Apesar da votação, constitucionalista avalia decisão dos ministros e insiste em visão contrária à adotada pela maioria 'Anencéfalo só morre porque está vivo'
Maria Garcia - O Estado de S. Paulo
O valor universal dos direitos humanos vem juridicamente
reconhecido desde a Carta da ONU de 1945, em cujo Preâmbulo os "Povos
das Nações Unidas" reafirmam sua "fé nos direitos fundamentais do
homem...", e na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Na
Constituição brasileira de1988, duas disposições destacam-se no tema: o
art. 5º, caput, pelo qual se garante a inviolabilidade do direito à
vida, e o art. 227, pelo qual "é dever da família, da sociedade e do
Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito á
vida...", além de colocá-la "a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Esse, o
mandamento constitucional dirigido a todos (família, sociedade e
Estado). Então, qual é o problema, afinal, dos direitos humanos?
André Dusek/AE
Católicos rezam do lado de fora do Supremo durante votação sobre o destino de fetos sem cérebro
Um longo processo de desconstrução inicia-se na modernidade. "Ser
moderno", diz Marshall Berman, "é ser ao mesmo tempo revolucionário e
conservador. Pode acontecer então que voltar atrás seja uma maneira de
seguir adiante: levar o modernismo de volta a suas raízes, para que ele
possa nutrir-se e renovar-se".
Evidentemente, o equilíbrio está em responder: o que deve ser
mantido? O que deve ser mudado? E aí está toda a diferença. Charles
Taylor escreve sobre "a doença da modernidade" (1994): a primeira causa
de mal-estar é o individualismo, uma conquista da liberdade que
apresenta traços de uma "sociedade permissiva", do comportamento da "me
generation", ou da generalização do "narcisismo". A segunda causa
prende-se a um outro fenômeno inquietante da época moderna que se pode
chamar "a primazia da razão instrumental, ou seja, essa racionalidade
que utilizamos quando avaliamos os meios mais simples de chegar a uma
dada finalidade". Pensamos em termos de custo/beneficio, os quais
atribuem um valor monetário à vida humana. A primazia da razão
instrumental aparece também no prestígio que cerca a tecnologia e nos
faz buscar soluções tecnológicas mesmo quando o objetivo é de outra
ordem. A terceira causa do mal-estar nos leva ao nível político e às
consequências resultantes, precisamente, do individualismo e da razão
instrumental. Uma delas é que as estruturas da sociedade tecnoindustrial
restringem nossas escolhas, decidem por nós o que nos é necessário, daí
podendo atingir um nível de destruição como o que ocorre com o meio
ambiente, e nas ameaças ecológicas que pesam sobre nossas vidas. Tais
são, conclui Taylor, as três doenças da modernidade: a 1ª, uma perda de
sentido, o desaparecimento dos horizontes morais. A 2ª, ao eclipse dos
fins, em face de uma razão instrumental desenfreada. A 3ª refere-se à
perda da liberdade.
Qual a receita? Segundo Taylor, desenvolver uma cultura política que
valorize a participação do cidadão, seja nos níveis governamentais, seja
nas associações livres, e para tanto, certamente, a educação se mostra
um instrumento poderoso e é o que nos falta estimular.
Sobre o aborto, especificamente, a lei brasileira aponta a sua
possibilidade em certos casos, ressaltando-se que a vida é um processo
que se inicia com a concepção (José Afonso da Silva) e o direito a viver
está assegurado pela Constituição. Direito significa possibilidade do
seu exercício. Fora disso, não existe "direito a". Então, há certos
pressupostos para o exame dessas questões: 1) a Constituição erigiu a
vida em bem jurídico; 2) juridicamente, a vida é um processo que se
inicia com o óvulo fecundado e termina com a morte; e 3) a divisão desse
processo (pré-embrião, embrião, etc.) cabe às ciências naturais, para
fins didáticos, medicinais e outros dessa área. No caso das crianças
anencéfalas, portanto, todos esses pressupostos têm de estar presentes:
existe um ser humano, vivo e, por consequência, sob a proteção
constitucional.
"A tese da chamada ADPF 54", diz o médico e professor Rodolfo A.
Nunes (Folha de S. Paulo, 10/4/12), "é de que na anencefalia não se
trataria de aborto", pois inexistiria a possibilidade de vida
extrauterina e, por isso, se situaria à margem da legislação atual. "Na
realidade, essa tese não tem respaldo na literatura médica. A
anencefalia não é equivalente à morte encefálica: as crianças podem ter
uma parte do encéfalo posterior, médio e resíduos do anterior. Isso faz
com que um pequeno porcentual delas, em função do grau de
comprometimento, possa ter alta hospitalar, chorando, movimentando-se,
respirando espontaneamente e viver semanas, meses ou, excepcionalmente,
mais de um ano." E conclui: "Tentar abreviar o sofrimento trazido por
uma doença grave eliminando alguém porque não se pôde curá-lo é cultura
estranha ao nosso povo". Com efeito, se formos eliminar as causas de
nosso sofrimento, faríamos como O Estado publicou em 3/4/12: "Professor
mata por causa de barulho". O mesmo em outras circunstâncias, mais ou
menos dolorosas e dramáticas. E, sem dúvida, Eliana Zagui, escritora,
até hoje (36 anos) vivendo num leito de UTI no Hospital das Clínicas de
São Paulo, paralisada desde o pescoço aos 3 anos, poderia ter sido
sacrificada por causar sofrimento aos pais, que, aliás, "raramente a
visitam" (Folha de S. Paulo, 10/4/12).
Conforme se destaca dos corajosos e fundamentados votos contrários,
na recente decisão do STF: "Uma decisão judicial isentando de sanção o
aborto de fetos portadores de anencefalia, ao arrepio da legislação
penal vigente, além de discutível do ponto de vista ético, jurídico e
cientifico, diante dos distintos aspectos que essa patologia pode
apresentar na vida real, abriria as portas para a interrupção da
gestação de inúmeros outros embriões que sofrem ou venham a sofrer
outras doenças, genéticas ou adquiridas, as quais, de algum modo, levem
ao encurtamento de sua vida intra ou extrauterina" (ministro
Lewandowski). Assim, "o anencéfalo morre, e ele só pode morrer porque
está vivo". A questão dos anencéfalos tem de ser tratada "com cautela
redobrada diante da imprecisão do conceito, das dificuldades do
diagnóstico e dos dissensos em torno da matéria".
Para que o aborto possa ser considerado crime, basta a eliminação da
vida, "abstraída toda especulação quanto a sua viabilidade futura ou
extrauterina". Nesse sentido, o aborto do feto anencéfalo é "conduta
vedada de forma frontal pela ordem jurídica". Os apelos para a liberdade
e autonomia pessoais são "de todo inócuos" e "atentam contra a própria
ideia de um mundo diverso e plural". A discriminação que reduz o feto "à
condição de lixo em nada difere do racismo, do sexismo, e do
especismo". Todos esses casos retratam "a absurda defesa e absolvição da
superioridade de alguns sobre outros" (ministro Peluso).
Eis a questão do valor universal dos direitos humanos neste limiar do
século 21, quando enfocadas as condições e a dramaticidade da própria
vida, onde quer que se encontre, desde as pequenas criaturas que não têm
voz, às centenas de seres humanos sacrificados no Holocausto.
CONSTITUCIONAL, DIREITO EDUCACIONAL
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