(JB)
- Algumas religiões santificam a mendicância, como o ato mais
expressivo da humildade. Pedir aos outros o pão, em lugar de o obter
mediante o trabalho, é visto, assim, como o contraponto à vaidade e à
arrogância. As sociedades, sendo profanas, não vêem com os mesmos olhos o
ato de pedir. Os costumes, diferentes das razões éticas, sobretudo os
construídos pela consciência burguesa, condenam a mendicância, ainda que
admitam, com certo cinismo, a caridade. É interessante registrar que
Sartre, senhor de grande lucidez e, em algum tempo, militante
revolucionário, andava com moedas nos bolsos, que distribuía aos
mendigos do Quartier Latin. Talvez se sentisse, com isso, menos culpado
dos desajustes do mundo.
Matar mendigos não é um esporte novo. A civilização cristã
oscila entre o exercício da caridade (que, em alguns casos, costuma ser
negócio lucrativo) e da repressão. Entre a piedade e a forca, conforme o
ensaio do historiador Bronislaw Geremek sobre os miseráveis e pequenos
bandidos da Idade Média. No Brasil, a agressão e o assassinato dos diferentes
estão assumindo dimensões insuportáveis. Numerosos moradores de rua em
Salvador foram trucidados durante a greve dos policiais militares. Há
suspeitas de que foram policiais, eles mesmos, os matadores. Coincidindo
com os fatos da Bahia, um jovem universitário tentou intervir, ao
assistir à agressão de um morador de rua na Ilha do Governador, no Rio,
por cinco jovens. Foi quase linchado, teve seu rosto arrebentado pelas
patadas, só reconstituído mediante o emprego de 63 pinos de platina.
Não é um fato isolado. Ao ser confundido como mendigo,
conforme confessaram os matadores, um índio pataxó foi queimado por
jovens bem situados de Brasília. No Rio de Janeiro, há décadas, os
adversários de um governador da Guanabara o acusaram de mandar matar
mendigos e atira-los junto à foz do Rio da Guarda. E houve quem
sugerisse o incêndio, como uma forma de resolver o problema das favelas
no Rio de Janeiro. Mais cínicas, autoridades de São Paulo decidiram
criar obstáculos sob as marquises e os viadutos, a fim de impedir que
ali os miseráveis pudessem repousar. No Rio, outras autoridades
dividiram os bancos dos jardins, para que, sobre eles, os mendigos não
pudessem se deitar.
Esses caçadores de mendigos naturalmente são conduzidos pelo
senso estético da ordem do capitalismo totalitário. Uma cidade sem
pedintes é muito mais bela. Mas é também muito mais bela, se nela não
houver pessoas feias ou enfermas. Assim pensavam os nazistas, em sua
cruzada de eugenia – embora não fossem belos nem fisicamente saudáveis
homens como Himmler e Goebbels, entre outros. Da mesma forma que
pretendiam a eliminação completa dos judeus, incomodava-os, pelo menos
no discurso, a existência de homossexuais. Depois se soube que muitos
deles eram homossexuais, mais dissimulados uns, menos dissimulados
outros, como Ernst Röhm. Joachim Fest, o grande biógrafo de Hitler,
chegou a suspeitar que houvesse uma ligação homossexual entre o líder
nazista e seu arquiteto predileto e possível sucessor, Albert Speer.
E como o caminho da perfeição, de acordo com essa insanidade,
é sem fim, quiseram eliminar, alem dos judeus, outros perturbadores de
sua ordem estética e “moral”, como os ciganos, os negros, os mestiços,
os eslavos – e os comunistas.
O racismo e a insânia dos nazistas não desculpam – e, sim,
agravam – os atos estúpidos contra os miseráveis brasileiros que, sem
teto, sem famílias, sem amigos, sem destinos, são nômades nas ruas, onde
alguns nascem, e muitos quase sempre morrem. Mas, dessa visão curta de
humanismo, padecem pessoas instruídas e aparentemente responsáveis,
como a ministra francesa, que aconselhou os sem teto de seu país a não
sair de casa, por causa do frio europeu que vem matando os desabrigados
às centenas, e a juíza brasileira, que decretou a prisão domiciliar de
um morador de rua.
A polícia tem o dever de identificar os matadores de mendigos e
de levá-los à Justiça. E os juízes não podem se deixar engambelar pelos
advogados dos assassinos. Em uma sociedade já tão injusta com os
pobres, cabe ao Ministério Público e à Justiça socorrer os que,
desprovidos de tudo, só têm a lei como consolo e esperança.
A sociedade se emociona com a coragem solidária do jovem Vitor.
O Estado deve a ele uma manifestação oficial de reconhecimento. Seria
louvável se a Assembléia Legislativa lhe concedesse a Medalha
Tiradentes, a mais alta condecoração do Estado.
Fonte: Blog do MAURO SANTAYANA
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