Thaís Oyama, de Colônia
Mina Ahadi: 'O Islã se voltou contra os mulçumanos'
(Julien Chatelin/Laif)
Ontem à noite, minha filha pediu que eu desligasse o celular: “Mãe,
vamos ver um filme sossegadas. Vamos ficar pelo menos uma noite sem
ouvir más notícias”. Eu desliguei o aparelho, e hoje de manhã havia sete
mensagens, uma delas com voz de criança. Ela falava baixo,
provavelmente porque não podia falar alto: “Por favor, por favor, atenda
o telefone, eu preciso de ajuda”
A iraniana Mina Ahadi mora há catorze anos na Alemanha, mas
pouquíssimos amigos sabem exatamente onde. Desde que ela criou o
Conselho de Ex-Muçulmanos, entidade de apoio a pessoas que abdicaram da
fé islâmica, passou a receber ameaças de morte que a obrigam a viver
quase reclusa. Renunciar ao Islã é considerado entre muçulmanos uma
ofensa grave, punível com pena de morte em países como o Irã, que Mina
foi obrigada a deixar depois que os aiatolás tomaram o poder, em 1979.
Então uma líder estudantil, ela foi perseguida pela Guarda
Revolucionária, teve o marido executado e sua cabeça posta a prêmio.
Conseguiu asilo político na Áustria e depois se mudou para a Alemanha,
onde hoje chefia os Comitês contra a Execução e o Apedrejamento. Mina
Ahadi falou a VEJA em um hotel em Colônia.
A senhora foi uma das pessoas que mais lutaram para que Sakineh
Ashtiani - acusada de adultério e, mais tarde, de participação na morte
do marido - não fosse executada por apedreja-mento. Como se sentiu ao
ouvi-la dizer em entrevista à televisão estatal: “Mina Ahadi, afaste-se
de mim, não é da sua conta se eu sou uma pecadora”?
Sei que Sakineh está sob pressão e foi forçada a dizer isso para se
salvar. Isso não me incomoda. Também seu filho foi obrigado a declarar
diante das câmeras que acredita na culpa da mãe. Mas eu penso que
Ahmadinejad (o ditador iraniano Mahmoud Ahmadinejad) vai precisar de
outra vítima para demonstrar a sua força. Sakineh já está salva. Por
quê? Graças à repercussão que o caso alcançou, o regime não pode mais
executá-la - nem pública nem clandestinamente. O governo já está
convencido disso. Apenas busca achar um meio de não sair desmoralizado
do episódio. Todo esse processo, no fim, foi bom para o Irã. Chamou a
atenção do mundo para a barbárie do regime. Antes do caso Sakineh, a
preocupação dos países em relação ao Irã se limitava à questão nuclear.
Mas não há sinais de que o governo de Ahmadinejad esteja
cedendo a essa pressão mundial. Pelo contrário, medidas recentes apontam
para uma “talibanização” do regime, como a reforma curricular destinada
a “livrar os estudantes da influência ocidental” e a proibição do uso
de determinadas roupas e acessórios.
O Irã neste momento é um país muito instável e seus governantes estão
perigosamente próximos dos mulás dos anos 80. Desde as manifestações de
2009 e a morte de Neda (a estudante Neda Agha Soltan, que, ferida por um
tiro disparado por um membro da milícia islâmica, teve a agonia
registrada em um vídeo que correu o mundo), o governo aumentou a pressão
sobre os estudantes, as mulheres e os trabalhadores. Ele sabe que
qualquer fagulha pode desencadear um incêndio. A derrubada do regime de
Ben Ali (o ditador Zine El Abidine Ben Ali) na Tunísia deve fazer com
que as medidas de repressão se intensifiquem ainda mais. As execuções,
por exemplo, estão aumentando de maneira assustadora. E vêm sendo
conduzidas de uma forma como fazia tempo não se via. Os nomes dos
executados voltaram a ser publicados nos jornais oficiais. Na semana
passada, eles trouxeram mais dez. Desde janeiro, a média no país tem
sido de uma execução a cada oito horas.
Quais são os crimes que mais têm resultado na pena de execução?
As execuções por acusação de envolvimento com drogas têm sido muito
frequentes. Há duas semanas, um jovem de 23 anos foi morto por portar 50
gramas de heroína. No início do mês, outro jovem, acusado de esfa-quear
um amigo em outubro do ano passado, recebeu cinquenta chibatadas. No
dia seguinte, 5 de janeiro, ele foi enforcado em praça pública. Isso se
passou em Teerã - não numa vila longínqua, mas na capital do país. A TV
estatal mostrou-o caminhando para a execução com as mãos amarradas e o
olhar muito assustado (assista ao vídeo).
Depois, um repórter entrevistou parentes da vítima e outras pessoas na
multidão, perguntando o que haviam achado do que viram. Em todas as
entrevistas que foram ao ar, os entrevistados declararam considerar
aquela execução positiva e agradeceram ao presidente pela medida.
Execuções públicas são frequentes em Teerã?
Não, fazia muito tempo que isso não ocorria. Trata-se, claramente, de
uma nova tática do regime para infundir o terror na população. As
prisões estão lotadas. Há, inclusive, crianças e adolescentes aguardando
fazer 18 anos para ser executados. Praticamente todos os dias eu recebo
chamadas de condenados me pedindo ajuda. Ontem à noite, minha filha
pediu que eu desligasse o celular: “Mãe, vamos ver um filme sossegadas.
Vamos ficar pelo menos uma noite sem ouvir más notícias”. Eu desliguei o
aparelho, e hoje de manhã havia sete mensagens, uma delas com voz de
criança. Ela falava baixo, provavelmente porque não podia falar alto:
“Por favor, por favor, atenda o telefone, eu preciso de ajuda”.
Que crime essas crianças e adolescentes cometeram?
Alguns são acusados de assassinato, outros de envolvimento com drogas.
Mas os julgamentos muitas vezes se baseiam no testemunho de uma única
pessoa, ou num comportamento que o estado considera criminoso, como o
sexo entre dois homens ou duas mulheres. Estou em contato com a família
de dois adolescentes presos porque um deles gravou no seu celular cenas
de sexo que teve com o outro e as imagens caíram nas mãos da polícia.
Foram condenados à morte por apedrejamento. Como acontece muitas vezes,
os familiares não querem ajuda.
Por vergonha?
Para não terem sua reputação comprometida. Eles preferem que os jovens fiquem presos.
Preferem inclusive que sejam apedrejados?
Eles não querem que o caso venha a público. O pai de um desses jovens
me disse: “Deixe a nossa família em paz”. Para os homens,
principalmente, trata-se de uma desonra muito grande. Agora, estou
tentando entrar em contato com as mães desses rapazes.
A senhora pode descrever uma execução por apedrejamento?
Ela acontece em geral ao amanhecer. A pessoa condenada tem as mãos
amarradas nas costas e é envolta em uma mortalha branca. Fica totalmente
embrulhada nesse pano, o rosto também. Então, é colocada de pé num
buraco fundo e coberta de terra até o peito, no caso das mulheres, e até
a cintura, no caso dos homens. Dependendo da condenação, é o juiz quem
atira a primeira pedra. Mas pode ser também uma das teste-munhas. Se a
vítima é uma mulher sentenciada por adultério, por exemplo, tanto o seu
marido quanto a família dele podem lançar as primeiras pedras. A lei diz
que elas têm de ser grandes o suficiente para machucar a vítima, mas
não para matá-la no primeiro ou segundo golpe.
Quanto tempo ela leva?
Pode levar quinze minutos, pode levar mais de uma hora. Um médico fica
no local para, de tempos em tempos, verificar se o apedrejado ainda está
vivo. Até o fim dos anos 80, o apedrejamento no Irã era um ritual
público - assim ordenava a lei. O horário e o local eram anunciados no
rádio, nos jornais e na TV. Qualquer um podia comparecer. Mas houve
alguns episódios em que as pessoas se manifestaram contra a prática. Num
deles, chegaram a atirar pedras contra os mulás presentes. Em 1997, na
cidade de Bukan, o apedrejamento de uma mulher acusada de adultério
acabou suspenso devido aos protestos e à interferência da multidão. A
mulher - seu nome é Zoleykhah Kadkhoda - foi levada ao hospital quase
morta, mas sobreviveu e está viva até hoje. Depois disso, as execuções
passaram a ser fechadas. Agora, a polícia religiosa é que atira as
pedras.
Quantas pessoas estão condenadas ao apedrejamento hoje no Irã?
Mais de 100 pessoas já foram mortas dessa forma pelo estado desde 1979 e outras 27 aguardam na fila.
A presidente do Brasil, Dilma Rousseff, posicionou-se
publicamente contra a prática do apedrejamento, que classificou de
barbárie. Qual a expectativa que a senhora tem desse novo governo?
O que eu espero da presidente Dilma é que ela faça o que seu antecessor
não fez: que condene a situação dos direitos humanos no Irã e se recuse
a manter relações diplomáticas com um regime assassino como o de
Ahmadinejad, a quem Lula chamava de “amigo”.
A senhora foi perseguida pelo regime do xá Reza Pahlevi por
suas atividades como líder estudantil. Com a Revolução Islâmica,
tornou-se alvo dos aiatolás ao liderar um movimento contra o uso
obrigatório do véu...
Sim, sim, mas não há comparação. Como líder estudantil em Tabriz, tive
problemas durante o regime do xá: não podia ler alguns livros, dizer
algumas coisas, tinha de me apresentar de tempos em tempos à polícia,
mas era, por assim dizer, um jogo com regras claras. Com Khomeini, no
entanto (o aiatolá Ruhollah Khomeini, líder do movimento que, em 1979,
derrubou a monarquia iraniana e instalou a teocracia no país), tudo
ficou muito mais brutal. Ele criou a Guarda Revolucionária, uma milícia
cruel e impiedosa, principalmente para com as mulheres. Tínhamos de
escolher entre o véu e as chibatadas. Quando fizemos essa manifestação
contra o uso do véu, tudo transcorreu sem incidentes. Mas, no dia
seguinte, quando cheguei à faculdade onde estudava medicina, não pude
entrar. Havia um soldado da Guarda com uma lista de nomes de alunos que
tinham sido expulsos. Eu cursava o último ano da faculdade, já
trabalhava no hospital da universidade e não pude me formar.
Foi então que a senhora se exilou na Europa?
Não. Meu marido não foi expulso como eu e continuou seus estudos de
física. Eu passei a trabalhar como operária na fábrica da Pepsi e, à
noite, escrevia panfletos contra o regime. Tinha uma máquina de
datilografar muito velha que fazia um tremendo barulho. Era preciso
vedar a porta e a janela do nosso apartamento para poder bater os textos
de modo a não chamar a atenção dos vizinhos. Um dia, quando voltava da
fábrica para casa, vi um membro da Guarda parado em frente ao meu
prédio. Dei meia-volta e não entrei. Eles levaram meu marido e cinco
outras pessoas do nosso grupo que estavam hospedadas em casa, três
homens e duas mulheres. Tirando as mulheres, que foram libertadas mais
tarde, todos foram executados, inclusive meu marido. Eu consegui fugir
para Teerã e, de lá, fui para o Curdistão. Depois, como asilada
política, morei seis anos em Viena, na Áustria. Estou há catorze anos na
Alemanha.
Aqui, na Alemanha, a senhora criou um comitê para muçulmanos
que renunciaram à fé islâmica, o que lhe rende ameaças de morte até
hoje. O que a motivou a fazer isso?
Acredito que, como eu, muitos imigrantes de países muçulmanos vieram
para cá em busca de uma vida melhor, o que inclui mais liberdade. E
essas pessoas não precisam estar fadadas a viver em uma sociedade
paralela, em que as crianças não podem ter amigos de outro sexo ou
frequentar aulas de natação por causa de uma religião na qual,
eventualmente, elas não acreditam mais. O que nós queremos é romper esse
tabu, é apoiar as pessoas na decisão de libertar-se desse Islã que se
voltou contra os muçulmanos.
A senhora se considera uma ex-muçulmana?
Sim, desde os 15 anos, quando deixei de fazer minhas preces. Nas
últimas décadas, em muitos lugares, o islamismo tornou-se uma ferramenta
de manipulação política, e não uma religião restrita à esfera privada.
Há muito tempo esse Islã deixou de fazer sentido. Hoje, para mim, ele
significa apenas barbárie e crueldade.
No vídeo abaixo, assista às imagens chocantes de uma execução
pública no Irã. A execução ocorreu em 5 de janeiro de 2011. O rapaz foi
enforcado em praça pública - tinha sido condenado à morte sob acusação
de ter esfaqueado um amigo. A execução foi acompanhada por uma multidão e
registrada em vídeo pela TV estatal iraniana.
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