts. 138 e 140, § 3o, ambos do Código Penal, porque:
"A querelante é pessoa negra, pobre, de ótima e comprovada índole.
A querelante e a querelada trabalham na empresa Touring Club do Brasil, situada na Rua Prefeito Osmar Cunha, n. 155, no centro desta capital. A primeira é funcionária da seção de cobranças, enquanto a segunda é responsável pela auto-escola da empresa.
"No final do mês de maio p.p. a querelante passou a ser vítima de comentários injuriosos por parte da querelada, por uma única e vil razão, a querelante ser pessoa de cor negra.
"Como trabalha em uma seção próxima à sala onde a querelada leciona para a auto-escola, a querelante, inúmeras vezes, viu-se obrigada a abrir a porta da sala, onde a querelada ministrava suas aulas, para possibilitar a entrada dos alunos, porque, geralmente, a querelada costumava chegar 'em cima' da hora para o início de suas aulas, fato que gerava incontestáveis transtornos no ambiente de trabalho.
"A querelante tentou resolver o problema de forma amigável, mas não obteve resposta favorável, não restando outra alternativa a não ser expor os fatos ao seu superior hierárquico, o gerente da empresa.
"Ao saber que o gerente havia tomado conhecimento dos fatos, a querelada passou a demonstrar o seu caráter racista, eivado de preconceitos, tecendo comentários a seus colegas de trabalho, que logo chegaram aos ouvidos da querelante:
" 'Negona agora quer ser gerente!'
" 'O que que esta negona tem que se meter no meu setor!'
"Não satisfeita em seu intento de injuriar a querelante, a querelada aproveitou, em um dia em que a chave da sala da auto-escola havia desaparecido, para tecer o seguinte comentário:
" 'Hoje a negona não vai conseguir abrir a auto-escola'.
"E outras situações se repetiram, nas quais a querelada desfiava comentários maldosos, aos quais a querelante passou a refutar, por se sentir humilhada e constrangida.
"Ao passo que demonstrava o seu descontentamento com as manifestações de preconceito da querelada, a querelante passou a ouvir o seguinte comentário por parte daquela:
" 'Agora vou chamar a negona de loira, porque ela não quer ser chamada de negona!'
"Diante de tamanho desrespeito à dignidade humana, e dos impropérios e injúrias prolatadas pela querelada, em pleno ambiente de trabalho, criando verdadeiro constrangimento perante seus companheiros de labor, a querelante resolveu pedir explicações à querelada.
"A querelada, sentindo-se ofendida pelo fato de ter de explicar o inexplicável e movida, ainda, pelo seu animus injuriandi, registrou o boletim de ocorrência n. 3619 (doc. anexo), na 1ª Delegacia de Polícia desta ªcapital, datado de 21 de maio de 1997.
"Neste malsinado boletim, a querelada, cega pelo seu racismo e preconceito, torpemente, confessa o seu crime, afirmando ser a autora da frase, in verbis:
" 'O que a negona tem que se meter no meu setor'.
"Desvirtuando, ainda, todos os fatos, acusa a querelante da prática do crime de injúria e difamação, acusação que tipifica, sobejamente, o crime de calúnia, previsto no art. 138, do Codex penal.
"A querelante, por derradeiro, registrou a ocorrência n. 5187, na mesma DP, na qual está descrita a verdade dos fatos.
"Tais fatos, na sociedade brasileira, constituem uma prática constante, carregados de violência simbólica, movidos pela certeza da impunidade. Sem dúvida, tais ações não se enquadram dentro de uma visão segregacionista, típica em outros países, mas, certamente, constituem obstáculos ao desenvolvimento das pessoas negras, na medida em que ferem sistematicamente sua auto-estima e reforçam perante os não-negros, concepções discriminatórias, que só fortalecem e perpetuam as desigualdades raciais em nosso país" (fls. 02/12).
Concluída a instrução criminal, a querelada restou condenada à pena de cumprimento de 01 (um) ano de reclusão e pagamento de 10 (dez) dias-multa, substituída a privativa de liberdade por outra pena de multa de 10 (dez) dias, nos termos da queixa-crime.
Inconformada, a querelada apelou, reiterando os termos das alegações finais, onde pugnou pela ausência de tipicidade na sua conduta e, alternativamente, o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva.
Após as contra-razões, os autos ascenderam a esta Instância, manifestando-se a douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da lavra do Dr. Anselmo Agostinho da Silva, pelo conhecimento e não provimento do recurso.
É o relatório.
1. Registra-se, inicialmente, que não há que se falar prescrição da pretensão punitiva, em qualquer de suas formas. O crime pelo qual foi denunciada prevê pena privativa de liberdade de 01 (um) a 03 (três) anos, não se cogitando da hipótese de prescrição in abstrato. A apelante foi condenada à pena privativa de liberdade de 01 (um) ano de reclusão, cujo prazo prescricional opera-se em 04 (quatro) anos (CP, art. 109, V). Contudo, considerando que os fatos aconteceram no mês de maio de 1997, a queixa-crime foi recebida em 24.11.1997, sendo interposta em agosto de 1997, e a sentença condenatória publicada em 19.06.2001 (fls. 86), não transcorreu o lapso necessário ao reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva, na forma retroativa. Tampouco, há que se falar em prescrição superveniente.
2. Há exatos 115 (cento e quinze) anos foi abolida a escravatura no Brasil, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea. O ato simbólico, no entanto, não impediu que a herança de mais de 300 anos de escravidão continuasse ancorada na sociedade brasileira e transpusesse os limites do novo milênio. Os negros brasileiros, assim como as mulheres e as chamadas "minorias", continuam na luta por ascensão social e melhores condições de vida. O racismo e a pobreza se acentuam, impregnando os costumes e as tradições, como os números e a história comprovam.
Ao passo que as novas pesquisas nas ciências humanas e biológicas possibilitaram decifrar o genoma humano, também, ampliaram a discussão sobre o conceito de raça e, conseqüentemente, do racismo.

Em recente reportagem na Revista Superinteressante, intitulada "Vencendo a Raça", o jornalista Rafael Kenski, após tecer comentários sobre a origem das diferenças entre as raças, explica que "o preconceito é tão antigo quanto a humanidade, mas o racismo parece não ter mais de 500 anos. 'Antes disso, a discriminação era feita em relação à cultura e ao diferente', diz o antropólogo Kabengele Munanga. Os gregos chamavam de 'bárbaro' qualquer pessoa que não falasse sua língua, mas quem a aprendesse não teria complicações. O problema começa a mudar no final do século 15, quando a Inquisição espanhola obriga os judeus a se converterem ao catolicismo. Muitos desses cristãos-novos continuam a praticar os seus ritos, o que leva os católicos a acreditar que havia algo no sangue judeu que impedia a conversão. A solução era evitar a miscigenação para que esse sangue não se espalhasse pela população. Na mesma época, os europeus chegam à África e à América e encontram um tipo de ser humano completamente diferente do que eles conheciam. 'Até então, a humanidade era a Europa. O conceito de branco não existia antes de eles conhecerem o negro', diz Kabengele. O encontro trouxe novos dilemas. Os teólogos da época discutiam se os índios tinham alma com o objetivo de saber, por exemplo, se ter relações sexuais com eles era pecado. Eles também chegaram à conclusão de que escravizar africanos era natural, com base na passagem bíblica em que Canaã, filho de Noé, embriaga-se e é condenado à servidão (Gênesis 9,25).
"A partir do século 18 e principalmente no século 19, as explicações bíblicas dão lugar a argumentos científicos. Os pesquisadores associavam os traços físicos de cada raça a atributos morais para tentar eliminar características indesejáveis. Um deles foi o conde francês Joseph Arthur de Gobineau, que em 1855 concluiu que a miscigenação causa a decadência dos povos e que os alemães eram uma raça superior às outras. Um de seus discípulos foi o médico brasileiro Raimundo Nina Rodrigues, para quem os rituais de candomblé eram uma patologia dos negros.
"Apesar de essas teorias terem caído em total descrédito no século 20, o tipo de discriminação que elas pregam permanece vivo em muitas pessoas. 'É uma ideologia que se reproduz facilmente e que está sempre ligada à dominação de um grupo sobre o outro', diz Kabengele. Ou seja, além de qualquer aspecto psicológico, o racismo tem motivos bastante práticos. 'Ele é um sistema de levar vantagens sobre outras pessoas e manter privilégios', afirma a psicóloga Maria Aparecida Silva Bento, coordenadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert)" (SP: Ed. Abril. In http://super.abril.com.br/revista/reportag/0403/1871_03.html, em 30.04.2003).

Em Portugal, desde o século XVI, os negros e mestiços foram impedidos de ocupar cargos de confiança e de honra, sob a alegação de não possuírem tradição católica e títulos de nobreza. Os argumentos empregados eram de nobreza teológica e social. Afirmava-se que esses grupos pertenciam a uma raça impura, cujo sangue se encontrava manchado; daí a expressão raça infecta que aparecia nos documentos coloniais. Para ocupar os cargos de regedor da justiça da suplicação, escravidão de juízo, coletor de impostos, juiz de fora, vereador, juiz de confiscações e outros, o candidato deveria comprovar que era limpo de sangue, ou seja, que não tinha na família nenhum membro pertencente às chamadas raças impuras. Só assim seria considerado um homem "digno de confiança, bom, virtuoso, temente a Deus e honrado". Segundo as leis e tradições portuguesas, afirmava-se que essas "virtudes" passaram de pai para filho, eram hereditárias.
O preconceito da pureza de sangue foi eliminado da legislação portuguesa (válida para todas as colônias) por um conjunto de leis promulgadas pelo Marquês de Pombal, entre os anos de 1768 e 1774. Entre elas, destaca-se a lei de 1774, que proibiu o emprego de certas expressões, ditas ou escritas e, todos aqueles que as usassem como forma de distinção de pessoas, incorreriam em penas de açoites, degredo e perdas de títulos e privilégios.
No Brasil, ainda nos nossos dias, as pessoas continuam sendo tratadas não com base em seu mérito, em seu preparo, em sua competência, mas com base na sua cor, na sua raça. Essa é a principal conclusão da mais recente pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas - IPEA. Em nosso país, negros e pardos são estimados como 46% da força de trabalho, contra 54% de brancos. Destes, a média de salários é de R$ 482,00 (quatrocentos e oitenta e dois reais), para R$ 205,00 (duzentos e cinco reais) dos primeiros. E pior, as estatísticas demonstram que a probabilidade dos negros serem pobres é de 48%, contra 22% da população de cor branca. O peso da cor, ou, melhor dizendo, o preço da cor, recorta o mercado de trabalho de cima a baixo, cria divisões, segrega e traça as linhas da diferença com que negros e brancos são tratados, formando um verdadeiro mapa da discriminação. No entanto, até bem pouco tempo acreditava-se que vivíamos numa democracia racial.
Na legislação brasileira, a prática de atos de racismo foi objeto de penalização pela Lei n. 1.390, de 05 de junho de 1951, conhecida como "Lei Afonso Arinos", que previa uma série de contravenções, objetivando a proteção da igualdade racial.
Após a Constituição de 1988, o legislador ordinário, ao regulamentar o art. 5o, inciso XLII (a prática de racismo como crime inafiançável e imprescritível, tendo como obrigatória sanção a pena privativa de liberdade de reclusão), editou a Lei n. 7.716/89, sem, contudo, prever a conduta de quem praticava ofensa com conteúdo discriminatório.
A figura típica do § 3o do art. 140 do Código Penal só foi introduzida pela Lei n. 9.459/97, que dispõe:
"§ 3o. Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem:
"Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa".
O legislador, portanto, deixou evidente que reconheceu como delito a prática de ofensa contra um ser humano, destinada a menosprezá-lo em virtude de ele ter determinada cor de pele. "De acordo com a intenção da lei nova, chamar alguém de 'negro', 'preto', 'pretão', 'negão', 'turco', 'africano', 'judeu', 'baiano', 'japa', etc., desde que com vontade de lhe ofender a honra subjetiva, relacionada com a cor, religião, raça ou etnia, sujeita o autor a uma pena mínima de 1 ano de reclusão, além de multa" (DAMÁSIO DE JESUS, Injúria por Preconceito, in Boletim do IBCrim, 55/16).
E, nesse sentido, colhe-se do Tribunal de Justiça de São Paulo:
"A utilização de palavras depreciativas referentes à raça, cor, religião ou origem, com o intuito de ofender a honra subjetiva da pessoa, caracteriza p crime previsto no § 3o do art. 140 do CP, ou seja, injúria qualificada, e não o crime previsto no art. 20 da Lei n. 7.716/89, que trata dos crimes de preconceito de raça ou cor" (HC n. 249.792-3/0, Rel. es. LUIZ PANTALEÃO, j. 17.02.1998, in RT 752/594).
E, do vizinho Estado do Rio Grande do Sul, cita-se o precedente:
"CRIME CONTRA A HONRA. INJÚRIA QUALIFICADA (ART.140, PAR. 3o, DO CP). DEMONSTRADA PELA PROVA TESTEMUNHAL A OCORRÊNCIA DE DISCUSSÃO ENTRE A QUERELANTE E QUERELADA E QUE ESTA OSTENTOU, NA JANELA EXTERNA DE SEU APARTAMENTO, DE ONDE A QUERELANTE E OUTROS MORADORES TINHAM PLENA VISÃO, AS FIGURAS DE ANIMAIS, ESPECIALMENTE MACACOS, EM FRANCA ALUSÃO À RAÇA NEGRA DA OFENDIDA. PRESENTE O ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO, CONSISTENTE NA VONTADE DE ULTRAJAR A VÍTIMA, EM RAZÃO DE SUA RAÇA. DELITO CARACTERIZADO. PROVA SUFICIENTE PARA UM JUÍZO CONDENATÓRIO. SENTENÇA E APENAMENTO CONFIRMADOS. APELO IMPROVIDO, POR MAIORIA" (Apelação criminal n. 699263299, rel. Des. ALFREDO FOERSTER, j. 24.06.1999, in RJTJRGS, 196/147).
No caso, foram as seguintes frases que originaram a imputação: "Negona agora quer ser gerente!", "O que que esta negona tem que se meter no meu setor!", "Hoje a negona não vai conseguir abrir a auto-escola", e "Agora vou chamar a negona de loira, porque ela não quer ser chamada de negona!".
Dessarte, deve ser mantida a condenação nas penas do art. 140, § 3o, do Código Penal, quando presente o conteúdo depreciativo das expressões utilizadas, chamando a vítima de "negona", reiteradas vezes, perfeitamente comprovado o elemento subjetivo do tipo, consistente na vontade de ultrajar a vítima, em razão de sua raça.
3. Diante do exposto, decidiu a Segunda Câmara Criminal, por votação unânime, conhecer do recurso, afastar a preliminar e negar-lhe provimento.
Participou do julgamento, com voto vencedor, o Exmo. Sr. Des. Torres Marques, e lavrou parecer, pela douta Procuradoria-Geral de Justiça, o Exmo. Sr. Dr. Anselmo Agostinho da Silva.
Florianópolis, 13 de maio de 2003.
SÉRGIO PALADINO
Presidente c/ voto
RINEU JOÃO DA SILVA
Relator

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