O vazamento de cartas acusatórias. A malsucedida operação do San Raffaele. O Secretário de Estado está cada vez mais solitário, na cúria que não governa e com um Papa a quem não ajuda.
No Vaticano não marcham os “indignados”, mas se combate a golpes de documentos. No sábado, 28 de janeiro, o conselho de ministros da cúria romana, na presença do Papa, dedicou uma parte de sua reunião a estudar como colocar uma barreira ao vazamento de documentos. Haviam passado somente três dias desde a última e clamorosa fuga: um maço de cartas confidenciais escritas a Bento XVI e ao Cardeal Secretário de Estado, Tarcisio Bertone, pelo então secretário do Governatorato da Cidade do Vaticano, hoje núncio em Washington, o arcebispo Carlo Maria Viganò.
Estas cartas — e mais outros documentos picantes que também ameaçar vir à luz na imprensa ou na TV — são um ato de acusação contra uma pessoa sobre todas as outras: contra este Cardeal Bertone que começou a citada reunião dos chefes de dicastérios da cúria, explicando como elaborar e publicar os documentos da Santa Sé já sem os infortúnios que iluminaram a história recente. Queremos, disse ele, mais competência, mais colaboração, mais confiança recíproca, mais reserva.
Bento XVI escutava em silêncio. Vinha-lhe à mente a pior prova do mal governo curial sofrida por ele desde quando se tornou Papa: a avalanche de protestos que o envolveram no começo de 2009, não por sua culpa, após a revogação da excomunhão dos quatro bispos lefebvrianos, dentre os quais um que negava a Shoah. Pouco depois deste incidente, numa carta aberta aos bispos de todo o mundo, o Papa Ratzinger não hesitou em escrever que havia recebido mais apoio dos “amigos judeus” que de muitos homens da Igreja e da cúria, mais interessados em fazer terra arrasada em torno do Papa. E ao fim, citou esta terrível advertência do Apóstolo Paulo: “Se vós, porém, vos mordeis e devorais mutuamente, tomai cuidado em não vos destruirdes uns aos outros”.
Nas cartas de Viganò há mordidas de sobra. Primeiro, como diretor de pessoal da cúria romana, depois como secretário do Governatorato, este septuagenário prelado da Lombardia atacou muitas coisas que não funcionavam e ganhou um enorme número de inimigos. Quando, para começar, impôs a todos na cúria um cartão eletrônico de identificação e localização, a revolta em defesa da vida privada se levantou universalmente, mas ele se manteve firme. Então Bertone estava de seu lado. Mais ainda, assegurou a Viganò, uma vez que chegara ao Governatorato, a próxima promoção a governador do Estado da Cidade do Vaticano e a Cardeal.
São nomeações que somente o Papa pode fazer, mas que Bertone costuma administrar por si só com desenvoltura, como se fosse algo seu. Uma vez, por exemplo, garantiu com tanta segurança a Monsenhor Rino Fisichella sua promoção a número dois da Congregação para a Doutrina da Fé, que este preparou a mudança e despediu o seu próprio secretário, para descobrir mais tarde que o nomeado pelo Papa era outro.
A invasão de campo é uma nota constante do realizado pelo Cardeal Bertone, grande simpatizante do futebol.
No outono de 2006, pouco tempo após ser nomeado Secretário de Estado, ele se colocou rapidamente em ação para refazer a seu gosto a cúpula da Conferência Episcopal Italiana. Para impedir que o Cardeal Angelo Bagnasco fosse o sucessor do presidente demissionário, Camillo Ruini, Bertone promoveu a candidatura para novo presidente de um homem de segunda linha, dócil a ele, o Arcebispo de Taranto, o frade capuchinho Benigno Papa. Tanto martelou no tema que a imprensa nacional em coro a deu por certa. Somente faltava o “placet” de Bento XVI, o único a quem cabia fazer a nomeação, e que, pelo contrário, designou o Arcebispo de Genova, Angelo Bagnasco.
Mas de modo algum Bertone se disciplinou. No dia da subida ao poder do novo presidente da CEI (Conferência Episcopal Italiana), em 25 de março de 2007, ele dirigiu a Bagnasco uma mensagem de saudação – escrita totalmente por sua conta, também às escondidas do Papa – na qual reivindicava para sua própria pessoa, enquanto Secretário de Estado, a “condução” da Igreja italiana no que diz respeito às relações com as instituições políticas. Houve um escândalo entre os bispos. Desde então, a suspeita de que Bertone toda vez tenta invadir o seu próprio campo nunca lhes abandonou. O contraste entre a Secretaria de Estado e a CEI é agora o refrão obrigatório de toda análise da ação política da Igreja na Itália.
Mas Bertone também passa dos limites com Bento XVI. Ratzinger percebeu o seu talento quando ambos atuavam na Congregação para a Doutrina da Fé. Ao dinâmico salesiano, encarregou que resolvesse as questões mais complicadas: desde o segredo de Fátima até as extravagâncias do bispo africano Emmanuel Milingo. E pareceu que Bertone enfrentou com êxito os dois casos, ainda que à longo prazo ambos escaparam de suas mãos: no caso de Fátima, com a acusação sempre latente de ter mantido oculta uma parte do segredo, e no caso Milingo, com a fuga rocambolesca do personagem do confinamento a que Bertone o havia relegado.
É fato que ao nomear Bertone como Secretário de Estado, Bento XVI pensou aproveitar sua sincera devoção e sua incansável atividade para fazê-lo levar a cabo essas tarefas práticas de gestão das quais ele, o Papa teólogo e doutor, queria se manter afastado. Bertone aceitou entusiasmado, mas interpretou a tarefa a seu modo. O Papa viajava pouco? Ele se pôs a correr o mundo em seu lugar. O Papa estava ensimesmado em seus livros? Pôs-se freneticamente a fazer inaugurações, encontrar-se com ministros, abençoar multidões, pronunciar discursos em todas as partes e sobre todos os temas.
Resulta que, com isso, a Secretaria de Estado trabalha mais para a agenda de Bertone que para a do Papa. E em sua agenda, o Cardeal esquematiza, sempre de sua cabeça, operações também muito ambiciosas e perigosas.
A última teve por objetivo a aquisição do San Raffaele, o pólo hospitalar por excelência, criado em Milão pelo controverso sacerdote Luigi Verzé e esmagado por uma dívida de um milhão e meio de euros.
Para salvá-lo e anexá-lo às propriedades da Santa Sé, Bertone executou desde o início do verão passado um movimento fulminante. Lançou uma oferta de 250 milhões de euros, colocados à disposição pelo Instituto para as Obras da Religião [IOR], o banco vaticano, e por um seu amigo industrial de Genova, Vittorio Malacalza. Durante muitos meses ela permaneceu como única oferta em campo, sem competidores, obrigando ao Vaticano a mantê-la.
Mas no Vaticano, acima, o Papa não estava nada de acordo. O San Raffaele é um hospital em que se praticam e projetam biotecnologias contrárias ao magistério da Igreja. Para não falar da anexa Universidade Vita-Salute, na qual se mantêm cátedras de docentes que divergem dramaticamente da visão católica, desde Roberta de Monticelli a Vito Mancuso, de Emanuele Severino a Massimo Cacciari, de Edoardo Boncinelli e Luica Cavalli-Sforza, todos já em pé de guerra para defender sua liberdade de ensino.
A ordem de Bento XVI foi, conseqüentemente, imediata: não comprar. Mas foi como se falasse para surdos. Bertone deixava o caso a seu administrador, o diretor do hospital Giuseppe Profiti, verdadeiro estrategista da operação, que tudo o que queria era renunciar ao San Raffaele. Providencialmente, pelo fim do ano, foi apresentada outra oferta, de 405 milhões de euros, da parte de um grupo hospitalar concorrente, o de Giuseppe Rotelli, e o Vaticano pôde se retirar do jogo.
Mas com muitos escombros ao redor de Bertone. Também alguns que eram muito próximo dele já não o seguem. Malacalza está enfurecido pelo que considera uma reviravolta contra si. Ettore Gotti Tedeschi, o banqueiro que o próprio Bertone quis como chefe do IOR, após sua inicial disponibilidade, levantou um muro contra a aquisição do San Raffaele, assumindo totalmente as reservas do Papa.
No Vaticano, redesenham-se os poderes, baseados nos aspectos administrativo e financeiro. A nova estrela é o hábil e discreto Cardeal Attilio Nicora, em sua qualidade de presidente da Autoridade de Informação do Vaticano [AIF], criada na cúria há um ano para permitir o ingresso do Vaticano na “white list” [lista branca] dos Estados com os mais altos padrões de correção e transparência nas operações.
No último mês de novembro, ocorreu no Vaticano a visita de sete inspetores do Moneyval, o organismo internacional de controle das medidas contra lavagem de dinheiro. O exame impôs modificações ainda mais restritivas às leis vaticanas, que o Cardeal Nicora introduziu imediatamente, mas que ainda não foram publicadas. Entre estas, está a faculdade para a AIF não só inspecionar toda operação, de qualquer entidade vinculada à Santa Sé, inclusive o IOR e o Governatorato, mas também de punir toda violação particular com multas de até dois milhões de euros.
Bertone fez de tudo para que o Papa nomeasse na chefia da AIF não Nicora, mas um administrador seu, um dos pouquíssimos que permaneceu próximo a ele, o professor Giovanni Maria Flick. Sequer isso ele pôde conseguir. Sua parábola está no ocaso.
Por Sandro Magister, L’Espresso nº 6 de 2012 | Tradução: Fratres in Unum.com
Roma, 2 de fevereiro de 2012 –
Fonte: http://www.padrescasados.org/
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