STF contraria religiosos e legaliza aborto de anencéfalos
“Hoje é consensual no Brasil e no mundo que a morte se diagnostica pela morte cerebral. Quem não tem cérebro não tem vida”, afirma relator ministro Marco Aurélio de Mello
Em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra Carmen
Lucia afirmou que irá acompanhar o relator e ser a favor da ação que
visa descriminalizar a interrupção de gestações de anencéfalos. O
relator Marco Aurélio de Mello, Rosa Maria Weber, Joaquim Barbosa e Luiz
Fux já votam a favor da ação.
O julgamento, que pode se estender pela quinta-feira (12), continua
na mais alta corte do país e mais cinco ministros irão se pronunciar. Apenas Dias Tóffoli não deve participar, porque já tratou do caso quando era advogado-geral da União. A votação começou as 9h de hoje (11).
Relator da ação no STF, o ministro Marco Aurélio de Mello afirmou que
dogmas religiosos não podem guiar decisões estatais e fetos com
ausência parcial ou total de cérebro não têm vida. A ministra Rosa Maria
Weber admitiu que conceitos científicos são mutáveis e considerou que
anencéfalos podem sobreviver por meses – o que médicos negam. Mas acabou
votando a favor da interrupção da gravidez nesses casos “porque não
está em jogo o direito do feto, mas sim da mulher”.
Ao contrário do que defendem entidades religiosas, o relator afirmou
que o feto anencéfalo não tem como viver. “Hoje é consensual no Brasil e
no mundo que a morte se diagnostica pela morte cerebral. Quem não tem
cérebro não tem vida”, disse. “Aborto é crime contra a vida em
potencial. No caso da anencefalia, a vida não é possível. O feto está
juridicamente morto.” É por isso que os especialistas inclusive são
contrários ao uso do termo “aborto” – preferem usar “interrupção da
gravidez” ou “antecipação do parto”.
Weber afirmou que não há garantia de que os conceitos científicos
sobre o que é um feto anencéfalo sejam estáveis. Ela relatou ter sido
visitada por Marcelo e Joana Croxato, pais de Vitória, que sofre de
acrania, uma má formação diferente da anencefalia. A ação proposta em
2004 no Supremo trata exclusivamente de acencéfalos.
“Nem a ciência tem o controle de todos os seus conceitos”, disse a
ministra. “Plutão por muitos anos do século 20 foi considerado um
planeta e depois deixou de ser. Quem diria que uma área de conhecimento
como a astrofísica poderia recorrer a uma convenção mundial para usar um
conceito como o de planeta?” Até o perfil do STF no microblog Twitter
considerou inicialmente que o voto da ministra era divergente do de
Marco Aurélio, mas depois ela passou a concordar com o relator.
Em um voto curto, o ministro Joaquim Barbosa acompanhou o relator e remeteu a decisões antigas que já tomou na corte.
Estado laico e religião
O ministro reforçou a separação entre Estado e religião ao citar o
“sob a proteção de Deus” do preâmbulo da Constituição Federal como uma
referência sem efeito prático e criticou as referências em notas de real
e em repartições públicas. Mello afirmou que a questão dos anencéfalos
“não pode ser examinada sob os influxos de orientações morais
religiosas”.
“A garantia do Estado laico obsta que dogmas de fé determinem o
conteúdo de atos estatais. Concepções morais religiosas, quer unânimes,
quer majoritárias, quer minoritárias, não podem guiar as decisões
estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada”, disse. “Ao
Estado brasileiro é vedado promover qualquer religião.”
Segundo o relator, a polêmica era prevista, porque é “inescapável o
confronto entre os interesses da mulher e de parte da sociedade que
desejam proteger todos os que a integram”. “[Mas] não há colisão real
entre direitos fundamentais. Apenas há conflito aparente”, disse Mello, o
primeiro ministro a se manifestar nesta quarta-feira.
Diante do Supremo, um protesto reunia cerca de 30 religiosos ligados a
grupos antiaborto. Diante da polêmica com esses grupos, o relator citou
o evangelho de São Marcos para defender a separação entre Estado e
Igreja. “Dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus”, afirmou
Marco Aurélio.
Para o ministro, defender o Estado laico não se confunde com
laicismo. “A laicidade é atitude de neutralidade do Estado. Laicismo é
atitude hostil”, disse. “Deuses e Césares têm espaços apartados. O
Estado não é religioso. Tampouco é ateu. É simplesmente neutro”,
afirmou.
A ação chegou ao STF em 2004, por sugestão da Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). A entidade defende o aborto quando há
má formação cerebral sem chance de longa sobrevivência para a criança.
Para grupos religiosos, incluindo a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), o princípio mais importante é o de que a vida deve se
encerrar apenas de forma natural.
Mas há controvérsias de que o bebê anencéfalo de fato vive – mesmo
que brevemente. Juristas, que autorizam a interrupção de gestações desse
tipo há mais de 20 anos, alegam que legalmente a vida termina na morte
cerebral. É apenas depois disso que são autorizados os transplantes e o
desligamento dos aparelhos.Os anencéfalos nunca chegam a ter vida
cerebral.
Os críticos dessa visão veem no julgamento uma tentativa de abrir as
portas para todos os tipos de aborto, como defendem entidades
feministas, inclusive de dentro da Igreja Católica. De acordo com uma
pesquisa do instituto Datafolha, em 2004 havia 67% de paulistanos
favoráveis a interromper a gravidez de bebês com anencefalia.
Será o último grande julgamento da Corte sob a presidência do
ministro Cézar Peluso, que se aposentará compulsoriamente em setembro,
quando atingirá a idade limite de 70 anos de idade. Carlos Ayres Britto o
sucederá a partir do dia 19 de abril. É também o segundo mais
importante assunto na pauta deste ano, que ainda deverá ter nos próximos
meses o julgamento dos citados no escândalo do mensalão.
Sobre anencefalia
A anencefalia causada por um defeito no fechamento do tubo neural
(estrutura que dá origem ao cérebro e à medula espinhal). Ela pode
surgir entre o 21º e o 26º dia de gestação. O diagnóstico é feito no
pré-natal, a partir de 12 semanas de gestação, inicialmente por meio de
ultrassonografia. Entidades médicas afirmam que o Brasil tem
aproximadamente um caso para cada 700 bebês nascidos.
A grande maioria das crianças que nascem sem cérebro morrem instantes
depois. Além de carregar no útero um bebê fadado a viver possivelmente
por alguns minutos, as mães ainda têm de lidar com a burocracia de
registrar o nascimento e o óbito no mesmo dia. Alguns juízes já
autorizaram abortos desse tipo. O advogado da CNTS na ação, Luis Roberto
Barroso, classifica a gravidez de anencéfalos de “tortura com a mãe”.
Os críticos do aborto de bebês nessa situação citam um caso de 2008
em Patrocínio Paulista, interior de São Paulo. Marcela de Jesus Ferreira
sobreviveu um ano e oito meses porque a ausência de cérebro não era
total e porque sua mãe, Cacilda Galante Ferrari, se recusou a
interromper a gravidez.
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