Muito mais importante do que pode parecer à primeira vista, a
questão da utilização dos símbolos religiosos nos órgãos públicos merece
atenção. Ela vem sendo alvo de acirrado debate nas páginas do Sul21 nos
últimos dias. Respondendo a pedido de retirada destes símbolos,
formulado pela Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) e por outras cinco
entidades, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por despacho do
seu ex-presidente, desembargador Leo Lima, antecipou-se aos demais
poderes e negou a solicitação que fora encaminhada também à Câmara
Municipal de Porto Alegre, à Assembleia Legislativa e ao Governo do Rio
Grande do Sul.
A base jurídica utilizada para justificar a negativa foi o preâmbulo
da Constituição da República Federativa do Brasil, onde consta que o seu
texto foi promulgado “sob a proteção de Deus”. Inconformada com a
decisão, a LBL encaminhou pedido ao novo presidente do TJ-RS,
desembargador Marcelo Bandeira Pereira, para que seja reconsiderada a
decisão ou que a mesma seja remetida para apreciação do Órgão Especial
do TJ-RS, também encarregado de deliberar sobre questões
administrativas. Alega a representante da LBL que a referência ao
preâmbulo constitui um “falso argumento jurídico”, pois o mesmo não faz
parte da norma e, por este motivo, “não cria direitos ou deveres”, nem
define o que é constitucional ou não.
De acordo com o parecer sobre o qual se firmou o ex-presidente do
TR-RS para manter os crucifixos expostos naquele órgão público, “embora o
laicismo seja uma das vias para a construção de um Estado Democrático
de Direito”, como argumentam as entidades requerentes, “o verdadeiro
sentido do ato [seria expressar] a ideia de conduta perenemente pautada
pela religiosidade”. Justificar-se-ia nas “raízes predominantemente
cristãs, que amoldaram a cultura deste país” e constituiria, ainda, “uma
homenagem à religiosidade e aos valores a ela vinculados, forma geral,
independente de qualquer orientação religiosa” (sic).
O flagrante centralismo cultural contido no argumento do parecerista,
juiz Antonio Vinícius Amaro da Silveira, salta aos olhos. Não apenas
ele entende que a Justiça ou, ao menos, o Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul se pauta pelos valores religiosos e cristãos, como os
estende a toda a sociedade brasileira, à sua cultura e, ainda, torna
esses valores e seu símbolo maior (o crucifixo) um símbolo universal,
que expressaria a religiosidade em geral e que, portanto, incluiria
todas as religiões. Fosse um simples parecer, ainda que contestável, ele
não mereceria maior atenção. Como foi aceito pelo então presidente do
TR-RS ele expõe contradição que está, ela sim, na raiz das instituições
públicas brasileiras.
Fica evidente que, para boa parte dos magistrados brasileiros, a
Justiça deva se pautar pela religiosidade e não, simplesmente, pela
letra fria da Constituição Federal e pelo Direito. Orientam-se, com
certeza, estes juízes e desembargadores, pela ideia de que a retidão de
conduta decorre dos ensinamentos e dos preceitos religiosos cristãos,
como se os homens, na condição de seres genéricos, só pudessem ser
“bons” se orientados pela ideia e pelo temor ao Deus cristão. Sequer a
ideia kantiana do imperativo categórico foi assimilada pelos que assim
professam suas crenças e fazem tudo para impô-las aos demais cidadãos. A
ideia de uma ética secular, em que as regras que orientam a ação
individual devam ser tais que possam se tornar normas de conduta
universais, formulada em 1785 (Immanuel Kant, Fundamentação da
Metafísica dos Costumes), ainda não foi assimilada por estes aplicadores
do Direito.
Mais importante e mais preocupante ainda se torna esta questão quando
a imposição dos valores e da moral religiosa assume a dimensão que vem
assumindo no Brasil hoje. Não apenas o TJ-RS reafirma que a Constituição
e os valores do Estado laico devam se submeter às disposições cristãs,
como os demais poderes públicos do Rio Grande do Sul se esgueiram e
evitam enfrentar a questão da utilização dos símbolos religiosos
cristãos nos órgãos públicos. A Câmara Municipal de Porto Alegre não
deliberou até hoje sobre o requerimento que lhe foi entregue pela LBL e
demais entidades em novembro de 2011. A presidência da Assembleia
Legislativa e o governo do Estado do Rio Grande do Sul não sabem
responder em que escaninho de suas burocracias se encontra
(perdido/escondido?) os requerimentos de mesmo teor que lhes foram
entregues em dezembro do mesmo ano.
No plano nacional, representantes de igrejas cristãs conservadoras
vêm a público exigir explicações de ministros por suas manifestações de
ordem política. Gilberto Carvalho, ministro chefe da Secretaria Geral da
Presidência da República, vem sendo duramente atacado por ter declarado
durante o Fórum Mundial Temático, coincidentemente realizado em Porto
Alegre no mês de janeiro último, que a nova classe média brasileira vem
sendo ideologicamente conquistada pelas igrejas evangélicas e por sua
moral conservadora e que cabe aos militantes progressistas entrar na
disputa e reverter este quadro. Eleonora Menicucci, ministra recém
empossada da Secretaria de Políticas para as Mulheres, vem sendo
bombardeada com críticas por ter declarado que o aborto é uma questão de
saúde pública, acima e independente das convicções religiosas.
Dilma Rousseff, que já foi emparedada pelos evangélicos conservadores
durante a campanha eleitoral pela presidência da República, vem sendo
constantemente constrangida a não adotar posturas e nem implementar
políticas que possam se contrapor a convicções religiosas. Entendem os
pastores religiosos e muitos cristãos, tal como fizeram o juiz
parecerista e o desembargador ex-presidente do TJ-RS, que suas crenças
são universais e que só elas podem redimir os homens e que, por este
motivo, podem e devem ser estendidas a todos os indivíduos e a todas as
instituições. As ideias do Estado laico e da ética secular não cabem em
suas concepções de mundo. É oportuno lembrar que milhões já foram
mortos, ao longo da história da humanidade, em defesa dos deuses únicos e
de seus valores e na tentativa de sua imposição a toda a terra.
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