A
ioga já foi moda entre místicos e malhadores. Agora, uma nova safra de
livros conta como os ocidentais transformaram a prática indiana em
ferramenta laica de bem-estar existencial
Marcela Buscato
Á VONTADE
A apresentadora Cynthia Howlett durante a prática de vinyasa ioga. Cynthia diz que a aula ajuda
a desligar da vida corrida
Quando
a escritora americana Claire Dederer procurou aulas de ioga, diz ter
escolhido uma escola decorada no estilo “não tenha medo, nós não somos
um culto”. Pensou que talvez conseguisse o bumbum invejável de sua amiga
Katrina, que também tinha aderido à prática. Riu da professora que
disse se chamar Atosa, mas que tinha cara de Jennifer. Claire conta que
encarava com ceticismo as pílulas de sabedoria oriental disparadas pelos
professores entre um pranayama, exercício de respiração, e uma asana,
nome dado às posturas de ioga. Criada por mãe e padrasto hippies, ela
decidira que havia esgotado na infância sua cota de misticismo e
práticas alternativas. Tudo o que queria era ficar flexível, magra e
rija, sem as dores nas costas que a atormentavam. Mas a ioga deu a
Claire mais do que ela procurava.
A mistura de técnicas
de respiração e alongamento, criada há mais de 5 mil anos na Índia com o
objetivo de preparar o corpo e a mente para atingir estados
transcendentais, revelou sentimentos sufocados por Claire: a mágoa com o
marido, que só se preocupava com as contas da casa, o incômodo com a
proximidade da família e dos amigos, que exigiam que ela fosse a mãe
perfeita, o ressentimento com a separação dos pais durante a infância.
Melhor ainda, a prática rotineira das posturas e da respiração ajudou a
escritora a superar esses problemas. É essa transformação por meio da
ioga que Claire relata no livro recém-lançado nos Estados Unidos Poser: my life in twenty-three yoga poses (Minha vida em 23 posturas de ioga).
Deverá chegar ao Brasil em maio, pela editora Sextante. Nele, Claire
conta como cada exercício ajudou a decifrar um de seus sentimentos – sem
que a ioga tenha proporcionado qualquer iluminação sobrenatural. “Como a
prática exige concentração na respiração e nos movimentos, as pessoas
aprendem a prestar atenção nelas mesmas”, diz Angela Alves, professora
da escola Pratique Yoga, em São Paulo. Parece banal, tão corriqueiro
quanto respirar, mas, na agitação do dia a dia, esse tipo de
autopercepção passa ao largo.
Claire é apenas mais uma
integrante da geração que resolveu estender o tapete de ioga (mat) ou se
pendurar nas cordas para se conhecer. Para esses exploradores, pouco
importa a modalidade de ioga: ashtanga (prima pela movimentação quase
ininterrupta), iyengar (usa cordas e outros materiais para facilitar a
execução dos exercícios), hatha (privilegia posturas), haja (enfatiza a
meditação). Todas elas exigem mexer o corpo e exercitar a mente. E
propiciam, com esse aprendizado, alguma forma de conforto e
autoconhecimento. “Eu entro na aula Bin Laden e saio Dalai-Lama”, diz a
enfermeira paulistana Ana Palmieri, de 46 anos, que pratica hatha ioga
há quatro anos.
NOVO OLHAR
A artista plástica Soraya Lucato executa postura de hatha ioga. Com as aulas, ela percebeu que tinha de parar de fumar e mudar de emprego
No século passado a
prática de ioga oscilou entre dois extremos – o da alma, na forma de
uma religião ou filosofia, e o do corpo, como um exercício físico puro e
simples. Nas décadas de 1960 e 1970, marcadas pela cultura hippie, o
pêndulo oscilou para o lado da alma. Ioga era coisa de bicho-grilo, de
quem queria atingir outros níveis de consciência ou curtir uma viagem
espiritual. O entusiasmo de ídolos como os Beatles ajudou a reforçar o
aspecto transcendental, fiel às origens indianas. A banda britânica
adotou como guru o indiano Maharishi Mahesh Yogi, visitou seu ashram
(comunidade religiosa) na Índia para aprender meditação e usou mantras
em suas canções. No final dos anos 90, foi a vez do pêndulo oscilar para
o lado do corpo. A cantora Madonna estampou capas de revistas com
formas enxutas, obtidas com uma modalidade de ioga que virou moda nas
academias, a ashtanga. Os alunos queriam músculos bem torneados. E só.
Nos
últimos dez anos, no embalo de estudos científicos que mostram os
efeitos da ioga sobre o cérebro e o organismo, a prática se tornou menos
do que uma filosofia e mais do que uma atividade física. Encontrou um
novo centro entre Beatles e Madonna. “Hoje, os praticantes não estão em
uma busca espiritual nem querem apenas um corpo perfeito”, diz Shakti
Leal, coordenadora do Espaço Nirvana, estúdio de ioga no Rio de Janeiro.
“Eles querem o bem-estar da mente.” O componente espiritual da ioga se
transmutou no Ocidente em satisfação. “Com a separação entre ciência e
religião em nossa sociedade, cuidar do corpo e da mente ganhou um
significado semelhante ao de cuidar do espírito”, afirma o antropólogo
Silas Guerriero, pesquisador de ciências da religião da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
A ciência começa a
explicar por que praticantes de ioga narram sensações de conforto físico
e mental. Os pesquisadores submeteram adeptos a exames que medem a
atividade elétrica do cérebro e descobriram que a calma e a clareza de
ideias relatadas pelos alunos se devem aos efeitos da ioga sobre a
atividade dos neurônios. Ao centrar a atenção em nossa respiração e nos
mantras, mandamos para o cérebro a mensagem de que ele pode desacelerar.
Com isso, aumentam as ondas cerebrais do tipo alfa, associadas ao
estado de atenção relaxada. É o suficiente para manter nosso raciocínio
afiado, mas sem aumentar a ansiedade. Em novembro, cientistas americanos
anunciaram a descoberta de mais um mecanismo de atuação da ioga sobre o
bem-estar. A equipe do neurologista Chris Streeter, da Escola de
Medicina da Universidade Boston, constatou que o cérebro de praticantes
tinha quantidade maior de uma substância relacionada a baixos níveis de
ansiedade. A divulgação desse tipo de estudo teve um papel importante
para consolidar a ioga como algo mais do que uma crença ou um simples
exercício. “As pesquisas s estão ajudando a desmistificar a ioga”, diz o
psicofisiologista Marcello Árias Dias Danucalov, que estuda os efeitos
da prática sobre o cérebro. “As pessoas entenderam que a ioga é
autoconhecimento sem misticismo.”
Fã
de corrida, natação e ciclismo, a apresentadora Cynthia Howlett, de 33
anos, deixa o tênis, a piscina e a bicicleta de lado para se alongar nas
cordas ao menos duas vezes por semana. “A ioga é o momento que eu tenho
para me acalmar”, diz. Praticante há dez anos, Cynthia havia dado um
tempo nas aulas para se dedicar à dança e a outras atividades. Mas
voltou há dois meses porque sentia falta da “onda” que a ioga
proporciona. “Eu me desligo das preocupações da minha vida, que é muito
corrida”, diz Cynthia, casada com o ator Eduardo Moscovis, mãe de
Manuela, de 3 anos, apresentadora do canal GNT e estudante do 2o ano de
nutrição, sua terceira faculdade (ela é formada em Direito e
jornalismo).
DESCOBERTA - A escritora americana Claire Dederer. Ela descobriu na aula de ioga seus conflitos pessoais
Essa nova geração de praticantes de ioga é formada por pessoas como Cynthia. São, sobretudo, mulheres, que se dividem entre casa, trabalho, marido e filhos. Elas encontram nas técnicas de respiração uma brecha para arejar as ideias. Nos exercícios de alongamento, uma oportunidade de expandir seus horizontes. Na estabilidade de uma postura, equilíbrio para viver. Muitas chegam aos estúdios de ioga à beira de um colapso emocional, pressionadas pelos múltiplos papéis que devem exercer. “Há uma pressão social para que a mulher se realize entre os 30 anos e 40 anos, como se seu prazo de validade estivesse para expirar”, diz o psiquiatra Alberto Goldin. “Sem ter como fugir do trabalho e da família, a mulher foge para dentro de si mesma.” Algumas com muito glamour.
A
jornalista americana Elizabeth Gilbert decidiu que era hora de se
conhecer depois de enfrentar o divórcio. Viajou por Itália e Indonésia,
com direito a uma parada na Índia, para meditar em um ashram. A jornada
de autoconhecimento rendeu o livro Comer, rezar, amar (Editora
Objetiva), publicado em 2006. Campeão de vendas, virou no ano passado um
filme de mesmo nome com a atriz Julia Roberts no papel de Liz. A
britânica Lucy Edge escolheu o mesmo caminho da colega americana. Deixou
uma carreira bem-sucedida em publicidade para se aventurar por ashrams.
Suas descobertas na ioga já renderam dois livros: Yoga school dropout (algo como Fora da escola de ioga), publicado em 2004, e The handbag and wellies yoga club (Clube da ioga de maleta e galochas),
lançado em 2009. A última a enveredar pelos mantras indianos foi a
escritora Dani Shapiro. No ano passado, ela lançou no mercado americano o
livro Devotion (Devoção) , em que conta como a ioga e outras filosofias ajudaram a dar sentido a seus momentos difíceis.
A
artista plástica Soraya Lucato, de 41 anos, não precisou ir até a Índia
para mudar sua vida. A transformação aconteceu gradualmente, ao longo
de sete anos, em um estúdio de ioga, em São Paulo. Soraya, então gerente
de projetos culturais em uma empresa multinacional, vivia estressada.
Decidiu praticar ioga pela manhã para que a calma conseguida na aula
durasse o dia todo. “Eu passei a me entender”, diz Soraya. “Percebi que
precisava pensar mais em mim e menos nas situações que me estressavam.”
Foi assim que parou de fumar. Há dois anos, ela praticava uma técnica de
respiração, quando se deu conta de que fumava porque era o momento que
tinha, no agito do cotidiano, para respirar. “Nunca mais coloquei um
cigarro na boca depois daquele dia”, afirma.
No ano
passado, inspirada pelas percepções obtidas na prática da ioga, ela
tomou uma decisão mais radical. Pediu demissão do emprego e partiu para
fazer um curso de especialização em artes na França. No próximo mês,
Soraya vai inaugurar seu novo estúdio, onde ensinará adultos e crianças a
lidar com estresse por meio da pintura. O insight não aconteceu durante
uma postura específica, como a americana Claire relata em vários
episódios de seu livro (leia o quadro abaixo). Soraya diz que a
ioga mudou aos poucos sua forma de pensar: “Quando entoo mantras, é
como se eu liberasse espaço no meu cérebro para entender o que quero de
verdade na vida e o que está me incomodando”.
Mesmo os
adeptos da ioga em sua forma tradicional – como Pedro Kupfer, um dos
fundadores da Aliança do Yoga, organização que reúne instrutores da
prática – reconhecem que a filosofia admite múltiplas interpretações.
“Algumas formas de ioga pedem a mesma fé que a religião exige. Outras
pedem que a pessoa compreenda quem ela é sem apelar a nenhum tipo de
crença”, diz ele. “Essa flexibilidade torna a ioga muito versátil e
atraente nos dias atuais, quando algumas das grandes religiões parecem
ter perdido a força e as pessoas não se contentam nem se preenchem com o
materialismo nem com o humanismo.” A jornalista americana Stefanie
Syman, autora do livro Subtle body (algo como Corpo hábil),
em que conta como a prática indiana foi adaptada ao pensamento
ocidental, diz que a transformação da ioga em uma atividade inteiramente
secular não é ruim. “O que importa é que as pessoas podem se beneficiar
da ioga ao reduzirem seu nível de estresse.”
Enquanto
os tradicionalistas continuam usando a ioga como ferramenta para se
conectar ao sagrado e uma nova geração busca o bem-estar da mente, há
quem ofereça apenas os benefícios físicos da atividade. A nova sensação
da ioga em Nova York é a escola Strala Yoga, criada pela ex-modelo Tara
Stiles. Tara tem causado polêmica por ter eliminado qualquer referência
ao componente espiritual da prática. Ela diz querer popularizar a ioga.
Por isso, aboliu os nomes em sânscrito das posturas ou suas traduções já
consagradas. Está sendo acusada de “Mcdonaldizar” a milenar tradição
hindu em mais uma aula de ginástica.
Talvez o segredo da
ioga para conquistar praticantes de perfis tão diversos seja justamente
sua característica multifacetada. “A ioga atinge diferentes níveis:
corpo, mente e espírito”, diz Camila Ferreira-Vorkapic, pesquisadora da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, que estuda os efeitos
psicológicos da prática. “Cada pessoa escolhe qual aspecto quer
desenvolver.” Para a escritora americana Claire, é o mistério que
encanta na ioga. “É algo que você faz com seu corpo, mas cujo efeito se
propaga para todas as áreas da vida”, diz. “Aprendi lições
incontestáveis sobre como viver.”
Fonte: Revista ÉPOCA
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