Âncora do Jornal Nacional
da Globo, William Bonner espera ser assistido por um cidadão o mais
possível parecido com Homer Simpson, aquele beócio americano.
Arrisco-me
a crer que Pedro Bial, âncora do Big Brother, espere a audiência da classe média nativa. Ou por outra, ele apostaria desabridamente no Brasil, ao contrário do colega do JN. Se assim for, receio que não se engane.
Houve nos últimos tempos progressos em termos de inclusão social de
sorte a sugerir aos sedentos por frases feitas o surgimento de uma “nova
classe média”. Não ouso aconselhar-me com meus carentes botões a
respeito da validade dos critérios pelos quais alguém saído da pobreza
se torna pequeno burguês. Tanto eles quanto eu sabemos que para atingir
certos níveis no Brasil de hoje basta alcançar uma renda familiar de
cerca de 3 mil reais, ou possuir celular e microcomputador.
Tampouco pergunto aos botões o que há de “médio” neste gênero de
situações econômicas entre quem ganha salário mínimo, e até menos, e,
digamos, os donos de apartamentos de mil metros quadrados de construção,
e mais ainda. Poupo-os e poupo-me. Que venha a inclusão, e que se
aprofunde, mas est modus in rebus. Se, de um lado, o
desequilíbrio social ainda é espantoso, do outro cabe discutir o que
significa exatamente figurar nesta ou naquela classe. Quer dizer, que
implicações acarreta, ou deveria acarretar.
Aí está uma das peculiaridades do País, a par do
egoísmo feroz da chamada elite, da ausência de um verdadeiro Estado de
Bem-Estar Social etc. etc. Insisto em um tema recorrente neste espaço, o
fato de que os efeitos da revolução burguesa de 1789 não transpuseram a
barreira dos Pireneus e não chegaram até nós. E não chegou à percepção
de consequências de outros momentos históricos também importantes. Por
exemplo. Alastrou-se a crença no irremediável fracasso do dito
socialismo real. Ocorre, porém, que a presença do império soviético
condicionou o mundo décadas a fio, fortaleceu a esquerda ocidental e
gerou mudanças profundas e benéficas, sublinho benéficas, em matéria de
inclusão social. No período, muitos anéis desprenderam-se de inúmeros
dedos graúdos.
A ampliação da nossa “classe média”, ou seja, a razoável
multiplicação dos consumidores, é benfazeja do ponto de vista
estritamente econômico, mas cultural não é, pelo menos por enquanto, ao
contrário do que se deu nos países europeus e nos Estados Unidos depois
da Revolução Francesa.
De vários ângulos, ainda estacionamos na Idade
Média e não nos faltam os castelões e os servos da gleba, e quem se
julga cidadão acredita nos editoriais dos jornalões, nas invenções de Veja, no noticiário do Jornal Nacional. Ah, sim, muitos assistem ao Big Brother.
Estes não sabem da sua própria terra e dos seus patrícios, neste país
de uma classe média que não está no meio e passivamente digere versões e
encenações midiáticas. Desde as colunas sociais há mais de um século
extintas pela imprensa do mundo contemporâneo até programas como Mulheres Ricas, da TV Bandeirantes. Ali as damas protagonistas substituíram a Coca e o Guaraná pelo champanhe Cristal. Quanto ao Big Brother,
é de fonte excelente a informação de que a produção queria um “negro
bem-sucedido”, crítico das cotas previstas pelas políticas de ação
afirmativa contra o racismo. Submetido no ar a uma veloz sabatina no dia
da estreia, Daniel Echaniz, o negro desejado, declarou-se contrário às
cotas e ganhou as palmas febris dos parceiros brancos e do âncora Pedro
Bial.
A Globo, em todas as suas manifestações, condena as cotas e não hesita em estender sua oposição às telenovelas e até ao Big Brother.
E não é que este Daniel, talvez negro da alma branca, é expulso do
programa do nosso inefável Bial? Por não ter cumprido algum
procedimento-padrão, como a emissora comunica, de fato acusado de
estuprar supostamente uma colega de aventura global, como a concorrência
divulga. Há quem se preocupe com a legislação que no Brasil contempla o
específico tema do estupro. Convém, contudo, atentar também para outro
aspecto.
A questão das cotas é coisa séria, e quem gostaria de saber mais a
respeito, inteire-se com proveito dos trabalhos da GEMAA, coordenados
pelo professor João Feres Jr., da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro: o site deste Grupo de Estudos oferece conteúdo sobre políticas
de ação afirmativa contra o racismo. Seria lamentável se Daniel tivesse
cometido o crime hediondo. Ainda assim, o programa é altamente
representativo do nível cultural da velha e da nova classe média, e nem
se fale dos nababos. Já a organização do nosso colega Roberto Marinho e
seu Grande Irmão não são menos representativos de uma mídia a serviço da
treva.
Fonte: CARTACAPITAL
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