Por: Jane Bichmacher de Glasman *
A maioria dos
estudiosos afirma que o Carnaval brasileiro surgiu em 1723, com a
chegada de portugueses das Ilhas da Madeira, Açores e Cabo Verde, que
trouxeram a brincadeira de correrias, mela-mela de farinha, água com
limão, vindo depois as batalhas de confetes e serpentinas.
Muitos dos portugueses que trouxeram o Carnaval para o Brasil eram
marranos, cristãos-novos que mantinham uma vida judaica em segredo.
Os judeus
portugueses fugindo à Inquisição foram primeiro para as Ilhas Atlânticas
(Madeira, Açores, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe) e depois para o
Brasil. Muitos se dedicavam à cultura da cana do açúcar, que depois
continuaram no Brasil.
Preocupado com a disseminação de práticas judaicas e com o estado
espiritual dos habitantes da Colônia, o Santo Ofício enviou em 1591 um
Visitador, um oficial encarregado de recolher indícios, depoimentos,
acusações e suspeitos de judaísmo.
O fato de terem
passado quase cem anos desde o batismo forçado até a chegada do primeiro
Visitador e a falta de rabinos e conhecedores das leis judaicas explica
que os conhecimentos de cerimônias e práticas do judaísmo se tornavam
bastante rudimentares. Sabia-se algo sobre Shabat, feriados, proibição
de comer carne de porco, peixes sem escamas, mas a maior parte dos
preceitos já era esquecida ou observada até erradamente.
A perseguição da Inquisição, a imigração de cristãos-novos para o Brasil
com suas vidas duplas e a introdução do Carnaval aqui não são meras
coincidências.
A vida exterior
aparente como católicos e a vida secreta como judeus levou a uma série
de práticas e costumes “disfarçados” e muitas vezes de caráter
artificialmente sincrético. Muitos dos costumes judaicos que se
perpetuaram eram referentes ao cotidiano, a usos domésticos, o que
permitia que eles passassem de uma geração a outra com tal naturalidade
que sequer os indivíduos se davam conta da origem deles.
O sincretismo religioso devia-se a estratégias de camuflagem ou a uma
quase inevitável interferência do catolicismo, a única religião
oficialmente ensinada e divulgada. Por exemplo, em algumas casas foram
encontrados retratos de "Santo Moisesinho" e de "Santa Ester", esta
associada com a Virgem Maria. "Santa Ester" é a Rainha Ester, de fato
uma criptojudia.
As práticas
judaicas mencionadas nos processos inquisitoriais aparecem revestidas de
um forte simbolismo. Procurando driblar as desconfianças da sociedade,
os cripto-judeus viam-se obrigados a abandonar certas cerimônias
marcantes da sua fé em favor de práticas menos conhecidas ou delatoras
de sua real entrega religiosa: substituíram-se assim, as circuncisões
pelas orações e vigílias domiciliares; a guarda pública de certas datas e
festas, como o Ano Novo, pelos jejuns.
Com o mesmo
intuito, celebrações que no judaísmo tradicional ocupavam posição de
menor destaque passavam, por serem menos acusadoras, a tema central da
resistência marrana, como foi o caso do "Jejum de Ester" rainha judia
que escondia suas origens ao próprio marido, vivendo, como os
criptojudeus, da dissimulação, tornando-se a "Oração de Ester" a prece
marrana por excelência. É bastante significativo o fato de ser uma
mulher a heroína dos cristãos-novos, e seu exemplo se repetiria devido
às necessidades impostas aos criptojudeus.
Carnaval
brasileiro, Purim e Carnavalização
Muitos são os laços que unem Purim ao nosso Carnaval, desde o aspecto
ancestral arquetípico da festividade, a “coincidência histórica” da
entrada de cristãos-novos e da festividade no Brasil até o fato em comum
de sua proibição e perseguição pela Igreja, passando pelo principal e
mais visível a todos: os elementos e as formas de comemoração.
Dentro deste aspecto, cabe destacar o concurso de Rainha do Carnaval
(hoje multiplicado em Madrinhas de Bateria das Escolas de Samba), com
referência à seleção da Rainha Ester; a bateria das escolas, como
amálgama dos raashanim com os atabaques africanos; o Rei Momo, como um
resquício de Mordechai; os bailes, músicas, máscaras e fantasias; a
bebida, banindo censuras morais; os desfiles alegóricos; a alegria e,
sobretudo, a inversão de papéis sociais.
Não posso deixar
de mencionar o sincrético aspecto da Rainha/Santa Ester com a Virgem
Maria e a respectiva importância de ambas para a religião. A atribuição
de tamanha importância em si a mulheres dentro de culturas machistas, já
tem um caráter subversivo.
Em Ester este caráter se acentua, ao se tornar cúmplice da articulação
de uma trama perigosa e ao se tornar a protagonista da mesma,
conseguindo um contra-decreto real. Perigo amplificado por ela arriscar a
atenção real e, ao consegui-la, retirar sua máscara, sua “persona”
Ester, revelando-se Hadassa, judia oculta que se torna heroína ao salvar
seu povo do extermínio.
Com tantas
mulheres especiais no judaísmo, não é de se admirar que ela tenha se
tornado a “Santa Ester” sincrética, santa de um povo que só sobreviveria
ocultando sua verdadeira religião e mantendo-a, secretamente, por
tantos séculos, em condições tão adversas.
Quadro engenhosamente adequado à carnavalização da cultura brasileira,
fenômeno social muito mais abrangente do que uma festa nacional
comemorada anualmente.
A carnavalização pode ser um desvio ou uma inversão dos costumes consagrados, sem atender a certas normas de interdição social.
No carnaval
existe carnavalização, mas nem toda carnavalização é um carnaval. Para
Bakhtin, o Carnaval constituía simultaneamente um conjunto de
manifestações da cultura popular e um princípio de compreensão holística
dessa cultura em termos de visão do mundo coerente e organizada. A
máscara do carnaval se torna uma oportunidade de revelar aspectos mais
profundos da realidade cotidiana – aqueles que talvez sejam
perturbadores demais para se mostrar abertamente.
E assim,
Carnavalização relaciona-se com marranismo e Carnaval com Purim – como
elementos essenciais na formação da cultura brasileira.
* Jane
Bichmacher de Glasman é escritora, doutora em Língua Hebraica,
Literaturas e Cultura Judaica pela USP, professora adjunta, fundadora e
ex-diretora do Programa de Estudos Judaicos da UERJ.
Fonte: http://www.coisasjudaicas.com
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