Causa e efeito
Por Marcelo Auler
Na
abertura oficial do V Congresso Nacional dos Delegados de Polícia
Federal, na noite de quarta-feira (25/4), no Rio de Janeiro, os
tribunais superiores, em especial o Supremo Tribunal Federal,
tornaram-se alvo das principais críticas. A maior delas partiu do
procurador de Justiça de Minas Gerais, Rogério Grecca, para quem ao
editar a Súmula nº 11, o STF mostrou “desconhecer completamente a
realidade". A súmula trata dos limites para o uso de algemas.
"É
não entender como funciona a Polícia. Um tribunal que edita uma súmula
vinculante destas, regulamentando — entre aspas — o emprego de algemas,
nunca conheceu as ruas, o cara nunca andou de ônibus, não sabe o que é o
cheiro de sovaco. Não entende como é que funciona o Tribunal do Júri”,
disse ele.
Professor, estudioso do Direito Penal e
autor de diversos livros a respeito, Grecca classificou a súmula de
hipócrita e relacionou sua edição ao trabalho dos policiais federais nas
últimas grandes operações. “Não tem súmula mais hipócrita do que a
Súmula Vinculante nº 11. Foi por causa de vocês que ela foi editada.
Vocês foram responsáveis. Engraçado, desde que o Brasil foi descoberto
em 1500, ninguém nunca se preocupou com o uso de algemas. Era argola no
pescoço do negro, nos pés, nas mãos e ninguém nunca se preocupou. No dia
em que a pulseira de ouro foi transformada em pulseira de aço, aí a
casa caiu. O dia em que a Polícia Federal começou, brilhantemente, a
meter o grampo em todo mundo de classe média e média alta, isto é
novidade, não acontecia”.
Para ele, as algemas em
acusados de crimes financeiros tinham um segundo significado. “Eu via
aquilo meio como um desabafo. Quando aqueles caras importantes, entre
aspas, que importância não tem nenhuma, são verdadeiros genocidas, o dia
em que estes caras começaram a ser presos...Imagina o Maluf sendo
algemado. Eu vibrei com o Maluf sendo algemado...O fato de meter o
grampo, de meter a algema no Maluf era meio — eu via em vocês, posso
estar até falando bobagem — mas eu via meio como um desabafo. Sabe
aquele negócio: cansei de botar grampo em “nego” arrebentado no meio da
favela, agora você vai tomar o grampo também? Isto, para mim, era um
espetáculo, ver aqueles caras colocando um casaquinho por cima da
algema, com a cabecinha baixa, igual a um periquito quase quebrado”.
Ainda
que de forma mais moderada, o novo presidente nacional da Associação
dos Delegados de Polícia Federal, delegado Marcos Leôncio Souza Ribeiro,
empossado no último dia 20 de abril, em entrevista à revista Consultor Jurídico,
também teceu crítica aos tribunais superiores ao descrever o atual
papel da Polícia Federal. Ele fez votos que eles evoluam nos seus atuais
entendimentos.
“O papel da Polícia Federal é
respeitar este nível de evolução do Judiciário brasileiro, se aprimorar
cada vez mais para se adaptar e evitar nulidades processuais. Fortalecer
a prova técnica e esperar, quiçá, um dia, que o nosso Judiciário
acompanhe a evolução que outros países já conseguiram. O Judiciário
brasileiro passa pelo mesmo processo que outros países passaram. A
Polícia Federal brasileira passa pelas mesmas dificuldades que as
polícias do mundo mais desenvolvido passaram, que é este momento de
transição entre a verdadeira busca da prova técnica, sem tanto garantismo, sem tantas interpretações exacerbadas da norma garantista”.
Ideologia
Curiosamente, na abertura do Congresso não havia representante do
Ministério Público Federal, mas Leôncio menosprezou os chamados
desentendimentos que ocorrem entre Polícia Federal e Ministério Público,
realçando que quando ocorrem é muito mais no campo doutrinário do que
na prática do trabalho do dia a dia. Para ele, o entendimento também
ocorre na primeira e na segunda instância do Judiciário Federal, mas
ainda não acontece com os tribunais superiores, classificado como “mais
ideológicos”.
“Por incrível que pareça existem mais
disputas no campo ideológico/político/classista do que no ponto de vista
institucional. Ministério Público Federal e Polícia Federal, do ponto
de vista institucional e operacional, se entendem muito bem. Nas
operações a relação é boa, a relação é boa com a Justiça Federal de
primeira instância e de segunda instância. Temos, talvez, com os
tribunais superiores — por serem tribunais muito mais ideológicos, de
tese, do que tribunais de instrução, de apuração de fatos —, temos esta
dificuldade. Mas, acredito que vai evoluir com o tempo. Do ponto de
vista destas bandeiras de disputas, como do poder da investigação, são
muito mais no campo ideológico do que pragmático. Na prática, Polícia
Federal e Ministério Público Federal até que tem uma sintonia fina em
questões que envolvem o combate ao crime organizado. Também com a
Justiça Federal, principalmente em primeira e segunda instância”.
As
questões que lavaram os tribunais superiores a anularem algumas das
principais operações policiais por nulidade de provas não mereceu maior
atenção na abertura do Congresso. Nem mesmo o desembargador federal
Messod Azulay Neto — um dos três representantes da Justiça Federal
presentes à cerimônia —, que foi o primeiro palestrante da noite, teceu
comentário a respeito. Antes, pelo contrário, enalteceu o trabalho da
Polícia Federal.
Para ele, fundamental, “tanto
quanto, ou mais ainda do que, a descoberta de polos de riquezas ou a
exploração por produção de bens, é permitir que estes bens e estas
riquezas possam fluir, possam trilhar por caminhos desobstruídos e
alcançarem os seus objetivos. E esta, em última análise, tem sido a
árdua tarefa da Polícia Federal do Brasil. É importante que se diga que
não se faz uma Justiça Criminal sem uma polícia judiciária estruturada,
bem remunerada e orgulhosa das suas condições. Há um ditado popular que
diz que um bom exemplo vale mais do que mil palavras e eu acredito que,
principalmente nesta última década, a Polícia Federal tem dado mostras,
tem dado mais do que um exemplo, de que a excelência do seu trabalho se
compara as maiores instituições de polícias judiciárias do mundo, se
igualando à tão famosa israelense, americana, londrina, etc.”.
Escutas telefônicas
Azulay Neto destacou apenas a necessidade de os policiais federais
cuidarem melhor das escutas telefônicas que hoje tem gerado inúmeras
queixas por parte dos advogados de defesa os quais, como disse ele à
revista ConJur, ao questionarem “nulidades em cima de
questiúnculas processuais”, fazem o trabalho deles. E iss, segundo ele,
exige “maior atenção dos policiais”.
Estes ataques,
segundo disse, acontecem “através de Habeas Corpus e recursos de toda a
ordem. Seja pelo fato de que as escutas são deficientes, seja por
excesso de prazo, seja porque não serem disponibilizadas na íntegra para
a defesa, seja porque as transcrições também são deficientes, enfim por
várias razões. O que ocorre é que tanto na segunda instância, nos
tribunais superiores e mesmo no Supremo Tribunal Federal, em alguns
casos, eu não diria que isto é uma coisa constante, a prova acaba sendo
anulada”. Ele disse: “Nós julgamos com sentimento de que alguma coisa
foi perdida no meio de tanta coisa, o trabalho de anos da Polícia
Federal sendo todo jogado por terra”.
Em entrevista à ConJur,
ele explicou que são problemas que com o próprio desenvolvimento de
suas atividades vão sendo corrigidos aos poucos. "Eu procuro exaltar o
trabalho de Polícia Federal e eu acho que ele tem que ser exaltado
mesmo”.
Na palestra, ressaltou que esta questão “nem
chega a macular todo o trabalho que é feito. Muito ao contrário, a
Polícia Federal, na desenvoltura de seus trabalhos, tem servido até para
modificar e criar instrumentos processuais – eu citaria o caso do
Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal (MLAT) entre o Brasil e
os Estados Unidos da América, aprovado pelo Decreto nº 3.810/01”.
Explicou
que “a agilidade, o dinamismo, a velocidade da Polícia Federal e das
polícias judiciárias de todo o mundo ocidental, avançado e evoluído, tem
provocado tamanho dinamismo nas investigações que as Cartas Rogatórias
que seriam os instrumentos adequados para um país se comunicar com o
outro não foram suficientes para atender ou para acompanhar a velocidade
investigativa que a polícia investigativa, que a Polícia Federal e a
Polícia Civil têm imprimido aos seus trabalhos”.
Comando da investigação
No único ponto em que a discordância entre os dois palestrantes — o
desembargador federal e o procurador de Justiça — poderia aparecer,
acabou, de certa forma, havendo confluência de pensamento. Azulay Neto,
embora ressaltando o direito do Ministério Público em fazer
investigações, defendeu a tese de que a lei não lhe permite contudo
presidir inquéritos policiais, atividade típica da autoridade policial.
“O
Ministério Público não foi contemplado neste sentido com uma lei que
permitisse presidir inquérito. Uma coisa é produzir atos investigativos.
Isto qualquer um pode, o MP também pode, nos limites da lei, nos
limites da Lei de Organização do Ministério Público, a LOMP, que o
autoriza, inclusive, a requisitar documentos, a proceder a oitiva de
testemunhas. Não há nenhum vicio nisto, nada de errado nisto. Mas
presidir para mim, tenho que não”.
Segundo ele, não
há duvida de que esta tarefa cabe às autoridades policiais, “porque há
atos investigativos que são privativos da autoridade policial. Por
exemplo, se o Ministério Público Federal — que é aquilo que nos diz
respeito — instaura um procedimento administrativo investigativo e
durante as investigações resolve nomear um perito, não é possível. A lei
não autoriza que a nomeação de perito seja feita pelo MP. Ela só pode
ser feita pela autoridade policial. Outro exemplo, a escuta telefônica.
Admitamos que o Ministério Público Federal ou estadual entenda que deva
se proceder a uma escuta telefônica, ele terá que solicitar à autoridade
judicial e, deferida, a lei é expressa no sentido que quem
supervisiona, acompanha e executa é a autoridade policial. Se durante
uma investigação o MP entender que casos como estes e outros, atos
investigativos devam ser executados ele deverá remeter o requerimento à
autoridade policial que deverá presidir o inquérito até o seu termo
final”.
Grecca, ao comentar tais questões, deixou
claro que o MP — em especial o de Minas Gerais, onde atua — não pretende
presidir inquéritos, mas sim ter garantias da continuidade da
investigação sem possíveis interferências externas.
“Por
que em muitas situações o Ministério Público investiga? Porque os
policiais, os delegados de polícia não têm as garantias que o MP tem.
Isto pode ser que não aconteça com a Polícia Federal, mas nas polícias
estaduais — digo isto pelo meu Estado — o delegado pode estar fazendo
uma investigação brilhante, espetacular, aquele trabalho perfeito.
Infelizmente — no meu estado ainda acontece — um telefonema e no dia
seguinte a investigação acabou e aquele delegado de polícia que estavam
em Belo Horizonte vai lá para Unaí, vai para Caxambu, vai para caixa
prego, mas a investigação acabou”.
Baseado nisto é
que defendeu que os delegados briguem pelas mesmas garantias —
inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos — que a Constituição de
88 deu ao Ministério Público. “Acho que a Polícia Federal,
principalmente os delegados da Polícia Federal, tem que brigar por isto,
por garantias. O dia que a polícia tiver as mesmas garantias do MP, da
magistratura, aí o papo é outro, aí muda”, concluiu.
Marcelo Auler é jornalista.
Revista Consultor Jurídico, 26 de abril de 2012
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