O programa Direito e Literatura, da TVE, mediado pelo Procurador de
Justiça Lenio Streck e também com a participação do jurista Ingo
Wolfgang Sarlet, fez um interessante debate sobre o conto “O moleiro de
Sans-Souci”, de François Andrieux, no qual se cinzelou a famosa frase:
“Ainda há juízes em Berlim!”, antes de entrar no assunto registro que
muitas vidas são como a poesia de Carlos Drummond de Andrade. Ele a
descreveu como algo cheio de imperfeições: “Minha poesia é cheia de
imperfeições. Se eu fosse crítico, apontaria muitos defeitos. Não vou
apontar. Deixo para os outros. Minha obra é pública.”
Feita essa ressalva, é possível dizer que há juízes no Brasil, assim
como havia em Berlim… E quem não se lembra conto em que o humilde
moleiro, que não queria vender suas terras para Frederico, o Grande, que
as desejava para aumentar seus aposentos palacianos? Quando o rei
disse-lhe que era rei e tudo podia, o moleiro respondeu-lhe: “Vossa
Majestade, mas ainda há juízes em Berlim”. E Frederico desistiu. é bom
pensar nisso sempre, e de uma forma mais ampla: há cidadãos no Brasil e
são os cidadãos que criaram as instituições, as estruturas, o Estado e
os três poderes, por isso os cidadão, a sociedade estão acima e além.
E como é tempo de ativismo e de judicialização da política é preciso
refletir sobre os efeitos disso na própria jurisdição. A palavra
JURISDIÇÃO, que tem sua origem na composição das expressões jus, júris
(direito) e dictio, dictionis (ação de dizer), teria surgido da
necessidade jurídica de se impedir que a prática temerária da
autodefesa, por parte de indivíduos que se vissem envolvidos em um
conflito, levasse a sociedade à desordem oriunda da inevitável
parcialidade da justiça feita com as próprias mãos. Por isso o Estado
chamando para si o dever de manter harmônico e estável o equilíbrio da
sociedade em substituição às partes, incumbiu-se da tarefa de
administrar a justiça, isto é, de dar a cada um o que é seu, garantindo,
por meio do devido processo legal, uma solução imparcial e ponderada,
de caráter imperativo, aos conflitos interindividuais.
Reconhecendo a necessidade de um provimento desinteressado e
imparcial, o Estado, mesmo sendo o titular do direito de dizer o Direito
e detentor da pretensão punitiva, autolimitou seu poder repressivo
atribuindo aos chamados órgãos jurisdicionais a função de buscar a
pacificação de contendas, impondo, soberanamente, a norma que, por força
do ordenamento jurídico vigente, deverá regular o caso concreto, assim,
por intermédio do Poder Judiciário, busca-se, utilizando-se do
processo, investigar qual dos litigantes tem razão, aplicando, ao final,
a lei ao caso litigioso, está ai o conceito de jurisdição, ou no mínimo
uma forma singela de compreende-la.
Alguns doutrinadores importantes definem jurisdição como sendo uma
das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares
dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do
conflito que os envolve, com justiça. Em outras palavras, seria através
do exercício da função jurisdicional, o que busca o Estado é fazer com
que se atinjam, em cada caso concreto, os objetivos das normas de
direito substancial.
A Jurisdição, que nasceu da necessidade jurídica de se impedir que a
prática temerária da autodefesa, por parte de indivíduos que se vissem
envolvidos em um conflito, o que poderia levar a sociedade à desordem
oriunda da inevitável parcialidade da justiça feita com as próprias
mãos, pode estar a viver um momento singular, pois há quem afirme que a
partir da transição política no Brasil, com o fim da ditadura militar e
com o advento da nova constituição aumentou a presença do Poder
Judiciário, seus rituais e dos seus agentes no cotidiano da sociedade
brasileira, com reflexões na própria democracia.
É exatamente sobre esse aumento crescente da presença do Poder
Judiciário em questões sociais, abandonando progressivamente o cânon que
lhe vinha de décadas de positivismo político kelseniano que passo a
refletir. Sobre a jurisdição em tempos de ativismo judicial e de
judicialização da política, convido o generoso leitor a acompanhar
criticamente as opiniões e dúvidas que o texto apresentará. É inegável
que no exercício necessário da jurisdição a visibilidade do Poder
Judiciário tem aumentado enormemente nas últimas duas décadas, mas esse
aumento de visibilidade e até de protagonismo vem acompanhado de dúvidas
sobre o quanto o chamado ativismo é válido, legitimo e elemento
positivo para o fortalecimento da democracia e para o amadurecimento das
instituições. Afinal tudo que é demais não é bom.
Se na antiguidade o direito confundia-se com regras de moral,
religião e convivência. Não se podiam perceber nitidamente quaisquer
subdivisões das normas sociais, entre as quais estava o Direito,
gradativamente foram-se isolando as normas jurídicas e, exclusivamente
com elas, construíram-se os sistemas jurídicos positivos. O Professor
Arruda Alvim afirma que antes dessa evolução, por estarem amalgamadas as
normas do ordenamento jurídico com outras regras sociais, também a
posição do Juiz era confusa, tanto que nos primórdios das sociedades a
autoridade jurisdicional não era exercida por uma pessoa que tivesse
exclusivamente essa função.
Juntamente com a função exclusiva de dizer o direito, através da qual
se busca a aplicação imparcial da lei, os juizes, ou a função
jurisdicional exercida, passaram a ser protegidos com garantias de ordem
pessoal e funcional que asseguram a liberdade do juiz e a segurança da
própria sociedade. Mas essas garantias que, em minha opinião, retiram
legitimidade do ativismo e da judicialização, pois as garantias
constitucionais dos magistrados existem e são necessárias para que o
Poder Judiciário possa cumprir as funções constitucionais, aí se
justifica a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de
vencimentos, e não para o crescente envolvimento com questões sociais e
políticas.
Essas garantias asseguram a independência funcional do magistrado,
sobretudo, em relação ao Poder Executivo, tanto que a advertência de
Pedro Lessa, feita em 1915, permanece atual: “Importa garantir o Poder
Judiciário, defendendo-o da pressão, das usurpações e da influência dos
outros poderes políticos. Para isso é mister organizar de tal modo a
magistratura, que, em vez de ficar dependente do Poder Executivo,
constitua ela um freio a esse poder”.
As garantias constitucionais dos juízes – a vitaliciedade, a
inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos – são garantias da
própria sociedade e devem ser consideradas cláusulas pétreas, não
podendo ser alteradas por meio de emenda constitucional. Estão,
portanto, subtraídas da área de incidência do poder reformador e tendo
os magistrados tais garantias não é razoável que possam valer-se delas
para interferir nas políticas públicas e na vontade popular. Portanto as
garantias fundamentais da magistratura são validas no contexto da
tripartição dos poderes, que nada mais significa do que a tripartição de
funções, um critério orgânico representativo da impenetrabilidade de um
poder no outro, assegurando-se a plenitude e a pureza do exercício de
cada função.
Se na antiguidade o fundamento da ordem jurídica e da própria
realização da Justiça era o rei modernamente o fundamento sobre o qual
se assenta o Direito reside na vontade do povo, assim a justiça deve ser
feita em nome da república, governada por leis elaboradas por
mandatários do povo, eleitos para isso. O processo eleitoral é elemento
político fundamental.
Por isso tudo, a expansão do Poder Judiciário tem-se tornado uma das
principais questões em debate na teoria política contemporânea em todo o
mundo ocidental. O Poder Judiciário, antes apêndice dos poderes
representativos, hoje ocupa um lugar privilegiado no processo decisório
da maioria dos países democráticos ocidentais, algumas vezes alterando a
própria vontade popular das urnas e outras interferindo na construção e
execução de políticas públicas.
Muito se debate sobre o tema. O ativismo ou a judicialização vem
despertando interesse de pesquisadores nos campos da ciência política,
das ciências sociais e da ciência do Direito. Mas o que é e do que trata a
Judicialização? Bem, quando me refiro a judicialização estou a falar
sobre o fenômeno de expansão do Poder Judiciário na vida política do
país, um fato que a rigor não é novo, pois desde há muito tempo muitos
países ocidentais e democráticos passaram a adotar o Tribunal
Constitucional como mecanismo de controle dos demais poderes, ou, noutras
palavras, passou a haver um sistema que obriga que o Poder Executivo a
negociar seu plano de ação política com o Parlamento e a preocupar-se em
não infringir a constituição.
O ex-ministro da Justiça, Tarso Genro, afirmou recentemente que o
Brasil assiste a uma espécie de “judicialização” da política, e deu como
exemplo o fato de a Justiça Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal
(STF) haverem regulado o sistema partidário e eleitoral. Para ele, a
inércia do Legislativo está abrindo espaço cada vez maior para a
regulação através Judiciário, o que ameaça o equilíbrio entre os
Poderes. “Há hoje no Brasil uma radicalização da estatização da política
em função dos poderes que o Judiciário tem avocado para si. E essa é a
mais complexa e difícil questão de ser resolvida, por uma questão muito
simples: quando o Poder Judiciário supre a omissão dos outros poderes ou
altera decisões e a execução de políticas públicas a sociedade e o
cidadão individualmente não tem instância para recorrer.”
O efeito imediato da inércia dos demais poderes é a efetiva
participação do Poder Judiciário nos processos decisórios de natureza
Política, o que parece a principio muito positivo, pois – apesar da
assimetria entre os poderes – o Judiciário ocupa função estratégica no
controle dos demais e teria independência e imparcialidade necessárias.
No Brasil o Supremo Tribunal Federal tem as prerrogativas de controle
de constitucionalidade, a partir de 1.988, de duas formas: normativa e
analítica. A normativa trata da chamada supremacia da constituição sobre
decisões parlamentares majoritárias e abre o debate sobre os dilemas da
evolução do constitucionalismo sobre o modelo tradicional.
A idéia deste trabalho é refletirmos sobre a Jurisdição no contexto
de ativismo e da Judicialização da Política e sobre os seus efeitos na
própria ação de dizer o Direito, especialmente se pensarmos que uma
democracia só é possível em um país regido por leis e não por juízes,
prefeitos, governadores, parlamentares ou pelo seu presidente.
E quem afirma que diante de uma lei ruim um juiz poderia chegar a um
resultado melhor ou mais justo digo que ele pode estar a negar o sistema
democrático, e essa não é uma opinião isolada, o ministro da Suprema
Corte dos Estados Unidos, Antonin Scalia, em palestra no seminário
Direito e Desenvolvimento entre Brasil e EUA, realizado pela FGV Direito
Rio, no Tribunal de Justiça fluminense afirmou exatamente isso. Aliás,
para ele a função do juiz é ser fiel ao que o povo decidiu. E o que o
povo decidiu estaria refletido nas leis e na Constituição do país. Se há
leis ruins as decisões dos juízes serão ruins, daí a importância do
processo eleitoral e a necessidade de a sociedade civil atuar
politicamente junto ao parlamento e aos parlamentares. O Ministro Scalia
afirma ainda que quem defende uma posição diferente estaria, na
realidade, defendendo a criação de uma espécie de “aristocracia de
juízes”.
Parece com o que aconteceu na antiga URSS, após a revolução de 1917, onde a burocracia tornou-se a casta dirigente pelo fato de se encontrar
sempre pronta a cerrar os olhos perante os mais grosseiros erros dos
seus chefes em política geral se, em contrapartida, estes lhe forem
absolutamente fiéis na defesa dos seus privilégios, ignorando a
participação popular. Não há dúvidas sobre o fato de que a revolução
russa de 1917 foi o maior acontecimento da história no século XX, pois o
capitalismo, sua lógica, seus principais operadores e seus estafetas
foram abalados com a possibilidade de novos sistemas, econômico e
político, serem implantados em todo o mundo, com a participação direta
da classe trabalhadora, mas falhou por terem os burocratas afastado do
centro da decisão a própria sociedade.
A Rússia, depois a URSS, deveria ter sido um Estado operário saído de
uma revolução campesina e proletária, que aboliu o regime capitalista e
instaurou formas de propriedade coletiva e planificação da economia,
mas perdeu-se na burocratização do poder, um processo que comprometeu a
legitimidade institucional, esse é o risco do fenômeno da Judicialização
da Política no Brasil, sua politização e o comprometimento da
legitimidade institucional da própria jurisdição, pois há o risco de a
sociedade civil, das ações cidadãs serem substituídas por um dos
poderes, no caso o Poder Judiciário.
Porém, o ministro da suprema corte dos EUA explicou que há uma
tendência forte nos Estados Unidos em crer que um juiz deve fazer o bem e
não, necessariamente, aplicar a lei, isso vem do próprio sistema do
common law em que, durante um longo tempo, eram os juízes que faziam a
lei. Infelizmente, diz ele, os alunos de Direito estudam, hoje,
principalmente casos da common law dos séculos passados. A imagem que os
alunos têm é do grande juiz que pode dar a melhor resposta, afirma o
ministro Scalia, mas as coisas mudaram, pois a democracia deve ser
considerada e respeitada, por isso, segundo ele, os juízes já não são e
não podem ser mais os redatores da lei, a lei emerge do processo
democrático, da sociedade civil e da independência dos poderes, pois a
jurisdição deve refletir e emergir da realidade social da sociedade
mesma, a ação de dizer o direito não tem legitimidade em havendo
distanciamento da realidade social, pois o distanciamento retiraria da
prestação jurisdicional o necessário sentido comunicativo, afinal as
normas não existem validamente fora da realidade social e do processo
democrático.
Até é possível compartilhar essa idéia de que a judicialização da
política, fenômeno sócio-político, pode comprometer a ação de dizer o
Direito – Jurisdição - e pode enfraquecer e desequilibrar as instituições,
assim como a relação entre os poderes, a própria democracia e muito
especialmente o poder de articulação e influência da sociedade civil no
processo decisório institucional.
Pode-se entender sociedade civil como um campo de ação humana, de
interação social influenciada pela economia, subordinada a um Estado, e
que tem por características a pluralidade, publicidade e privacidade. A
sociedade civil representa a ação legitima de contestação social, é o
campo onde a sociedade associa-se em redes e essas redes constituem um
campo de luta e uma arena onde se forjam alianças, identidades coletivas
e valores éticos que buscam influenciar o Estado na elaboração e
execução de políticas públicas, sempre através da participação popular,
seu elemento legitimador.
A Judicialização da Política, na minha maneira de ver, se contrapõe
às ações e práticas necessárias e típicas da sociedade civil, pois na
Judicialização a participação popular, as ações políticas, o debate, a
busca de solução negociada dos conflitos é substituída por métodos
tipicamente judiciais em disputas cuja natureza originária é tipicamente
política. É verdade que poder-se-ia justificar a ampliação da atuação
dos tribunais, pela via do poder de revisão judicial de ações
legislativas e executivas e sem a participação efetiva da sociedade
civil, em razão da constitucionalização de direitos e dos mecanismos de
checks and balences, também porque passaram a fazer parte das estruturas
do Poder Executivo e do Poder Legislativo mecanismos e procedimentos
tipicamente judiciais (Tribunais de Contas e Comissões Parlamentares de
Inquerito, por exemplo) e porque as transformações constitucionais
pós-88 permitiram um maior protagonismo do Poder Judiciário, talvez em
virtude da ampliação dos instrumentos de proteção judicial colocados à
disposição de minorias parlamentares, governos, associações civis e
profissionais.
O problema está no excesso e no sistema hibrido de controle de
constitucionalidade. No Brasil convivem os controles difuso e
concentrado de constitucionalidade, e seria essa convivência que teria
possibilitado o fenômeno da judicialização da política e o
enfraquecimento da sociedade civil.
O que se vê são ONG’s, associações e mesmo entidades como a OAB e a
ABI substituírem a participação popular, a militância e a interlocução
necessária e produtiva com os Poderes Legislativos e Executivo, pela
imediata transformação de todas as questões em demandas judiciais, o que
na prática afasta a sociedade do centro do debate e das decisões.
E essa é uma preocupação não rara, pois o Ministro do STF – Superior
Tribunal Federal Gilmar Mendes afirma que esse fenômeno não encontra
paradigma desconhecido nas democracias maduras. Chega-se ao absurdo de
minorias derrotadas majoritariamente na arena politica buscarem na
Justiça revogar ou desqualificar as decisões da maioria[19]. Acredito
que esse fenômeno compromete a jurisdição e conflita com a Democracia.
O Professor Rogério Bastos Arantes afirma que os impactos dessa
expansão são indesejáveis, pois dentre outras coisas aumenta a incerteza
do valor das decisões políticas, acrescento: a sociedade passa a ver a
arena politica como um campo de segunda categoria; afinal a excessiva
judicialização da política passa a idéia equivocada de que a sociedade
civil é incapaz de defender seus interesses organizadamente e que as
instituições políticas não seriam confiáveis. Vê-se na substituição do
movimento e envolvimento necessário da sociedade civil pela excessiva
judicialização como vitória indesejada de uma visão elitista que não
estimula a participação popular nem a construção de estruturas capazes
de transformar democraticamente a realidade através do debate e da ação
política, e acaba por eternizar a idéia de que a sociedade precisa ser
tutelada e que o Poder Judiciário, cuja estrutura é devota muito mais da
elitista meritocracia do que da democracia seria o caminho a verdade e a
vida.
Pedro Benedito Maciel Neto, advogado, sócio da MACIEL NETO
ADVOGADOS E CONSULTORES, professor universitário e autor de “Reflexões
sobre o estudo do Direito”, ed. Komedi (2007)
Fonte: CARTACAPITAL
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