Wálter Maierovitch
Walter Maierovitch é jurista e professor, foi desembargador no TJ-SPDe dom Pedro ao Cachoeira
A
historiografia nos revela que o imperador dom Pedro II havia ficado
frustrado pela falta de empolgação da população com o recém-inaugurado
jardim zoológico. Para atrair visitantes, o imperador apostou então
todas as fichas no projeto do mineiro João Batista Viana Drummond, que
já havia administrado a Estrada de Ferro Pedro II. O projeto Drummond,
implantado em 1880, teve pleno êxito, com os visitantes a apostar nos
bichos do zoológico, ou melhor, em 25 grupos de animais e em combinações
a alcançar o número 100. Logo cedo, à entrada do jardim zoológico,
colocava-se uma caixa com um bilhete numerado dentro. Então, a caixa ia
para o alto de um poste. No fim da tarde, abria-se a mesma para
divulgação do número e o vencedor apresentava o seu bilhete comprado
para levar um prêmio em dinheiro.
Drummond, que virou barão só em agosto de 1888,
povoou de humanos o zoológico do imperador. Na República, o seu invento,
popularizado pelo nome de jogo do bicho, sustentou, embora proibido em
1890, o carnaval carioca. Mais ainda, a jogatina alimentou o caixa 2 de
políticos, corrompeu policiais, deu apoio à ditadura (à época, os
bicheiros tinham credibilidade e voz junto aos cidadãos) e completou a
aposentadoria de velhinhos colocados nas ruas como apontadores dos
jogos. Fora isso, a jogatina com banqueiro garantiu impunidade ao
reformado capitão-bicheiro Guimarães, do serviço secreto do Exército e
um dos torturadores do regime militar.
O grande expoente da contravenção, que deu um upgrade nas ilicitudes em termos de controle, modernidade e transnacionalidade, foi Castor de Andrade, um advogado sem nunca ter frequentado aulas na faculdade e que herdou as bancas de jogo da mãe, Carmem de Andrade, a primeira mulher a comandar essa modalidade contravencional no planeta. Castor importou o capo-mafia Antonino Salamone, contemplado com a cidadania brasileira, num jogo de troca-troca e cartas marcadas por ato do ministro Armando Falcão, da pasta da Justiça. Falcão, de triste memória, desconsiderou as condenações de Salamone, foragido da Justiça italiana e sentenciado por associação à máfia e por ter integrado a cúpula de governo da Cosa Nostra siciliana. Com a orientação de Salamone, Castor criou no Rio de Janeiro a cúpula dos bicheiros, que, à força, deliberava sobre a repartição de territórios, acabava com as guerras entre contraventores e impunha uma férrea hierarquia. Tudo no interesse da difusão da jogatina, incluída a cooptação de políticos e financiamentos de campanhas.
Decano dos bicheiros, falecido em 1997, Castor percebeu os problemas que viriam com a Lei Pelé, destinada a abrir as portas do Brasil para as internacionais criminosas, sob o falso manto de incentivo ao esporte. A Lei Pelé possibilitou ao italiano Fausto Pellegrinetti, lavador de dinheiro da máfia e dos cartéis colombianos de cocaína pós-Pablo Escobar, introduzir no Brasil os jogos de azar com máquinas eletrônicas. Os componentes eletrônicos eram adquiridos na Espanha e aqui montados. Pellegrinetti despachou para o Brasil, a fim de acertar com a cúpula dos bicheiros do Rio e com Ivo Noal, o mandachuva paulista da contravenção, o mafioso Lillo Lauricella, que aqui se estabeleceu sem ser incomodado pela polícia.
Preso na Itália pela chamada Operazione Malocchio (Operação
Mau-olhado), iniciada em 1995 pela Direção Antimáfia dirigida pelo
coronel Angiolo Pellegrini, o mafioso Lauricella revelou, em juízo, o
acordo celebrado com os bicheiros brasileiros. Numa das interceptações
telefônicas entre Lauricella e Pellegrinetti foi dito que a Lei Pelé
havia pegado o Brasil de surpresa, sem empresários com capital
suficiente para a aquisição de máquinas a serem espalhadas pelo
território nacional.
Para lavar o dinheiro dos cartéis colombianos da
cocaína, Pellegrinetti escolheu o Brasil, a República Dominicana, onde
lavava o dinheiro em flores exóticas e frutas, e a Rússia, com placas de
alumínio. Por aqui, Pellegrinetti, com capital da cocaína colombiana,
disseminou no Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Minas e Ceará máquinas
de jogos eletrônicos de azar. Numa primeira leva, foram 35 mil máquinas
eletrônicas, todas com componentes da empresa espanhola Recreativos
Franco, cujo dono foi preso nos EUA. Em São Paulo, a família Ortiz, cujo
inquérito foi arquivado em face de aceita a explicação de que não sabia
tratar com criminosos internacionais, dividia com Ivo Noal a exploração
da jogatina, apoiada na Lei Pelé.
Com o sucesso da Operazione Malocchio, quebrou-se a conexão
brasileira operada por Fausto Pellegrinetti, internacionalmente um dos
maiores lavadores e recicladores de capitais do crime organizado
transnacional. Abriu-se espaço, então, para velhos (a juíza Denise
Frossard condenou 14 deles) e novos empresários da jogatina substituírem
os mafiosos: Lauricella virou colaborador de Justiça e, dois anos
depois e com outra identidade, acabou metralhado depois de deixar um dos
seus cassinos abertos na Venezuela, naquilo que foi considerado um
acerto de contas por ter delatado. Na noite do assassinato, Lauricella
portava uma mala com vultosa renda do cassino, que permaneceu intacta,
ao lado do corpo.
Carlos Augusto Ramos, vulgo Carlinhos Cachoeira, é um dos filhotes da Operazione Malocchio
e da incúria de algumas autoridades brasileiras, a começar pelo então
ministro da Justiça, o atual senador Renan Calheiros. Com técnica
mafiosa, Cachoeira montou uma holding criminal e recicla dinheiro lavado
em atividades formalmente lícitas, por meio de inúmeras empresas, de
remédios a automóveis.
Só para lembrar, CartaCapital, em três edições, denunciou o esquema da jogatina eletrônica de azar no Brasil, as suas ramificações internacionais e, por aqui, a lavagem de dinheiro escancarada do tráfico internacional de drogas proibidas. CartaCapital entrevistou o responsável pela Operazione Malocchio sobre a conexão criminal Itália-Brasil. Do lado italiano foram todos definitivamente condenados. No Brasil, o inquérito foi arquivado a pedido de um membro do Ministério Público Federal. Com o arquivamento, a conexão brasileira foi apagada, como se nunca tivesse existido. Com o “apagão”, os Carlinhos Cachoeiras acabaram “vitaminados” e posaram à sombra de políticos e os da velha–guarda do bicho, como Anísio Abraão, Capitão Guimarães, Turcão etc.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br
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