TJ-RS: Um dia glorioso para o Rio Grande do Sul (o voto completo do Dr. Cláudio Maciel)
Se
a religião é inextirpável do ser humano, devemos fazê-la recuar ao
nível de opção pessoal. Na medida que um país ou uma instituição a
adota, entramos num terreno muito pantanoso, como podemos notar em
questões irresolvidas como o aborto e outras de ainda maior clareza e
primarismo. Se o Estado abraça um credo, fatalmente discriminará outros,
além daquelas pessoas que são ateias. Ser laico não é ser contra a
religiões, é a posição institucional que fica fora dessa esfera,
respeitando o direito de todos à opção religiosa numa sociedade marcada
pela diversidade. Essa laicidade do Estado deve ser observada pela
justiça, pela escola, pelo sistema de saúde e por todos os serviços
garantidos a todos os cidadãos, sem distinção de sexualidade, cor,
origem social, credo político ou religioso.
Só a laicidade respeitará os
interessados da sentença abaixo. Todos os ateus e deístas não
truculentos devem muito a eles. Esperamos que esta decisão frutifique
num país onde ainda grassa a Idade Média.
Há decisões políticas que só podem
ser decididas à margem dos políticos, ainda mais num país como o nosso,
tomado de católicos, evangélicos e por políticos que se sentem devedores
deles e que acabam por nos impor um estranho fundamentalismo.
Aguardamos as manifestações dos políticos e até mesmo dos blogs
políticos.
Espero que a decisão da justiça
gaúcha seja repassada a todos os órgão públicos e às escolas. Pois quem
deve se preocupar com minha salvação sou eu, meu amigo, e não você.
Abaixo reproduzo o grande voto do Dr.
(este merece o título) Cláudio Balbino Maciel, na verdade uma coisa tão
constrangedoramente simples que qualquer pessoa de bom senso e bom
nível cultural poderia ter escrito.
.oOo.
ÓRGÃO:
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Conselho da Magistratura
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PROCESSO
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0139-11/000348-0
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COMARCA
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Porto Alegre.
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RELATOR
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CLÁUDIO BALDINO MACIEL
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ASSUNTO
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Retirada de crucifixos e símbolos das dependências do TJRS.
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INTERESSADOS
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Rede
Feminista de Saúde, SOMOS – Comunicação, saúde e Sexualidade, NUANCES –
GRUPO PELA LIVRE ORIENTAÇÃO SEXUAL, LIGA BRASILEIRA DE LÉSBICAS, MARCHA
MUNDIAL DE MULHERES, THEMIS – ASSESSORIA JURÍDICA E ESTUDOS DE GÊNERO
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Voto
E M E N T A
EXPEDIENTE
ADMINISTRATIVO. PLEITO DE RETIRADA DOS CRUCIFIXOS E DEMAIS SÍMBOLOS
RELIGIOSOS EXPOSTOS NOS ESPAÇOS DO PODER JUDICIÁRIO DESTINADOS AO
PÚBLICO. ACOLHIMENTO.
A
presença de crucifixos e demais símbolos religiosos nos espaços do
Poder Judiciário destinados ao público não se coaduna com o princípio
constitucional da impessoalidade na Administração Pública e com a
laicidade do Estado brasileiro, de modo que é impositivo o acolhimento
do pleito deduzido por diversas entidades da sociedade civil no sentido
de que seja determinada a retirada de tais elementos de cunho religioso
das áreas em questão.
PEDIDO ACOLHIDO.
R E L A T Ó R I O
Des. CLÁUDIO BALDINO MACIEL (RELATOR)
Diversas
entidades da sociedade civil, todas qualificadas na peça inicial deste
expediente administrativo, postulam a retirada dos crucifixos e de
outros símbolos religiosos atualmente expostos nos espaços públicos do
Poder Judiciário, fundamentando tal pedido no artigo 19 da Constituição
Federal e no fato de ser o Brasil um Estado laico.
A
Assessoria Especial e o então Assessor da Presidência, Dr. Antonio
Vinicius Amaro da Silveira, manifestaram-se pelo indeferimento do
pedido, o que foi acolhido pelo anterior Presidente deste Tribunal de
Justiça, Desembargador Leo Lima (fl. 15).
Sobreveio,
então, pedido de reconsideração, que foi encaminhado ao egrégio
Conselho da Magistratura, na forma do artigo 8º, inciso IX, alínea “b”,
de seu Regimento Interno, sendo-me distribuído o expediente.
Vieram-me conclusos.
É o relatório.
V O T O (NÃO DELETAR)
Des. CLÁUDIO BALDINO MACIEL (RELATOR)
Eminentes colegas.
Embora
sejam ouvidas algumas vozes apontando para a irrelevância do tema ora
tratado quando cotejado com as graves questões enfrentadas pelo Poder
Judiciário brasileiro, não hesito em afirmar, em primeiro lugar, que o
tema deste expediente é muito relevante, especialmente porque diz
respeito a matéria regida pela Constituição Federal e porque se trata de
refletir a respeito da relação entre Estado e Igreja em um país
republicano, democrático e laico.
Aliás,
a demonstrar a relevância do tema para as sociedades mais avançadas e
com consolidado estágio democrático, basta referir recentes decisões da
Corte Constitucional da Alemanha, da Suprema Corte Americana e do
Tribunal Europeu de Direitos Humanos, do que se tratará adiante.
A
influência da Igreja sobre o Estado, especialmente na Idade Média, com
todos os abusos que daí advieram (Cruzadas, Santa Inquisição, etc.) foi
uma das causas que acabaram levando, no âmbito do mundo ocidental, à
laicidade estatal.
Ainda
há, contudo, Estados teocráticos. O Irã islâmico, antiga Pérsia
secular, é um exemplo sugestivo de como nesse modelo de organização
política uma única doutrina religiosa assume tão decisiva importância
para a integral conformação do país e mesmo para o destino de seu povo. E
disso deriva, quase sempre, intolerância extrema com crenças religiosas
distintas da religião oficial. Recente notícia na imprensa mundial
divulgou o fato de que um cidadão iraniano chamado Youssef Nadarkhani,
por causa de sua conversão ao cristianismo, resultou condenado à morte
uma vez que não teria aceitado a proposta estatal de reconversão ao
Islã.
A
nação brasileira, a exemplo do que ocorre no mundo ocidental em geral
desde o final do Império e através de todas as Constituições
republicanas, afirmou tratar-se o Brasil de um Estado laico.
O
artigo 19 da Constituição Federal de 1988 veda expressamente à União,
Estados e Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas,
subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou
seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na
forma da lei, a colaboração de interesse público.
Por
outro lado, no rol dos direitos fundamentais, a Constituição assegura
aos cidadãos a liberdade religiosa, a liberdade de crença e de culto,
além da igualdade, independentemente de suas convicções religiosas.
Logo,
quis o Brasil que o Estado seja laico, vale dizer, um Estado
inteiramente separado da Igreja e que, além de não adotar, se mostre
indiferente e neutro com relação a qualquer religião professada por
parte de seu povo, embora deva não intromissão e respeito a todas.
A
laicidade opera em duas direções, complementares e importantes: por um
lado, o Estado não se pode imiscuir em temas religiosos, ou seja, não
pode embaraçar, na dicção constitucional, o funcionamento de igrejas e
cultos religiosos ou mesmo manifestação de fé ou crença dos cidadãos, o
que significa salvaguarda eficaz para a prática das diversas confissões
religiosas; por outro lado, no entanto, a laicidade protege o Estado,
como entidade neutra nesta área, da influência religiosa, não podendo
qualquer doutrina ou crença religiosa, mesmo majoritária, imiscuir-se no
âmbito do Estado, da política e da res pública.
Em
outras palavras, o Estado laico protege a liberdade religiosa de
qualquer cidadão ou entidade, em igualdade de condições, e não permite a
influência religiosa na coisa pública.
Na França, cuja república ainda está contaminada por um certo grau de jacobinismo que remonta à Revolução de 1789 (“o mundo só será feliz quando o último rei for enforcado com as tripas do último padre”,
teriam dito Voltaire ou Jean Meslier, o que bem reflete o clima da
época), no ano de 1994 foi editada lei que proíbe que alunos de escolas
públicas portem símbolos religiosos ostensivos. O objetivo, conquanto
genérico, na verdade foi a proibição da burka
para mulheres de determinado credo religioso, porque tal medida
violaria a liberdade religiosa dos demais cidadãos. Ou seja, na França
se proíbe determinadas manifestações individuais da religiosidade.
No
Brasil, em meu modo de ver, não seria juridicamente admissível tal tipo
de restrição, já que atinge o âmbito individual da experiência
religiosa, explicitamente protegido pela Carta Maior.
Ao
contrário, em nosso país se salvaguarda exatamente a crença e a prática
religiosa individual ou coletiva ante a ação do Estado, que não pode
nelas interferir. Exatamente por tal motivo se exige a neutralidade
estatal em matéria religiosa, ou seja, deve o Estado adotar postura que
se afaste de qualquer atividade, prática religiosa ou exposição de
símbolos religiosos em instituições públicas como forma de garantir sua
neutralidade em face de valores religiosos ou mesmo da falta de tais
valores.
À margem da Constituição Federal, a prática, contudo, não tem sido exatamente esta.
Por
exemplo, hoje é fácil constatar a existência de uma política de
concessão de rádios e televisões que, além de criar outros graves
problemas (criou uma bancada da comunicação social com uma quantidade
alarmante de parlamentares titulares de concessões, circunstância que
viola frontalmente a CF), proporcionou a criação e a manutenção de uma
bancada evangélica no Congresso Nacional, hoje com número e força
suficiente para barrar a tramitação de qualquer projeto de lei que
contrarie elementos de sua doutrina religiosa.
Nada
de errado haveria em tal fato se o fenômeno não estivesse apoiado, para
se criar e manter, em uma extensa rede de rádios e televisões que
representam serviço público
concedido, cujos critérios de concessão violam, para falar o menos, a
isonomia com que tal tema deveria ser tratado no seio de uma nação
multicultural, multirracial e multirreligiosa como a nossa.
Também
assim ocorre no âmbito do Poder Judiciário e outros espaços públicos de
prédios estatais, quando se constata a presença de símbolos religiosos
como, por exemplo, o crucifixo.
A questão é, portanto, mais complexa e profunda do que possa parecer a um primeiro olhar.
Não se trata, evidentemente, de defender postura ateísta ou refratária à religiosidade. No dizer de Daniel Sarmento[1]:
“O ateísmo, na sua negativa de existência de Deus, é também uma crença religiosa, que não pode ser privilegiada pelo Estado em detrimento de qualquer outra cosmovisão. Pelo contrário, a laicidade impõe que o Estado se mantenha neutro em relação às diferentes concepções religiosas presentes na sociedade, sendo-lhe vedado tomar partido em questões de fé, bem como buscar o favorecimento ou o embaraço de qualquer crença.”[2]
Em Portugal, um dos maiores especialistas da matéria assim se manifesta a respeito:
“A
concessão estadual de uma posição de vantagem a instituições, símbolos
ou ritos de uma determinada confissão religiosa é suscetível de ser
interpretada, pelos não aderentes, como uma forma de pressão no sentido
da conformidade com a confissão religiosa favorecida e uma mensagem de
desvalorização das restantes crenças. Por outras palavras, ela é
inerentemente coerciva.” [3]
Daí
vem que mesmo nos Estados Unidos da América, país com forte tradição
religiosa representada pela própria expressão “in God we trust”, lema
norte americano estampado em notas de dinheiro e moedas daquele país, a
Suprema Corte, no caso Engel x Vitale, ainda no ano de 1962, ressaltou que:
“Quando
o poder, prestígio ou apoio financeiro do Estado é posto a serviço de
uma particular crença religiosa, é clara a pressão coercitiva indireta
sobre as minorias religiosas para que se conformem a religião
prevalecente oficialmente aprovada.”[4]
Em
outras palavras, decidiu a Suprema Corte americana que a preferência
estatal por uma determinada crença com a ostentação de visíveis símbolos
religiosos em espaço público institucional representa uma indevida
adesão oficial a uma corrente religiosa e uma correspondente coerção
relativa às demais correntes ou àqueles que não professam crença alguma.
Na
jurisdição constitucional alemã, da mesma forma, está assente a
inconstitucionalidade da presença de crucifixos, pelos mesmos motivos,
em salas de aula do ensino fundamental.
“O
art. 4, I, da Lei Fundamental, deixa a critério do indivíduo decidir
quais símbolos religiosos serão por ele reconhecidos e adorados e quais
serão por ele rejeitados. Em verdade, não tem ele direito, em uma
sociedade que dá espaço a diferentes convicções religiosas, a ser
poupado de manifestações religiosas, atos litúrgicos e símbolos
religiosos que lhe são estranhos. Deve-se diferenciar disso, porém, uma
situação criada pelo Estado, na qual o indivíduo é submetido, sem
liberdade de escolha, à
influência de uma determinada crença, aos atos nos quais ela se
manifesta, e aos símbolos pelo meio dos quais ela se apresenta… O
Estado, no qual convivem seguidores de convicções religiosas e
ideológicas diferentes ou mesmo opostas, apenas pode assegurar suas
coexistências pacíficas quando ele se mantém neutro em matéria
religiosa.”
A Suprema Corte americana, no caso County of Allengheny x ACLU[6], considerou inconstitucional, por violação da anti-establishment cause,
a manutenção de um presépio natalino na escadaria de um tribunal, já
que o mesmo expressava mensagem religiosa incompatível com a primeira
emenda que proíbe o Estado de transmitir ou tentar transmitir uma
mensagem de que uma religião ou uma crença religiosa em particular seja
favorecida ou preterida.
Foi
certamente com base em compreensão similar que o então Presidente do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2009, determinou a
retirada do crucifixo da sala do Órgão Especial e desativou a capela
confessional existente nas dependências do tribunal, promovendo a
criação de um local ecumênico no prédio. O Presidente em questão tem
origem judaica e, talvez por tal circunstância, tenha melhor
compreendido a discriminação que possa significar, para quem professa
outras crenças, o símbolo máximo de uma única determinada religião em um
prédio público.
Ora,
a laicidade deve ser vista, portanto, não como um princípio que se
oponha à liberdade religiosa. Ao contrário, a laicidade é a garantia,
pelo Estado, da liberdade religiosa de todos os cidadãos, sem
preferência por uma ou outra corrente de fé. Trata-se da garantia da
liberdade religiosa de todos, inclusive dos não crentes, o que responde
ao caro e democrático princípio constitucional da isonomia, que deve
inspirar e dirigir todos os atos estatais de acordo com um imperativo
constitucional que não se pode desconhecer ou descumprir.
Há
quem refira, como defesa possível de sua tese, o caráter não-religioso
do crucifixo. Sem razão, contudo. É evidente que o símbolo do crucifixo
remete imediatamente ao Cristianismo, consistindo em sua imagem mais
evidente.
A Corte Constitucional alemã, refutando o argumento de que o crucifixo é mero enfeito que deveria ser tolerado em ambiente estatal por força da tradição, dispôs:
“A
cruz representa, como desde sempre, um símbolo religioso específico do
Cristianismo. Ela é exatamente seu símbolo por excelência. Para os fiéis
cristãos, a cruz é, por isso, de modos diversos, objeto de reverência e
de devoção. A decoração de uma construção ou de uma sala com uma cruz é
entendida até hoje como alta confissão do proprietário para com a fé
cristã. Para os não cristãos ou ateus, a cruz se torna, justamente em
razão de seu significado, que o Cristianismo lhe deu e que teve durante a
história, a expressão simbólica de determinadas convicções religiosas e
o símbolo de sua propagação missionária. Seria uma profanação da cruz,
contrária ao auto-entendimento do Cristianismo e das igrejas cristãs, se
se quisesse nela enxergar, como as decisões impugnadas, somente uma
expressão da tradição ocidental ou como símbolo de culto sem específica
referência religiosa.”[7]
Vê-se, assim, que a questão ora analisada não é prosaica ou simples, já que não se trata de julgar forma de decoração ou preferência estética em ambientes de prédios do Poder Judiciário, senão de dispor sobre a importante forma de relação entre Estado e Religião num país constituído como república democrática e laica.
Parece-me
evidente, no entanto, que embora sejam espaços institucionais os
gabinetes dos magistrados podem retratar a sua preferência pessoal,
especialmente porque não se apresentam como áreas de circulação do
público em geral. Não raramente se vê, em tais gabinetes, vistosos
símbolos de clubes de futebol, bandeiras e distintivos, o que pode, a
critério de alguns, ser algo de mau gosto, mas se revela situação
juridicamente sustentável já que se está tratando de um ambiente bem
mais privado.
O mesmo se diga com relação a símbolos religiosos ou de outra natureza.
Nada
impede que um magistrado, no interior de seu gabinete de trabalho, faça
afixar na parede um símbolo religioso ou uma fotografia de Che Guevara.
No
entanto, à luz da Constituição, na sala de sessões de um tribunal, na
sala de audiências de um foro, nos corredores de um prédio do Judiciário
mostra-se ainda mais indevida a presença de um crucifixo (ou uma
estrela de Davi do judaísmo, ou a Lua Crescente e Estrela do Islamismo)
do que uma grande bandeira de um clube de futebol.
Isto
porque, ao passo em que a presença da bandeira de um clube de futebol
na sala de sessões de um tribunal não fere o princípio da laicidade do
Estado (ao contrário da presença da presença do crucifixo, que fere tal
princípio), a presença de qualquer deles – bandeira de clube ou
crucifixo – em espaços públicos do Judiciário fere o elementar princípio
constitucional da impessoalidade
no exercício da administração pública. Ou seja, a presença de símbolos
religiosos em tais locais viola, além do princípio da laicidade do
Estado e da liberdade religiosa, também o princípio da impessoalidade
que rege a administração pública.
Os
símbolos oficiais da nação brasileira estão previstos na Constituição
Federal, sendo eles a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais.[8] São símbolos do Estado do Rio Grande do Sul a bandeira rio-grandense, o hino farroupilha e as armas tradicionais[9].
Tais são os símbolos, portanto, que podem ser ostentados em ambientes
formais do Poder Judiciário, abertos ao público, sem violação do
princípio constitucional da impessoalidade.
Estabelecimentos
estatais são locais públicos pertencentes ao Estado. Assim, devem ser
administrados em consonância com os princípios, implícitos e explícitos,
que regem a Administração Pública, dentre eles o da impessoalidade[10], o que justifica plenamente, em meu sentir, a procedência do pleito de que ora estamos a tratar.
O
princípio da impessoalidade está imbricado com o princípio da isonomia,
visto que os atos dos administradores devem servir a todos,
indistintamente, dada a igualdade estabelecida pela Carta Maior entre os
cidadãos, inexistindo a possibilidade jurídica de o Estado, por seus
administradores, fazer distinções filosóficas, políticas ou religiosas
em sua atuação política e administrativa.
Celso Antonio bandeira de Mello assim leciona a respeito do ponto:
“O
princípio da impessoalidade traduz a idéia de que a Administração tem
que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou
detrimentosas. Nem favoritismo nem persequições são toleráveis.
Simpatias ou animosidades pessoais, políticas o u ideológicas não podem
interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários,
de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é
senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia.”[11]
A
outra vertente do princípio referido é a de que a administração pública
tem por norte o interesse público, impondo-se aos administradores que
atuem em nome do Estado,
sendo-lhes vedado, por tal razão, agir por interesse pessoal, em nome
próprio, por crença ou simpatia religiosa, elegendo um dentre tantos
símbolos possíveis (ou a ausência destes) para ostentar em prédios sob
sua administração.
Para José Afonso da Silva, que representa doutrina pacífica sobre o tema:
“Isto
ocorre para que as realizações administrativo-governamentais não sejam
propriamente do funcionário ou da autoridade, mas exclusivamente da
entidade pública que a efetiva.”[12]
Ora,
o Estado não tem religião. É laico. Assim sendo, independentemente do
credo ou da crença pessoal do administrador, o espaço das salas de
sessões ou audiências, corredores e saguões de prédios do Poder
Judiciário não podem ostentar quaisquer símbolos religiosos, já que
qualquer um deles representa nada mais do que a crença de uma parcela da
sociedade, circunstância que demonstra preferência ou simpatia pessoal
incompatível com os princípios da impessoalidade e da isonomia que devem
nortear a administração pública.
Causaria
a mesma repulsa à idéia de laicidade estatal, por exemplo, a
ostentação, em um altar de Igreja católica, do brasão do Estado do Rio
Grande do Sul. Em tal hipótese, contudo, ao menos os princípios
constitucionais estariam preservados, já que a administração da Igreja,
por não se constituir em administração pública, a eles não está jungida.
Mas não somente isso.
Também o princípio da legalidade impõe o acolhimento do pleito vertido neste expediente administrativo.
Para
o cidadão brasileiro, em geral, vige a regra constitucional de que é
permitido fazer tudo aquilo que não estiver vedado por lei.
Já para a administração pública, no entanto, o princípio é outro: só é permitido fazer o que está previsto em lei.
Ao
analisar o caso em questão vê-se que não há lei que preveja ou disponha
sobre a presença de símbolos religiosos em espaços do Judiciário
abertos ao público. Mais do que isso, a Constituição implicitamente os
veda.
Veda-os
não somente como decorrência lógica do princípio da laicidade estatal,
mas também em face da aplicação dos diversos outros princípios
constitucionais já referidos (impessoalidade, isonomia, legalidade) e do
direito fundamental à liberdade religiosa de todos os jurisdicionados
que possam se fazer presentes naqueles locais estatais.
Por tais motivos, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio de seu Órgão Especial[13],
deliberou pela invalidade de lei do Município de Assis que determinara a
inserção nos impressos oficiais da municipalidade do versículo bíblico “Feliz a Nação cujo Deus é o Senhor”. Entendeu o tribunal que:
“Como
deve o Estado manter-se absolutamente neutro em relação às diversas
igrejas, não podendo beneficiá-las nem prejudicá-las, não tem cabimento a
inserção do versículo bíblico nos impressos e documentos oficiais do
Município, pois isso evidencia simpatia em relação a determinadas
orientações religiosas, o que é expressamente vedado pela Lei Maior.”
É
verdade que, conquanto laico o Estado brasileiro, paradoxalmente o
preâmbulo da Constituição Federal invoca a menção a Deus, o que tem sido
um argumento utilizado para justificar certa presença religiosa em
instituições públicas.
É
atualmente pacífico na jurisprudência constitucional, contudo, o
entendimento de que o preâmbulo da Constituição não possui força
normativa. O Ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento da ADI nº.
2076-5, referiu ironicamente em seu voto:
“Esta
locução ‘sob a proteção de Deus’ não é norma jurídica, até porque não
se teria a pretensão de criar obrigações para a divindade invocada. Ela é
uma afirmação de fato jactansiosa e pretensiosa, talvez, de que a
divindade estivesse preocupada com a Constituição do país”.[14]
Por
fim, poder-se-ia argumentar com a tradição do uso de crucifixos em
espaços públicos no Brasil, não havendo dúvidas a respeito de que
tradicionalmente são utilizados tais símbolos religiosos.
No
entanto, absolutamente não é papel do Judiciário legitimar
acriticamente qualquer tradição social, especialmente se excludente ou
inconstitucional. Já não se discute, na atualidade, o legítimo papel do
Direito que se opõe à idéia de meramente afirmar práticas hegemônicas da
maioria social, mesmo que contrárias ao texto constitucional. Ademais, o
princípio democrático contramajoritário justificaria plenamente a
defesa de eventuais minorias quanto ao abuso das práticas religiosas da
maioria, especialmente as de raiz inconstitucional.
O nepotismo, por exemplo, foi uma prática tradicional no Brasil. Tradicionalmente houve uma certa promiscuidade entre o público e o privado. Não obstante, está sendo superado o nepotismo porque sobre tal “tradição” o Judiciário, devidamente provocado, teve uma abordagem crítica que considerou tal prática inconstitucional exatamente por violar, de igual modo, o princípio da impessoalidade na administração pública.
Constituem
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, de acordo com
o artigo 3º da Constituição de 1988, dentre outros, promover o bem de
todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
O
cidadão judeu, o muçulmano, o ateu, ou seja, o não cristão, é tão
brasileiro e detentor de direitos quanto os cristãos. Tem ele o mesmo
direito constitucionalmente assegurado de não se sentir discriminado
pela ostentação, em local estatal e por determinação do administrador
público, de expressivo símbolo de uma outra religião, ainda que
majoritária, que não é a sua.
Por motivos semelhantes, no dia 3 de novembro de 2009 a Corte Européia de Direitos Humanos condenou a Itália (Lautsi x Italy)
ao pagamento de 5.000 mil euros, a título de danos morais, a uma cidadã
que se sentia ofendida diante da manutenção de crucifixos no âmbito das
escolas públicas, o que revela, uma vez mais, a inquestionável
centralidade e a indiscutível relevância constitucional do tema
pertinente aos limites conceituais da cláusula da separação entre Estado
e Igreja.
A Corte
Européia fez prevalecer os valores centrais da liberdade e da igual
dignidade das crenças, e das descrenças, repudiando, assim, qualquer
comportamento do Estado que seja capaz de identificá-lo com determinado
pensamento religioso
em detrimento de todos os demais. Além disso, o Tribunal Europeu dispôs
que, muito embora o crucifixo seja mesmo revestido de múltiplos
significados, a significação religiosa é aquela que lhe é “predominante”
e que lhe confere sentido. Finalmente, o tribunal assegurou a relevante
premissa de que a liberdade de crença (a compreender a liberdade de
crer ou não crer) impõe ao Estado a obrigação constitucional de
“se abster de qualquer imposição, ainda que indireta, de determinado pensamento religioso, especialmente naqueles locais nos quais as pessoas se fazem dependentes dos poderes públicos”.
Assim sendo, conquanto o CNJ já tenha decidido pontualmente que a presença de símbolos religiosos em ambientes judiciários não revela inadequação censurável, estou certo, data venia, de que se resguardar o espaço público do Judiciário para o uso somente de símbolos oficiais do Estado é o único caminho que responde aos princípios constitucionais republicanos de um estado laico, devendo ser vedada a manutenção de crucifixos e outros símbolos religiosos em ambientes públicos dos prédios do Poder Judiciário no Estado do Rio Grande do Sul.
Ademais,
especialmente na época atual em que tantos temas de interesse religioso
estão sendo trazidos à decisão judicial (aborto de feto anencéfalo e
uniões homoafetivas, por exemplo) e sobre os quais as Igrejas
manifestam e lutam publicamente pela defesa de determinada solução com
base em sua doutrina religiosa, o julgamento feito em uma sala de
tribunal sob um expressivo símbolo de uma Igreja e de sua doutrina não
me parece a melhor forma de se mostrar o Estado-juiz eqüidistante dos
valores em conflito.
Creio, por fim, que mesmo para os que professam a religião cristã esse é o melhor caminho.
Antecipando-se
a este debate, há aproximadamente dois mil anos, Jesus Cristo, segundo o
evangelho de Matheus, propôs a correta solução do problema referente à
separação entre Igreja e Estado. Indagado a respeito da licitude do
pagamento de tributos, com Sua imensa sabedoria respondeu:
A administração dos prédios e espaços do Poder Judiciário, tal como a obrigação de pagar tributos, é assunto dado a “César”.
Voto, portanto, no sentido de acolher o pleito de retirada de crucifixos e outros símbolos religiosos eventualmente existentes nos espaços destinados ao público nos prédios do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul.
É o voto.
Acompanharam o voto do Relator os Desembargadores André Luiz Planella Villarinho, Liselena Schifino Robles Ribeiro, Marcelo Bandeira Pereira, que presidiu a sessão do Conselho da Magistratura, e Guinther Spode.
[2]
JJ Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
Anotada, vol I, Coimbra, Ed. Coimbra, 2007, p.613, apud Sarmento, op
cit.
[3]
Jónatas Eduardo Mendes Machado. Liberdade Religiosa numa Comunidade
Constitucional Inclusiva. Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 348-349 (apud Daniel Sarmento)
[11] Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 7 ed., São Paulo, Malheiros Editora, p. 68
[12] José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 15ª. Edição. Malheiros editora, 1998, p. 645
[15] Matheus, 22:21-=-=-=-=
Vou mais longe que o ilustre desembargador gaúcho: mesmo nos gabinetes dos magistrados ou de qualquer administrador público circulam pessoas que não professam o credo dos seus ocupantes circunstanciais.Tais espaços não pertencem aos ocupantes e seus assessores e secretárias, dentre outros servidores, procuradores, advogados, estagiários, dentre outros atores do Judiciário que por ali circulam, não comungam, necessariamente, a mesma religião dos ocupantes.
Assim, tanto nas salas de audiências e sessões, quanto nos gabinetes e salas de recepção, a colocação de qualquer símbolo religioso - pouco importa o credo - se me afigura ilegal e atentatória à lacidade estatal.
Que os cristãos ou crentes de outros cultos coloquem os símbolos que bem entenderem nas suas casas, não nos espaços públicos, é a solução mais condizente com a liberdade religiosa, direito tutelado pela Carta Magna, mas não obrigação para quem não é religioso. Liberdade religiosa não implica, absolutamente, outorga de prerrogativa para transformar espaços públicos em nichos de religiosidade privada.
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