Com sábio carisma, pajé é "Dalai Lama da Floresta Tropical". Seu
povo trava em Roraima batalha de vida ou morte contra garimpeiros e
destruição ambiental. Deutsche Welle o entrevistou em Munique na estreia
de "Amazonas".
Davi Kopenawa
Imagine abrir a porta e 20 estranhos lhe entrarem casa adentro,
ocupando todos os cômodos, esgotando seus mantimentos, envenenando o
ambiente, provocando doenças, agredindo, intimidando, deixando-o sitiado
num quarto dos fundos, incapaz de sair para cuidar da própria
subsistência. Por quanto tempo suportaria tal situação?
Projetado em proporções genocidas, é isso o que vem acontecendo com
os índios yanomami nas últimas décadas. Segundo o antropólogo francês
Bruce Albert, entre 1987 e 1990 havia no território deles, em Roraima,
40 mil garimpeiros, ou seja, cinco a seis vezes o total da população
indígena. Além dos mortos em confrontos violentos, um quinto dos
yanomami sucumbiu ao impacto ambiental do garimpo e às doenças do homem
branco.
Durante alguns anos a invasão arrefeceu, porém a alta do metal nos
mercados vem provocando uma nova corrida do ouro, e, com ela, mais
saques, prostituição, conflitos, violência sexual, mais doenças, entre
as quais, a aids. A presença dos homens do Exército brasileiro, ao invés
de impor ordem, tem muitas vezes exacerbado a situação.
Devido a sua sabedoria e carisma suave, o pajé Davi Kopenawa é
apelidado "Dalai Lama da Floresta Tropical". Ele foi o principal
"parceiro contemporâneo" indígena convidado a participar da elaboração
do teatro-música Amazonas, produzido pela Bienal de Munique, ZKM
de Karlsruhe e Instituto Goethe, entre outros. A esperança dos
envolvidos no projeto desenvolvido ao longo de quatro anos é, através
das apresentações em diversas cidades da Europa e do Brasil,
sensibilizar para a problemática do povo amazônico ameaçado de extinção.
A Deutsche Welle falou com o líder indígena em Munique, na presença
de Bruce Albert e de Joachim Bernauer, diretor do Instituto Goethe em
Lisboa. Nesta transcrição da conversa procurou-se, dentro do possível,
preservar o estilo peculiar, muitas vezes poético, em que Kopenawa se
expressa.
Deutsche Welle: O que achou de Amazonas – Teatro música em três partes?
Delegação yanomami no ZKM de Karlsruhe. Kopenawa é o 2º da esq. para a dir.
Davi Kopenawa: Eu achei bom. Eu lembrei o que acontece com a
nossa aldeia, nas comunidades. Mas eu achei bom ser aqui. Não é só para
mim, é para todo mundo que estava ali. Eu vi um Xawara [espírito da
epidemia, na mitologia yanomami e personagem da obra], imitando como os
brancos chegam à nossa aldeia e falam, prometem material – machado,
rede, calção, panela –, para derrubar a força do índio. Mas eu achei um
pouco esquisito, do jeito como os brancos vêm fazendo há muitos anos.
Achei bom que os meus filhos estão comigo aqui, o Dário e o Ênio,
para eles também verem como o Xawara contamina a nossa comunidade, a
nossa saúde. Eles nunca viram assim, nunca sofreram assim. É parecido
com o que mostraram para nós. E prepararam a ópera para mostrar para o
povo europeu. É para chamar a atenção do homem da cidade que faz mal à
terra, que destrói a natureza. Então, foi bom.
Tem esperança que essa obra de teatro-música ajude a causa do seu povo?
Eu espero um pouco. Não é muito. A ópera Amazonas está fazendo
o homem respeitar. Estão chamando a atenção para o homem da cidade
escutar. A ópera está avisando para não continuar a destruir a natureza,
para não continuar o desmatamento. Porque a Amazônia é única. É a única
floresta tropical que existe no mundo. Ela não tem outro irmão, não tem
para onde correr.
Nós estamos assim no perigo. Nós lutadores estamos mostrando para o
homem viciado, que não pensa. Ele pensa muito diferente. Pensa noutra
coisa, pensamento louco. Nós, eu não preciso tirar muita coisa. Eu
preciso da terra. A terra é um ser humano. Não pode se destruir, não se
pode vender, não se pode trocar. Porque não tem dinheiro que pague.
2ª parte de 'Amazonas' é mito yanomami 'A Queda do Céu'
Você está vindo pela segunda vez à Alemanha. O que acha desta terra? Em que ela é diferente do Brasil, da Amazônia?
Para mim, é diferente. Para mim, não é bom. Você se acostuma a viver
diferente. Para vocês, na cidade, na Alemanha, do jeito que vocês
escolheram, é bom para vocês. Mas para mim, como sou liderança
tradicional – que nunca vi, nunca sonhei com a cidade cheia de luz,
cheia de pedra, cheia de carro –, eu acho muito triste. Porque não tem
nada. Não tem nada que nasceu na terra, pássaros, animais, araras, as
árvores tradicionais, não tem nada. Tudo é desmatado. Rio de Janeiro e
São Paulo, ali é Brasil, mas é a mesma coisa, essa mesma doença que foi
daqui para invadir o nosso Brasil. A mesma coisa de destruição.
Por que os garimpeiros estão levando tanto mal para os yanomami?
Os homens da cidade, garimpeiros, são doentes, carregam doença no
corpo. E o garimpeiro não é uma pessoa rica não. Os garimpeiros que
buscam ouro nas terras indígenas, eles são mandados pelos patrões, pelos
empresários. Ele é uma doença que busca riqueza para os homens que
compram ouro, os donos de avião – eles é que são ricos.
O homem brasileiro que compra ouro também não é rico, eles mandam
para outro país, negociando, quem fica rico é a pessoa que compra, na
China, nos Estados Unidos, para cá. Esse ouro não vai ficar lá: a
riqueza do meu país – a sua riqueza também, você nasceu lá, a riqueza
que você deixou lá.
O homem garimpeiro não tem nada, casa boa, terreno bom. Ele sempre
fica sofrendo e morrendo, pegando malária, morrendo no mato. Assim que é
a vida no garimpo. Para mim, garimpeiro significa bicho. Conhece porco
do mato? Que fica fuçando assim, fazendo sujeira; bando de porcos que
fica fazendo buraco, procurando? Eles são assim. Eu não vou dizer que
eles são civilizados: eles são perdidos, não têm rumo certo, um lugar
certo para viver, para trabalhar, plantar, sustentar filho. Só fazem
maldade para os outros, para o meu povo indígena do Brasil.
É essa doença que foi daqui, atravessando o mar, chegou lá, primeiro
na sua terra – que não é a sua terra, é a minha terra: o Rio de Janeiro é
um terreno meu. Onde você nasceu, era o meu povo. Meu povo não estava
preparado para se defender, não sabia falar português, não sabia
reclamar.
Os indígenas pensaram que o homem é bom, dá farinha, arroz, comida,
calção. É o costume dos homens para os índios ficarem calados. Eles
continuam fazendo assim. Mas eu não quero que continue. Porque o governo
federal, o mundo inteiro já sabe que nós temos luta e conseguimos apoio
internacional para poder despejar o garimpo que estava na nossa terra.
E as erupções vulcânicas recentes, os terremotos pelo mundo afora?
Há quem pense que a Terra está querendo cuspir a humanidade para fora.
[ri] Eu acredito que a Terra está brava com o homem branco. Porque o
homem da cidade, ele não quer deixar em paz, não quer deixar viver, como
ele viveu. O homem da cidade gosta de pensar em tirar aquilo que vale
para ele. É muito grande a ganância dele. O jogo dos políticos é muito
antigo. Nós, indígenas, falamos com o governo federal e também com o
governo daqui da Europa, falamos da invasão da nossa terra. Mas eles não
escutam porque eles precisam tirar mais mercadorias, tirar e negociar
com outro país.
O governo brasileiro está lá tirando madeira, tirando ouro, tirando
pedra. Ele vai negociar para cá para a Europa. Aqui também tem culpa do
governo. Então os filhos de vocês têm que pressionar para eles pensarem
alguma coisa.
Não é só culpa do governo brasileiro. É culpa do governo geral. Nós,
lutadores, estamos sempre sacudindo a cabeça deles para eles pararem de
pensar em usar a nossa terra indígena. É por isso que a Terra está
brava, está zangada. Porque eles estão tirando parte dela, e ela não
gosta.
Então, ela não está cuspindo, mas está dando uma mensagem para vocês
acreditarem no que nós, índios, estamos falando para vocês. É lembrar
que a terra não é morta: a terra é viva. A terra tem um dono, o homem
que não gosta de destruir. É por isso que ela está dando uma mensagem e
tem cada vez mais terremotos. E vai ter mais ainda! Então, o nosso filho
vai começar a pensar, começar a lutar junto com a gente. Acho que a
nossa luta é assim.
Vista da aldeia Watoriki, em Roraima
Por que o homem branco é tão diferente do yanomami? Nós não somos todos seres humanos?
[ri] Nós somos todos seres humanos, mas o pensamento é diferente, o
costume é diferente. Porque o meu povo indígena do Brasil é de lá, mas
foi invadido, contaminado, levado à doença. Os políticos chegaram lá e
atacaram a nossa vida com a natureza. Foi daqui, é o mesmo costume, não
tem diferença não.
Será possível ensinar ao branco aquilo que ele esqueceu e que os yanomami ainda sabem? Você tem alguma esperança?
Isso aí é difícil, curar a cabeça do homem, não tem remédio que cure.
Faz tempo que ele vem fazendo um estrago tão grande que é difícil
tentar curar, para nós indígenas, que lutamos para defender a nossa
terra, a nossa natureza.
Acho que está muito longe, muito longe de a gente se entender. Eles
são viciados, eles são doentes. Nós, que queremos lutar para defender,
para tentar mudar a cabeça deles, nós somos poucos. E eles são muitos: o
governo europeu, dos Estados Unidos, do Japão, do Brasil, eles são
aliados, eles têm poder. Para nós enfrentarmos eles, isso aí é um pouco
difícil.
Então o nosso filho e o filho de vocês têm que conversar muito, falar
muito, para pensar em mudar. Para frear, porque estão acelerando muito.
E para eles tentarem parar de tirar mercadoria, que faz eles desmatar.
Desmatamento, tirar minério, tirar petróleo, tirar gás. É muito duro
mudar isso aí. Mas vamos tentar, vamos experimentar. Mais isso aí eu não
vou dizer que é esperança. É muito longe ainda.
Homem branco não é forte. Homem branco é forte com dinheiro, com
armas pesadas, com bomba atômica, com avião, com carro. Ele não é forte.
Nós somos fracos. Nós somos assim, como tu e como eu. Então, sentimos a
mesma coisa. Quem é mais forte? A terra, a pedra, exato? E nós é que
temos que respeitar.
Temos que pensar como vamos parar de mexer, temos que pensar na
preservação da natureza. O que vocês falam, o que vocês estão vendo, o
que o mundo inteiro fala, que está preocupado com a mudança climática.
Está mudando o clima, está mudando bastante, porque a poluição está
crescendo e o pulmão da terra, o pulmão da floresta está adoecendo, está
ferido. É por isso que está cada vez mais perigoso.
Mas tem homens como o Bruce [Albert], o Joachim [Bernauer], que
são brancos também, mas estão do lado dos yanomami. Eles são diferentes
dos outros brancos?
[ri] Vocês são nape [branco, em yanomami], né? Tem o nape bom, o nape
que pensa, pensamento honesto, gosta da terra, gosta do lugar, beleza.
Beleza é o paraíso, né? Mas os outros homens não pensam, só pensam em
destruir, acabar com o que é bom. Por isso tem poucos [bons], que estão
aqui. O Bruce é francês, mas ele não é "politicado". E o Joachim, ele
não é político, ligado, não, ele é de longe.
E você também. Vocês estão trabalhando para ajudar a gente a
divulgar, para os outros saberem o que está acontecendo. Então, eu não
vou dizer que o homem branco não presta. Tem homem branco bom. Tem o
yanomami, também que não presta. Não é todo mundo ruim: é metade bom,
metade ruim.
Entrevista: Augusto Valente
Revisão: Roselaine Wandscheer
Revisão: Roselaine Wandscheer
Fonte: http://www.dw.de
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