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quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Há cidadãos no Brasil

O leitor Pedro Benedito Maciel Neto discute a atual configuração judiciária brasileira
O programa Direito e Literatura, da TVE, mediado pelo Procurador de Justiça Lenio Streck e também com a participação do jurista Ingo Wolfgang Sarlet, fez um interessante debate sobre o conto “O moleiro de Sans-Souci”, de François Andrieux, no qual se cinzelou a famosa frase: “Ainda há juízes em Berlim!”, antes de entrar no assunto registro que muitas vidas são como a poesia de Carlos Drummond de Andrade. Ele a descreveu como algo cheio de imperfeições: “Minha poesia é cheia de imperfeições. Se eu fosse crítico, apontaria muitos defeitos. Não vou apontar. Deixo para os outros. Minha obra é pública.”
Feita essa ressalva, é possível dizer que há juízes no Brasil, assim como havia em Berlim… E quem não se lembra conto em que o humilde moleiro, que não queria vender suas terras para Frederico, o Grande, que as desejava para aumentar seus aposentos palacianos? Quando o rei disse-lhe que era rei e tudo podia, o moleiro respondeu-lhe: “Vossa Majestade, mas ainda há juízes em Berlim”. E Frederico desistiu. é bom pensar nisso sempre, e de uma forma mais ampla: há cidadãos no Brasil e são os cidadãos que criaram as instituições, as estruturas, o Estado e os três poderes, por isso os cidadão, a sociedade estão acima e além.
E como é tempo de ativismo e de judicialização da política é preciso refletir sobre os efeitos disso na própria jurisdição. A palavra JURISDIÇÃO, que tem sua origem na composição das expressões jus, júris (direito) e dictio, dictionis (ação de dizer), teria surgido da necessidade jurídica de se impedir que a prática temerária da autodefesa, por parte de indivíduos que se vissem envolvidos em um conflito, levasse a sociedade à desordem oriunda da inevitável parcialidade da justiça feita com as próprias mãos. Por isso o Estado chamando para si o dever de manter harmônico e estável o equilíbrio da sociedade em substituição às partes, incumbiu-se da tarefa de administrar a justiça, isto é, de dar a cada um o que é seu, garantindo, por meio do devido processo legal, uma solução imparcial e ponderada, de caráter imperativo, aos conflitos interindividuais.
Reconhecendo a necessidade de um provimento desinteressado e imparcial, o Estado, mesmo sendo o titular do direito de dizer o Direito e detentor da pretensão punitiva, autolimitou seu poder repressivo atribuindo aos chamados órgãos jurisdicionais a função de buscar a pacificação de contendas, impondo, soberanamente, a norma que, por força do ordenamento jurídico vigente, deverá regular o caso concreto, assim, por intermédio do Poder Judiciário, busca-se, utilizando-se do processo, investigar qual dos litigantes tem razão, aplicando, ao final, a lei ao caso litigioso, está ai o conceito de jurisdição, ou no mínimo uma forma singela de compreende-la.
Alguns doutrinadores importantes definem jurisdição como sendo uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça. Em outras palavras, seria através do exercício da função jurisdicional, o que busca o Estado é fazer com que se atinjam, em cada caso concreto, os objetivos das normas de direito substancial.
A Jurisdição, que nasceu da necessidade jurídica de se impedir que a prática temerária da autodefesa, por parte de indivíduos que se vissem envolvidos em um conflito, o que poderia levar a sociedade à desordem oriunda da inevitável parcialidade da justiça feita com as próprias mãos, pode estar a viver um momento singular, pois há quem afirme que a partir da transição política no Brasil, com o fim da ditadura militar e com o advento da nova constituição aumentou a presença do Poder Judiciário, seus rituais e dos seus agentes no cotidiano da sociedade brasileira, com reflexões na própria democracia.
É exatamente sobre esse aumento crescente da presença do Poder Judiciário em questões sociais, abandonando progressivamente o cânon que lhe vinha de décadas de positivismo político kelseniano que passo a refletir. Sobre a jurisdição em tempos de ativismo judicial e de judicialização da política, convido o generoso leitor a acompanhar criticamente as opiniões e dúvidas que o texto apresentará. É inegável que no exercício necessário da jurisdição a visibilidade do Poder Judiciário tem aumentado enormemente nas últimas duas décadas, mas esse aumento de visibilidade e até de protagonismo vem acompanhado de dúvidas sobre o quanto o chamado ativismo é válido, legitimo e elemento positivo para o fortalecimento da democracia e para o amadurecimento das instituições. Afinal tudo que é demais não é bom.
Se na antiguidade o direito confundia-se com regras de moral, religião e convivência. Não se podiam perceber nitidamente quaisquer subdivisões das normas sociais, entre as quais estava o Direito, gradativamente foram-se isolando as normas jurídicas e, exclusivamente com elas, construíram-se os sistemas jurídicos positivos. O Professor Arruda Alvim afirma que antes dessa evolução, por estarem amalgamadas as normas do ordenamento jurídico com outras regras sociais, também a posição do Juiz era confusa, tanto que nos primórdios das sociedades a autoridade jurisdicional não era exercida por uma pessoa que tivesse exclusivamente essa função.
Juntamente com a função exclusiva de dizer o direito, através da qual se busca a aplicação imparcial da lei, os juizes, ou a função jurisdicional exercida, passaram a ser protegidos com garantias de ordem pessoal e funcional que asseguram a liberdade do juiz e a segurança da própria sociedade. Mas essas garantias que, em minha opinião, retiram legitimidade do ativismo e da judicialização, pois as garantias constitucionais dos magistrados existem e são necessárias para que o Poder Judiciário possa cumprir as funções constitucionais, aí se justifica a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos, e não para o crescente envolvimento com questões sociais e políticas.
Essas garantias asseguram a independência funcional do magistrado, sobretudo, em relação ao Poder Executivo, tanto que a advertência de Pedro Lessa, feita em 1915, permanece atual: “Importa garantir o Poder Judiciário, defendendo-o da pressão, das usurpações e da influência dos outros poderes políticos. Para isso é mister organizar de tal modo a magistratura, que, em vez de ficar dependente do Poder Executivo, constitua ela um freio a esse poder”.
As garantias constitucionais dos juízes – a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos – são garantias da própria sociedade e devem ser consideradas cláusulas pétreas, não podendo ser alteradas por meio de emenda constitucional. Estão, portanto, subtraídas da área de incidência do poder reformador e tendo os magistrados tais garantias não é razoável que possam valer-se delas para interferir nas políticas públicas e na vontade popular. Portanto as garantias fundamentais da magistratura são validas no contexto da tripartição dos poderes, que nada mais significa do que a tripartição de funções, um critério orgânico representativo da impenetrabilidade de um poder no outro, assegurando-se a plenitude e a pureza do exercício de cada função.
Se na antiguidade o fundamento da ordem jurídica e da própria realização da Justiça era o rei modernamente o fundamento sobre o qual se assenta o Direito reside na vontade do povo, assim a justiça deve ser feita em nome da república, governada por leis elaboradas por mandatários do povo, eleitos para isso. O processo eleitoral é elemento político fundamental.
Por isso tudo, a expansão do Poder Judiciário tem-se tornado uma das principais questões em debate na teoria política contemporânea em todo o mundo ocidental. O Poder Judiciário, antes apêndice dos poderes representativos, hoje ocupa um lugar privilegiado no processo decisório da maioria dos países democráticos ocidentais, algumas vezes alterando a própria vontade popular das urnas e outras interferindo na construção e execução de políticas públicas.
Muito se debate sobre o tema. O ativismo ou a judicialização vem despertando interesse de pesquisadores nos campos da ciência política, das ciências sociais e da ciência do Direito. Mas o que é e do que trata a Judicialização? Bem, quando me refiro a judicialização estou a falar sobre o fenômeno de expansão do Poder Judiciário na vida política do país, um fato que a rigor não é novo, pois desde há muito tempo muitos países ocidentais e democráticos passaram a adotar o Tribunal Constitucional como mecanismo de controle dos demais poderes, ou, noutras palavras, passou a haver um sistema que obriga que o Poder Executivo a negociar seu plano de ação política com o Parlamento e a preocupar-se em não infringir a constituição.
O ex-ministro da Justiça, Tarso Genro, afirmou recentemente que o Brasil assiste a uma espécie de “judicialização” da política, e deu como exemplo o fato de a Justiça Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal (STF) haverem regulado o sistema partidário e eleitoral. Para ele, a inércia do Legislativo está abrindo espaço cada vez maior para a regulação através Judiciário, o que ameaça o equilíbrio entre os Poderes. “Há hoje no Brasil uma radicalização da estatização da política em função dos poderes que o Judiciário tem avocado para si. E essa é a mais complexa e difícil questão de ser resolvida, por uma questão muito simples: quando o Poder Judiciário supre a omissão dos outros poderes ou altera decisões e a execução de políticas públicas a sociedade e o cidadão individualmente não tem instância para recorrer.”
O efeito imediato da inércia dos demais poderes é a efetiva participação do Poder Judiciário nos processos decisórios de natureza Política, o que parece a principio muito positivo, pois – apesar da assimetria entre os poderes – o Judiciário ocupa função estratégica no controle dos demais e teria independência e imparcialidade necessárias.
No Brasil o Supremo Tribunal Federal tem as prerrogativas de controle de constitucionalidade, a partir de 1.988, de duas formas: normativa e analítica. A normativa trata da chamada supremacia da constituição sobre decisões parlamentares majoritárias e abre o debate sobre os dilemas da evolução do constitucionalismo sobre o modelo tradicional.
A idéia deste trabalho é refletirmos sobre a Jurisdição no contexto de ativismo e da Judicialização da Política e sobre os seus efeitos na própria ação de dizer o Direito, especialmente se pensarmos que uma democracia só é possível em um país regido por leis e não por juízes, prefeitos, governadores, parlamentares ou pelo seu presidente.
E quem afirma que diante de uma lei ruim um juiz poderia chegar a um resultado melhor ou mais justo digo que ele pode estar a negar o sistema democrático, e essa não é uma opinião isolada, o ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos, Antonin Scalia, em palestra no seminário Direito e Desenvolvimento entre Brasil e EUA, realizado pela FGV Direito Rio, no Tribunal de Justiça fluminense afirmou exatamente isso. Aliás, para ele a função do juiz é ser fiel ao que o povo decidiu. E o que o povo decidiu estaria refletido nas leis e na Constituição do país. Se há leis ruins as decisões dos juízes serão ruins, daí a importância do processo eleitoral e a necessidade de a sociedade civil atuar politicamente junto ao parlamento e aos parlamentares. O Ministro Scalia afirma ainda que quem defende uma posição diferente estaria, na realidade, defendendo a criação de uma espécie de “aristocracia de juízes”.
Parece com o que aconteceu na antiga URSS, após a revolução de 1917,  onde a burocracia tornou-se a casta dirigente pelo fato de se encontrar sempre pronta a cerrar os olhos perante os mais grosseiros erros dos seus chefes em política geral se, em contrapartida, estes lhe forem absolutamente fiéis na defesa dos seus privilégios, ignorando a participação popular. Não há dúvidas sobre o fato de que a revolução russa de 1917 foi o maior acontecimento da história no século XX, pois o capitalismo, sua lógica, seus principais operadores e seus estafetas foram abalados com a possibilidade de novos sistemas, econômico e político, serem implantados em todo o mundo, com a participação direta da classe trabalhadora, mas falhou por terem os burocratas afastado do centro da decisão a própria sociedade.
A Rússia, depois a URSS, deveria ter sido um Estado operário saído de uma revolução campesina e proletária, que aboliu o regime capitalista e instaurou formas de propriedade coletiva e planificação da economia, mas perdeu-se na burocratização do poder, um processo que comprometeu a legitimidade institucional, esse é o risco do fenômeno da Judicialização da Política no Brasil, sua politização e o comprometimento da legitimidade institucional da própria jurisdição, pois há o risco de a sociedade civil, das ações cidadãs serem substituídas por um dos poderes, no caso o Poder Judiciário.
Porém, o ministro da suprema corte dos EUA explicou que há uma tendência forte nos Estados Unidos em crer que um juiz deve fazer o bem e não, necessariamente, aplicar a lei, isso vem do próprio sistema do common law em que, durante um longo tempo, eram os juízes que faziam a lei. Infelizmente, diz ele, os alunos de Direito estudam, hoje, principalmente casos da common law dos séculos passados. A imagem que os alunos têm é do grande juiz que pode dar a melhor resposta, afirma o ministro Scalia, mas as coisas mudaram, pois a democracia deve ser considerada e respeitada, por isso, segundo ele, os juízes já não são e não podem ser mais os redatores da lei, a lei emerge do processo democrático, da sociedade civil e da independência dos poderes, pois a jurisdição deve refletir e emergir da realidade social da sociedade mesma, a ação de dizer o direito não tem legitimidade em havendo distanciamento da realidade social, pois o distanciamento retiraria da prestação jurisdicional o necessário sentido comunicativo, afinal as normas não existem validamente fora da realidade social e do processo democrático.
Até é possível compartilhar essa idéia de que a judicialização da política, fenômeno sócio-político, pode comprometer a ação de dizer o Direito – Jurisdição - e pode enfraquecer e desequilibrar as instituições, assim como a relação entre os poderes, a própria democracia e muito especialmente o poder de articulação e influência da sociedade civil no processo decisório institucional.
Pode-se entender sociedade civil como um campo de ação humana, de interação social influenciada pela economia, subordinada a um Estado, e que tem por características a pluralidade, publicidade e privacidade. A sociedade civil representa a ação legitima de contestação social, é o campo onde a sociedade associa-se em redes e essas redes constituem um campo de luta e uma arena onde se forjam alianças, identidades coletivas e valores éticos que buscam influenciar o Estado na elaboração e execução de políticas públicas, sempre através da participação popular, seu elemento legitimador.
A Judicialização da Política, na minha maneira de ver, se contrapõe às ações e práticas necessárias e típicas da sociedade civil, pois na Judicialização a participação popular, as ações políticas, o debate, a busca de solução negociada dos conflitos é substituída por métodos tipicamente judiciais em disputas cuja natureza originária é tipicamente política. É verdade que poder-se-ia justificar a ampliação da atuação dos tribunais, pela via do poder de revisão judicial de ações legislativas e executivas e sem a participação efetiva da sociedade civil, em razão da constitucionalização de direitos e dos mecanismos de checks and balences, também porque passaram a fazer parte das estruturas do Poder Executivo e do Poder Legislativo mecanismos e procedimentos tipicamente judiciais (Tribunais de Contas e Comissões Parlamentares de Inquerito, por exemplo) e porque as transformações constitucionais pós-88 permitiram um maior protagonismo do Poder Judiciário, talvez em virtude da ampliação dos instrumentos de proteção judicial colocados à disposição de minorias parlamentares, governos, associações civis e profissionais.
O problema está no excesso e no sistema hibrido de controle de constitucionalidade. No Brasil convivem os controles difuso e concentrado de constitucionalidade, e seria essa convivência que teria possibilitado o fenômeno da judicialização da política e o enfraquecimento da sociedade civil.
O que se vê são ONG’s, associações e mesmo entidades como a OAB e a ABI substituírem a participação popular, a militância e a interlocução necessária e produtiva com os Poderes Legislativos e Executivo, pela imediata transformação de todas as questões em demandas judiciais, o que na prática afasta a sociedade do centro do debate e das decisões.
E essa é uma preocupação não rara, pois o Ministro do STF – Superior Tribunal Federal Gilmar Mendes afirma que esse fenômeno não encontra paradigma desconhecido nas democracias maduras. Chega-se ao absurdo de minorias derrotadas majoritariamente na arena politica buscarem na Justiça revogar ou desqualificar as decisões da maioria[19]. Acredito que esse fenômeno compromete a jurisdição e conflita com a Democracia.
O Professor Rogério Bastos Arantes afirma que os impactos dessa expansão são indesejáveis, pois dentre outras coisas aumenta a incerteza do valor das decisões políticas, acrescento: a sociedade passa a ver a arena politica como um campo de segunda categoria; afinal a excessiva judicialização da política passa a idéia equivocada de que a sociedade civil é incapaz de defender seus interesses organizadamente e que as instituições políticas não seriam confiáveis. Vê-se na substituição do movimento e envolvimento necessário da sociedade civil pela excessiva judicialização como vitória indesejada de uma visão elitista que não estimula a participação popular nem a construção de estruturas capazes de transformar democraticamente a realidade através do debate e da ação política, e acaba por eternizar a idéia de que a sociedade precisa ser tutelada e que o Poder Judiciário, cuja estrutura é devota muito mais da elitista meritocracia do que da democracia seria o caminho a verdade e a vida.
Pedro Benedito Maciel Neto, advogado, sócio da MACIEL NETO ADVOGADOS E CONSULTORES, professor universitário e autor de “Reflexões sobre o estudo do Direito”, ed. Komedi (2007)


Fonte: CARTACAPITAL

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