Tenho
lido, visto e ouvido na mídia em geral, e com cada vez maior
frequência, no atual contexto de ampla exposição do Poder Judiciário,
afirmações equivocadas quanto às possibilidades de punição a infrações
legais cometidas por magistrados.
É preciso desfazer esses equívocos.
E é melhor começar pelo segundo, que é mais simples.
Efetivamente,
quando um agente público lesa um particular e este ingressa com a ação
de reparação de dano, quem vai pagar pelo erro é o Erário. Porém isso
vale para qualquer agente público, seja juiz ou não. Está na
constituição: artigo 37, § 6.º, e é muito bom para o cidadão que seja
assim, porque litigando apenas contra o Estado, o cidadão só precisa
provar a ação ou omissão, o nexo de causalidade e o dano. Se litigasse
contra o agente público, além disso tudo, teria de comprovar a culpa ou
dolo deste, o que é complicado.
Eu, seguindo opinião de muitos e bons juristas, acho até que o lesado, querendo, podia litigar desde logo contra o Estado e o
agente causador do dano. Mas o Supremo Tribunal Federal já pacificou
que tem de ser só contra o ente público, que poderá, posteriormente,
acionar o agente (é o chamado direito de regresso).
O único problema é que tais ações regressivas muitas vezes não são
propostas, mas isso não é responsabilidade dos juízes, e sim dos
gestores públicos e da advocacia pública...
De
todo jeito, o magistrado ocasionador de possível prejuízo ao Erário
(como qualquer outro agente público, repita-se), está sujeito a uma ação
de regresso para repor financeiramente tal lesão.
Desfeito
o segundo equívoco, é o caso de analisar o principal, consistente em
dizer-se que, qualquer que seja a infração ou ilegalidade cometida por
magistrado, a pena máxima será, tão-somente, aposentadoria compulsória.
Ainda mais: com a integralidade dos proventos!
Com todo o respeito, não é assim.
Não existe um só dispositivo na Constituição da República que diga isso.
Não existe lei nenhuma dando respaldo a tal afirmação.
Ao contrário. A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) prevê, como sanções disciplinares para
os magistrados (art. 42), numa escala que vai da mais leve à mais
grave: advertência; censura; remoção compulsória; disponibilidade com
vencimentos proporcionais ao tempo de serviço;
aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de
serviço; e demissão (no caso desta última, em atenção à garantia da
vitaliciedade, prevista no art. 95, I, da Constituição da República, por
decisão judicial transitada em julgado).
Portanto,
não tem essa de aposentadoria compulsória sempre integral. Vai tê-la o
magistrado, mesmo punido com essa sanção, que já tiver tempo suficiente,
não aquele que ainda não o integralizou.
Muito menos vale a ideia de que a aposentadoria compulsória é a única pena que pode ser aplicada aos juízes.
Não!
Isso é uma lenda urbana, altamente nociva à magistratura e ao Judiciário, que de tão repetida está ganhando foros de verdade.
É
tão absurdo esse pensamento, que, se fosse verdade, um juiz poderia
assassinar um desafeto e, simplesmente, esperar em casa a aposentadoria,
sem nem se preocupar em responder processo ou temer a prisão.
Claro que não é assim.
Os
magistrados (juízes, desembargadores, ministros dos tribunais
superiores e até do Supremo), além das punições disciplinares de suas
corregedorias, conselhos, entre os quais (exceto para os integrantes do
STF) o Conselho Nacional de Justiça — que só pode aplicar penalidades
administrativas, registre-se —, estão sujeitos a todos os artigos tanto
do Código Civil como do Código Penal e de qualquer lei instituidora de
sanções!
O juiz é um cidadão igual aos demais.
Se
a infração que cometer for apenas administrativa, ele recairá numa
daquelas sanções a que me referi, entre as quais a aposentadoria
compulsória proporcional.
Se, além de administrativa, essa infração também constituir ilícito civil, ele, cumulativamente, poderá sofrer as sanções civis respectivas (de improbidade, por exemplo; de inelegibilidade; de caráter indenizatório, etc.).
E, se ademais disso tudo, dita infração configurar ilícito penal (delito), ele, também cumulativamente, poderá
sofrer as penas criminais cabíveis (inclusive detenção e reclusão, isto
é, cadeia!), sendo até possível que perca a aposentadoria.
Pode-se
até achar — e a liberdade de opinião é sagrada — que são poucos os
magistrados punidos com cadeia. Mas também não são tantos os membros de
outros poderes nessa situação. Além disso, é evidente que não são
muitos, em números absolutos ou relativos, os juízes que delinquem. Há
bandidos de toga, sim (como os há de beca, de jaleco, de macacão, de
colarinho de várias cores), mas não são a maioria. Melhor: são,
felizmente, uma ínfima minoria, em face do grande número de magistrados
que trabalha — e muito — honestamente a bem da Justiça em nosso país.
Portanto,
não é possível, com todo respeito, afirmar que existe um privilégio só
para o Judiciário e só no Brasil, no que tange às punições aplicáveis
aos magistrados.
Não.
As prerrogativas da magistratura (e também do Ministério Público), que
existem na maioria dos países democráticos, são garantias mais do
cidadão que do magistrado.
Afinal,
se o juiz não tiver garantias, como poderá ter independência e altivez
para decidir — se for o caso — contra os poderes constituídos (mesmo o
seu próprio poder!), ou contra os poderes informais, como os econômicos e
os de comunicação social?
Na
verdade, o único privilégio do Judiciário, ultimamente, tem sido
apanhar na mídia. Quando merece, é o jeito; danado é apanhar mesmo
quando não está errado.
Se
quem bate são pessoas sem qualificação, ou de má-fé, nem adianta
responder. Mas quando se vê pessoas sérias e de bom nível repetindo e
propagando equívocos, vale a pena tentar fazer um esclarecimento.
Em
suma: os magistrados podem sofrer muitas punições além da aposentadoria
compulsória. Como essa é a maior sanção que lhes pode ser imposta
administrativamente, e, portanto, tende a ser a primeira que é
divulgada, quando há um caso que comporta punição, gera-se a impressão
de que é a única reprimenda possível. Não é. Há muitas outras, inclusive as privativas de liberdade.
É
preciso dizer isso de forma clara, para que a mídia e a sociedade
fiquem tranquilas de que os membros do Judiciário, nesse aspecto, não
gozam de nenhum privilégio violador da isonomia constitucional.
Marcelo Navarro Ribeiro Dantas Desembargador
do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, mestre e doutor em Direito
pela PUC-SP e professor de Cursos de Graduação e Pós-Graduação em
Direito (UFRN/UNI-RN).
Revista Consultor Jurídico, 18 de abril de 2012
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