Em
meio a críticas e deboche, relatório apresentado recentemente no
Conselho Europeu reacende as discussões sobre a possibilidade dos
prisioneiros do Exército de Libertação do Kosovo (UCK) terem sido
vítimas de tráfico de órgãos.
por Jean-Arnault Dérens
Caiu como uma bomba o relatório sobre tráfico de órgãos apresentado
pelo deputado suíço Dick Marty diante do Conselho Europeu , que
apontavam como vítimas os prisioneiros do Exército de liberação do
Kosovo (UCK) 1. As alegações contidas no documento não são
novas: esse tráfico já foi evocado nas memórias publicadas, em 2008,
pela antiga Procuradora Geral do Tribunal penal internacional da ex-
Iugoslávia (TPIY), Carla Del Ponte2. E em Kosovo, a hipótese
de tal tráfico é um “boato” que circula há muito tempo. Da mesma
maneira, a investigaçãopublicada em 2009 pelos jornalistas Altin
Raxhimi, Michael Montgomery e Vladimir Karaj confirmou a existência de
um verdadeiro “arquipélago” de centros secretos de detenção da UCK na
Albânia3.
O relatório de Marty traz, no entanto, várias informações novas,
permitindo compreender melhor os mecanismos desse tráfico. Centenas de
prisioneiros capturados pelo UCK – principalmente sérvios do Kosovo e
provavelmente romenos e albaneses acusados de “colaboração” – teriam
sido deportados para a Albânia, em 1998 e 1999. Aprisionados em vários
pequenos centros de detenção – entre eles a famosa “casa amarela” da
pequena cidade de Rripë, perto de Burrel, visitada pelos inspetores do
TPIY –, alguns deles teriam alimentado o tráfico de órgãos. Os
prisioneiros eram conduzidos para uma pequena clínica situada em Fushë
Kruja, a 15 km do aeroporto internacional de Tirana, assim que alguns
clientes demonstravam interesse em receber órgãos. Eles eram, então,
abatidos com um tiro na cabeça antes que os órgãos, principalmente, os
rins, fossem retirados. Esse tráfico era dirigido pelo “grupo da
Drenica”, um pequeno núcleo de combatentes da UCK reunidos em torno de
duas figuras chaves: Hashim Traçi, atual primeiro-ministro de Kosovo e
Shaip Muja, então responsável pela brigada médica do UCK e, hoje,
conselheiro da saúde do mesmo Hashim Thaçi.
O relatório deixa muitas perguntas sem respostas, principalmente o
número exato de prisioneiros vítimas desse tráfico. A justiça sérvia,
por sua vez, fala de 500 pessoas deportadas à Albânia. Também não se
sabe quais foram os parceiros estrangeiros desse tráfico e, sobretudo,
quem foi beneficiado. O relatório revela, no entanto, que 60 pacientes
do hospital universitário de Jerusalém teriam se beneficiado de um
transplante renal em 2001, número excepcionalmente elevado.
É importante dar ao suposto crime seu devido valor. Se o tráfico é
comprovado, trata-se de um crime medonho contra a humanidade, que se
situa, na ordem do horror, do mesmo nível do massacre genocida de
Srebrenica. Outro ponto determinante é o fato de que o tráfico estaria
ocorrendo até 2001, ou seja, até dois anos depois da entrada das tropas
da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no Kosovo e da
instauração do protetorado das Nações Unidas sobre o território. O
relatório nota, aliás, que a partir de junho de 1999, a fronteira entre a
Albânia e o Kosovo não estava submetida a nenhum controle real.
O relatório suscitou um clamor de protestos e de desmentidos. Alguns
quiseram desqualificar Marty, apresentando o autor como um “adversário
da independência do Kosovo” e até mesmo como um “inimigo do povo
albanês”. O primeiro-ministro da Albânia, Sali Berisha, o rotulou
abertamente de “racista”. Como suporte para essas afirmações, é
frequentemente citada uma entrevista dada por Marty, em março de 2008,
para o site da Rede Voluntária, na qual ele critica, sob o ponto de
vista da legalidade internacional, a proclamação da independência do
Kosovo4. Essa tomada de posição não traduz de maneira nenhuma
uma “aversão” em relação ao povo albanês, nem ao povo do Kosovo, e o
relatório de Marty não seria nem mais, nem menos legítimo se seu autor
estivesse de acordo com a proclamação da independência, sob esse mesmo
ponto de vista jurídico. Nota-se, enfim, que a imprensa da Albânia
critica explicitamente o discurso “antiamericanista” de Marty, uma vez
que este já revelou, em 2006, o escândalo das prisões secretas da CIA na
Europa. Algumas declarações oficiais de Tirana, nesses últimos dias,
associam o suposto “antiamericanismo” do relator e seu preconceito
“antialbanês”.
Alguns acusam igualmente Marty de “preconceitos políticos”, pois ele
publicou seu relatório alguns dias depois das eleições parlamentares
organizadas em Kosovo, em 12 de dezembro, que foram manchadas por
fraudes grosseiras cometidas, principalmente, ao que parece, pelo
Partido Democrático do Kosovo (PDK), do qual Thaçi faz parte. Esse
argumento é fácil de ser rejeitado, pois a concomitância das datas é
apenas uma coincidência. As eleições foram antecipadas e a data fixada
somente no início de novembro.
Por sua vez, diretamente acusado, Thaçi usou de artilharia pesada para
responder a Marty. Em uma entrevista publicada em 30 de dezembro no
Tages Anzeiger, de Zurique, ele retoma as acusações de racismo e chega
até comparar o relatório à “propaganda de Goebbels”5. Do lado
oposto, o assunto foi igualmente superexplorado no contexto político
suíço, algumas semanas depois da adoção pelo referendum de uma lei que
prevê a expulsão dos “estrangeiros delinquentes”. A presidente da
Confederação, Micheline Calmy-Rey, preferiu então “adiar” o recebimento
do “prêmio da diáspora” que deveria lhe ser atribuído, no fim de
dezembro, pela embaixada do Kosovo, em Berna. Os albaneses, além de
alimentarem os números de crimes na Suíça, seriam também “traficantes de
órgãos”. Entende-se que alguns não querem reconhecer essa incriminação
coletiva.
Vários comentaristas estimam que seria “impossível” atribuir tal crime
aos albaneses e tentam “relativizar” a importância do relatório
lembrando a amplitude dos crimes cometidos pelos sérvios, no Kosovo e em
outros lugares dos Balcãns. É surpreendente a mudança de muitos, que
apresentaram Del Ponte como uma heroína da justiça internacional, quando
ela perseguia os criminosos de guerra sérvios e passaram ao ponto de
colocar em dúvida sua saúde mental, desde o momento em que ela evocou
esse tráfico. Florence Hartman, antiga porta voz de Del Ponte, a
criticou em várias entrevistas como irresponsável por ter apresentado
“como fatos reconhecidos, simples hipóteses”, ressaltando que as
investigações conduzidas pelo TPIY não tinham encontrado provas
conclusivas. Contudo, essas investigações, especialmente na famosa “casa
amarela” de Rripë, nunca puderam ser levadas a termo, em parte por
causa da recusa de colaboração das autoridades albaneses6.
Mesmo esperando uma investigação séria e sistemática que possa trazer à
tona a realidade do tráfico de órgãos e que acusações sejam
eventualmente pronunciadas pelo tribunal competente, se pode considerar
como verídicos vários fatos. A princípio, os corpos de centenas de
sérvios e de outros prisioneiros do UCK nunca foram encontrados e é
pouco provável que estejam sob o pequeno território do Kosovo, onde
todos os eventuais lugares de chacinas e valas comuns já foram
identificados e revirados. Também é certo que um número importante
desses prisioneiros foi deportado para a Albânia, onde o UCK tinha uma
rede de centros de detenção. Devemos admitir também que mais de dez anos
depois dos fatos, é muito provável que esses prisioneiros estejam hoje,
na maioria, mortos. Seus corpos tampouco foram descobertos na Albânia7.
Por outro lado, a existência de um tráfico de órgãos em Kosovo,
alimentado por “voluntários” que vão vender seus rins já foi comprovado.
Pacientes, principalmente israelenses, vão à clínica Medicus de
Prístina para receber os órgãos saudáveis. Esse tráfico implica um
personagem muito inquietante, um cirurgião turco chamado Yusuf Erçin
Sönmez, conhecido por “Doutor Abutre”, atualmente foragido. O caso da
clínica Medicus, cujo processo acaba de ser aberto em Prístina, não está
obrigatoriamente ligado ao eventual tráfico de órgãos praticado, dez
anos antes, com prisioneiros do UCK, mas as coincidências chamam atenção8.
As reações da mídia, da classe política e mais amplamente da sociedade albanesa, especialmente na diáspora9,
lembram a negação, há muito tempo demonstrada por grandes setores da
opinião sérvia face aos crimes cometidos por seu próprio exército. Os
dois argumentos centrais são os mesmos: “nosso povo não pode ter
cometido tal atrocidade”, e “nosso povo foi vítima de crimes ainda
piores do que esses que lhes são imputados”. A realidade dos crimes
cometidos pelas forças sérvias no Kosovo não invalida, no entanto, a
hipótese de que alguns albaneses tenham cometido outro crime,
particularmente infame.
O problema é que “o povo albanês” não é de forma alguma culpado desse
eventual tráfico, assim como “o povo sérvio” não tem que suportar a
responsabilidade pelo massacre genocida de Srebrenica: esses crimes têm
seus culpados e cabe à justiça definir a responsabilidade pessoal. Essa é
a única forma de evitar que povos inteiros, e as gerações futuras,
carreguem o fardo penoso de uma responsabilidade coletiva. No Kosovo,
somente Albin Kurti, o governante do movimento Vetëvendosja
(“Autodeterminação”) parece ter compreendido o verdadeiro significado do
que está em jogo. Ele pediu oficialmente que a Justiça se ocupe do
dossiê de Thaçi, estimando que essa seria a única forma de limpar a
honra da totalidade dos combatentes e de simpatizantes do UCK da
suspeita de uma responsabilidade coletiva10.
Na Albânia, uma das raras vozes críticas que se levantou foi a do
ensaísta Fatos Lubonja, antigo prisioneiro político do regime stalinista
e grande figura de esquerda. Em uma matéria publicada pelo jornal
Panorama, Lubonja ousa estabelecer um paralelo entre esse suposto crime e
o ocorrido em Srebrenica, enfatizando que os albaneses correm o risco,
de agora em diante, de suportar o peso arrasador em seu consciente
coletivo. Denunciando a “frente patriótica”, que se forma de Tirana à
Prístina, para recusar que seja feita uma investigação, ele escreve: “a
acusação é certamente pesada, mas recusar a investigação que a
confirmaria ou a desmentiria é ainda pior. Essa recusa faz de todos nós
culpados e creio que a maioria dos albaneses não gostaria de se sentir
envolvido nesse tipo de crime”11.
As criticas de Marty apontam a ausência de provas fornecidas para seu
relatório. A resolução adotada por unanimidade pela Comissão da
assembleia parlamentar do Conselho da Europa pede justamente que as
investigações sejam diligentes para encontrar essas provas. Na voz da
sua representante de política externa, Catherine Ashton, a União
Europeia avaliou que essa investigação deveria ser dirigida pela missão
europeia Eulex, encarregada de ajudar as instituições do Kosovo na
construção do Estado de direito. Sempre repetindo suas críticas, o
governo albanês comunicou que não se oporia. Por sua vez, Del Ponte
levantou o problema da jurisdição competente para julgar tal assunto: o
TPIY não poderia mais abrir novos dossiês e seria necessário criar um
tribunal ad hoc, ou transmitir o dossiê a Corte Penal internacional (CPI)12.
Enfim, as responsabilidades que apontam o relatório não concernem
somente a Thaçi e os antigos dirigentes da guerrilha albanesa. No seu
livro, Del Ponte explica o muro no qual ela se chocou, quando tentou, a
partir de 2000, conduzir investigações sobre os supostos crimes do UCK,
citando nomeadamente o chefe da missão da ONU, Bernard Kouchner, assim
como o general francês Valentin, então comandante-chefe da KFOR. Para
tentar explicar esse bloqueio, ela escreve: “Estou certa de que os
responsáveis da MINUK e mesmo da KFOR temem por suas vidas e pela vida
dos membros de suas missões”. Indo mais longe, ela acrescenta: “no
espírito da MINUK e da KFOR, [Hashim] Thaçi e [o antigo chefe militar da
UCK, Agim]. Ceku não representava unicamente um perigo para segurança
de seu pessoal e o cumprimento das suas missões: eles colocariam em
perigo toda a construção do processo de paz nos Bálcãs”13.
Em entrevista publicada em 21 de dezembro pelo jornal sérvio Politka, o
capitão canadense Stu Kellock, antigo chefe do departamento de polícia
de Minuk, declara: “Não posso afirmar que Kouchner conhecia o tráfico de
órgãos, mas é impossível que não tenha tido informações sobre o crime
organizado no Kosovo.” De fato, a luta contra o crime organizado
representava uma das prioridades das missões internacionais. O capitão
Kellock explica igualmente que “toda crítica contra Hashim Thaçi e os
seus” era imediatamente rejeitada nos “círculos onde [ele] trabalhava”14.
Por “realismo político”, vários países ocidentais optaram por jogar a
“carta” política que representava Thaçi. É sabido que este último era
aconselhado, já durante a guerra, por agentes de certos serviços de
informação, especialmente a DGSE francesa. A implicação direta de Thaçi
em várias atividades ilegais (extorção, lavagem de dinheiro etc.) está
igualmente comprovada. Por causa da preocupação de não “queimar” um
precioso aliado político, os “protetores” ocidentais de Thaçi escolheram
passar uma esponja em seus “pecados veniais”. Se uma investigação
confirma a implicação de Thaçi em um abjeto tráfico de órgãos, seus
“protetores” ocidentais correm o risco de serem prejudicados.
Interrogado por um jornalista sérvio sobre o tráfico de órgãos em 27 de
fevereiro, quando estava fazendo uma viagem oficial ao Kosovo,
Kouchner, então ministro dos Negócios Estrangeiros, explodiu de rir,
antes de exclamar: “eu tenho cara de quem vende órgãos?”, e de sugerir
ao jornalista “para ir se tratar”15. O riso de Kouchner ecoa hoje de maneira sinistra.
Jean-Arnault Dérens redator-chefe do Courrier des Balkans.
1 O relatório está disponível no site do Conselho Europeu.
2 Tradução francesa: Carla Del Ponte, A caçada. Os criminosos de guerra e eu, Paris, Heloïse d`Ormesson, 2009.
3 Ler Altin Raxhimi, Michael Montgomery e
Vladimir Karaj, “ Albânia e Kosovo: os campos da morte do UCK”, O
Correio dos Bálcãs, 10 de abril de 2009.
4 “Dick Marty: “A independência do Kosovo nao foi decidida na Prístina”, voltairenet.org, 12 de março de 2008.
5 “Martys Vorgehen erinnert mich an Goebbels”, Tages Anzeiger, 30 de dezembro de 2010.
6 Ler Ben Andoni, “Tráfico de órgãos na
Albânia: na “clínica fantasma” de Carla Del Ponte”, O Correio dos
Bálcãs, 19 de maio de 2008.
7 Lembremos que as autoridades albanesas
tinham se recusado de acessar, em 2003, os pedidos dos investigadores
do TPIY, que gostariam de fazer as exumações no cemitério de Rrïpe.
Essa recusa foi oficialmente justificada por “razões culturais”.
8 Ler Tráfico de órgãos: a vasta rede do “Doutor Abutre”, cirurgião turco” O Correio dos bálcãs, 21 de dezembro de 2010.
9 Ler Blerim Shabani & Sevdail
Tahiri, “O relatório de Dick Marty sacode a diáspora albanofone na
suíça”, albinfo.ch, 20 de dezembro de 2010.
10 Ler “Kosovo: Vetëvendosje pede que Thaçi seja apresentado a justiça”, O Correio dos Bálcãs, 18 de dezembro de 2010.
11 Fatos Lubonja, “Pse refusohet raporti i Dick Marti?”, Panorama, 22 de dezembro de 2010.
12 Ler “ Tráfico de órgãos de UCK: Carla
Del Ponte pela transmissão do dossiê a CPI” , O Correio dos bálcãs, 23
de dezembro de 2010.
13 Carla Del Ponte, A Caçada, op.cit., pp.460-461.
14 Ler Rade Maroevic, “Kusner je morao
da zna”, Politika, 21 de dezembro de 2010, e R.S.V., “Tráfico de órgãos:
kouchner sabia”, O Correio dos Balcãs, 29 de dezembro de 2010
15 O vídeo desse encontro circula muito na internet. Podemos consultar no Dailymoton.
Fonte: LE MONDE DIPLOMATIQUE
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