No dia 4 de maio de 2010, José Comblin fez uma palestra em Salvador sobre “os desafios do século XXI”. Ao terminar a fala, um dos presentes, angustiado com as perspectivas sombrias para a igreja católica apresentadas pelo conferencista, perguntou: “Padre Comblin, quando é que a igreja vai finalmente mudar?”. Ele respondeu: “A igreja católica mudará quando o papa for chinês”.
Eis uma resposta inesperada e não sei como o público presente a entendeu, pois logo depois foi encerrada a sessão. Pensar tratar-se aqui de uma piada é equívoco. Na realidade, o mestre Comblin estava apontando um futuro que os católicos não costumam imaginar, mas talvez não esteja tão distante.
Costumamos ver o catolicismo como uma religião visceralmente ocidental, mas pode ser que isso venha a ser mudado em anos vindouros. Nada sabemos sobre o futuro, mas pela análise do presente e, principalmente, do passado, é possível apontar o futuro.
O que houve no passado? Nos últimos quinhentos anos, um catolicismo proveniente da Europa se espalhou pelo mundo e se fixou nas duas Américas e na África abaixo do Saara, tudo por meio dos processos violentos da colonização e dominação. Ao iniciar a aventura colonial, a Europa era visceralmente católica e, mesmo sem querer, introduziu estruturas, ideias e imagens católicas nos territórios colonizados, Tentou também de modo insistente penetrar nas culturas do Oriente, mas não conseguiu. Principalmente a Índia e a China resistiram, pois são terras de muita identidade cultural.
O resultado desse processo colonial se traduz hoje na porcentagem de cristãos no mundo: 34% vivem nas Américas, 26% na Europa, 23,6% na África do sul do Saara. Apenas 13,1% vivem na Ásia e no Pacífico. Não falamos aqui dos parcos 0,6% de cristãos vivendo no Oriente médio e na África do norte, onde predomina o islamismo. Estados Unidos, Brasil e México são hoje os três países com o maior número de cristãos, o que mostra claramente que são países formados pela colonização europeia. A Índia e a China têm uma porcentagem de cristãos mínima, e isso mostra que a Europa não conseguiu penetrar na Ásia da mesma forma que penetrou nas Américas e na África equatorial. Mas, como esses dois países abrigam uma população enorme (mais de um bilhão na China e quase um bilhão na Índia), o número de cristãos aí é considerável e continua crescendo. Esse crescimento se opera num clima muito menos marcado pelo colonialismo europeu e por isso há condições mais favoráveis de se formar aí, com o tempo, um tipo de catolicismo menos ocidentalizado e mais integrado nas culturas locais. Eis um prognóstico a ser contemplado: o futuro do catolicismo pode estar na Ásia e isso é uma perspectiva positiva, quando se considera o que está acontecendo atualmente com o catolicismo nos países ocidentais.
Já nos anos 1950 era possível perceber um declínio do catolicismo na Europa. O fenômeno não se observava no interior rural dos países, mas de forma crescente nas grandes cidades como Paris, por exemplo, onde o futuro papa João XXIII era núncio apostólico na época. Ele percebia o problema e essa percepção é uma das razões pelas quais ele resolveu convocar o concílio Vaticano II (na década de 1960). Alguns bispos entendiam as intenções profundas do papa, mas a maioria ainda não tinha percebido o que estava acontecendo e pensava que a igreja católica continuava, como sempre, seu caminho triunfal. Não se percebia tampouco que o inimigo do catolicismo vivia dentro dos muros e das paredes do Vaticano, das cúrias diocesanas e das casas paroquiais, ou seja, dentro do próprio sistema. Esse inimigo não tinha nome, mas se tratava na realidade de autoritarismo. Enquanto o mundo ocidental caminhava para a democracia, a igreja católica permanecia autoritária. Isso fez com que não conseguisse responder aos desafios do mundo moderno, que fazia continuadas experiências na linha da democracia. E, como nos ensinam historiadores como Spengler e Toynbee, um modelo social que não consegue responder aos desafios do momento, desaparece aos poucos. José Comblin foi um dos primeiros sacerdotes de seu tempo a perceber que o catolicismo belga não correspondia mais aos desafios da sociedade. Ele achava que não havia mais nada a fazer, como sacerdote, em sua terra natal. Em 1958, aos 35 anos, decidiu vir para o Brasil, onde pensava encontrar um catolicismo capaz de responder aos desafios da atualidade. Até os anos 1980, parece que as coisas confirmariam as intuições do teólogo, pois surgiram iniciativas de renovação da igreja católica no Brasil, como as comunidades de base, a leitura popular da bíblia, o compromisso com o mundo dos pobres, a teologia da libertação, a formação de leigos, e outras iniciativas. A ilusão se dissipou com a ascensão de João Paulo II ao trono papal. Aí as coisas mudaram rapidamente. A nova palavra de ordem passou a ser: ‘voltar à disciplina de sempre’, ou seja, voltar à igreja anterior ao Concílio Vaticano II, a igreja da obediência e da hierarquia. E aí muitos católicos dos mais lúcidos começaram a não frequentar mais a igreja. O abandono verificado na Europa alastrou-se nas Américas e atualmente a igreja católica do Brasil perde por ano aproximadamente meio milhão de fiéis. O movimento de declínio não para.
Mas não há como dramatizar tudo isso. Como nos lembram os historiadores acima citados (Spengler e Toynbee), a história rejeita quem se recusa a participar dela. Quem não tem respostas para os desafios do momento sai do mapa. As coisas realmente interessantes hoje se passam fora do mundo ocidental. À nossa frente surgem dois grandes países, em franca evolução, onde o modelo católico ocidental só se aplicou em minúsculas experiências sem maior importância e onde, por conseguinte, existem condições favoráveis a uma inculturação frutuosa do cristianismo nas antigas sabedorias budistas, confucionistas e/ou hinduístas. Hoje, a Índia e a China mostram o caminho. Aí existe a possibilidade de um catolicismo voltado para o futuro. Não se deve lamentar glórias e sucessos passados, pois, afinal, tudo é história, tudo é passagem. Por que não dar a Deus licença para passar ao outro lado do mundo? Eis o sentido, penso, da resposta do teólogo a seu irrequieto interlocutor: ‘A igreja católica mudará quando o papa for chinês’.
Eduardo Hoornaert*
Fonte: ASSOCIAÇÃO RUMOS
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