A questão do laicismo entrou em cena nas discussões jurídicas brasileiras. O problema mais saliente, até agora, tem sido a colocação de símbolos religiosos em espaços públicos. Como tudo o que se refere a discussões envolvendo religião, as paixões substituem o necessário discernimento e se torna difícil enfrentar os argumentos sem reducionismo e outros desvios lógicos.
Em se apresentando o problema, convém examinar a experiência de outros países, sempre com a necessária contextualização de seus processos históricos. A esse propósito, uma importante (e recentíssima) decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos é ideal para essa finalidade. Trata-se do caso Igreja e Escola Evangélica Luterana Hosanna-Tabor versus Comissão de Igualdade de Emprego e Oportunidade e outros [565 U.S. (2012)], com julgamento concluído em 11 de janeiro de 2012.
Essa Igreja, que mantém a Escola confessional (uma associação, aliás, bem comum no Brasil) contratava seus professores para dois tipos diferentes de cargos: o called (literalmente, chamado, mas que se pode denominar de vocacionados) e o lay (leigo). O professor vocacionado é o que foi chamado para exercer sua vocação de servir a Deus. Ele, além dos requisitos de formação técnica na área de ensino para a qual foi contratado, deve ter formação teológica básica, proporcionada pelo Sínodo Luterano. O leigo, ao contrário, não precisa desse requisito formal, muito menos lhe é exigido pertencer à confissão luterana. Em termos práticos, contudo, ambos se submetem aos mesmo deveres perante a Escola.
A professora Cheryl Perich candidatou-se a uma vaga de vocacionado, em Hosanna-Tabbor, que fica no estado do Missouri. Ela ministrava aulas de matérias seculares e de Religião, acompanhando seus alunos em preces diárias e nos serviços religiosos na capela da Escola. Ela, nos anos de 2004-2005, adquiriu um grave distúrbio do sono, conhecido por narcolepsia, caracterizado por episódios súbitos e incontroláveis de sono, o que, sem tratamento adequado, impede a realização de atividades comuns, com efeitos deletérios no campo profissional e econômico. Após isso, ocorreram diversos incidentes, que culminaram com a demissão de Perich, contra sua vontade e após a Escola tentar resolver a questão por meios não conflitivos. O essencial é que ela perdeu o cargo na instituição pedagógico-religiosa e, em seguida, recorreu à Comissão de Igualdade de Emprego e Oportunidade [U.S. Equal Employment Opportunity Commission (EEOC)], sob a alegativa de que perdera seu emprego por efeito de violação do Americans with Disabilities Act de 1990 (ADA). Nos termos do ADA, é proibido a um empregador exercer atos discriminatórios contra um empregado por causa de sua deficiência ou necessidade especial.
A EEOC processou a escola, que, em sua defesa, invocou a “exceção do ministério religioso” [ministerial exception, que pode ser traduzida literalmente por “exceção ministerial”]. A Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos declara que o Congresso não legislará para fins de estabelecer uma religião ou para proibir o livre exercício dos cultos, bem como a liberdade de expressão e de imprensa. A não-intervenção estatal nos assuntos religiosos, prevista nesse texto constitucional, configura-se, de modo particular e não exclusivo, pela ministerial exception, uma espécie de cláusula de imunidade das congregações ao controle de suas relações internas pelos órgãos públicos.
O centro da controvérsia estava, portanto, na qualificação das relações jurídicas entre a professora Cheryl Perich e a Escola confessional. O motivo da demissão, para Perich, estava em sua doença. Para a instituição luterana, na ruptura dos deveres que a ligavam ao Sínodo, o que se traduziu na insubordinação às determinações do diretor da Escola e na suscitação do conflito perante a agência antidiscriminação do governo dos Estados Unidos.
O juízo de primeiro grau [District Court] deu razão a Hosanna-Tabor, por entender que o ato demissório acobertara-se pelo manto da “exceção do ministério religioso”, até porque a escola sempre tratou Perich como uma ministra religiosa, até por considerá-la formalmente uma Minister of Religion, Commissioned.
Em segundo grau, a Corte de Apelações para o Sexto Circuito [Court of Appeals for the Sixt Circuit] julgou o recurso favoravelmente a Cheryl Perich. A despeito de reconhecer a existência da “exceção do ministério religioso”, a Corte afirmou que a condição de ministra de Perich era puramente nominal, dado que ela exercia funções e tinha obrigações semelhantes aos professores leigos.
A matéria foi levada à Suprema Corte por meio de um writ of certiorari, que resultou em decisão tomada por votação unânime de seus membros em favor da Igreja e Escola Evangélica Luterana Hosanna-Tabor. Esse julgamento, sem favor, pode ser considerado como o mais importante nos Estados Unidos, em termos de liberdade religiosa, dos últimos 20 anos.
É interessante fazer uma síntese desses fundamentos, a partir de excertos do voto do Chief Justice Roberts:
a) A liberdade religiosa, na Inglaterra, nunca foi absolutamente plena. O Ato da Supremacia, de 1534, de Henrique VIII, criou a Igreja Anglicana e deu ao monarca a titularidade de sua suprema chefia. O Ato da Uniformidade, de 1662, criou restrições ao acesso à condição de ministro religioso e impôs os ritos do Livro Comum de Orações. A insubmissão a esses controles pelos puritanos foi um dos grandes impulsos a que partissem para a Nova Inglaterra e lá pudessem eleger livremente seus ministros e tivessem liberdade de estabelecer suas práticas devocionais de maneira peculiar.
b) Com a Independência norte-americana, diversos problemas surgiram em torno da liberdade de culto, como a consulta do bispo católico John Carroll (1806) e, já sob a presidência de James Madson, em 1811, quando ele vetou uma lei congressual sobre a organização de uma Igreja Episcopal Protestante em Alexandria.
c) Com a Primeira Emenda, diversos julgados da Suprema Corte têm afirmado a separação das esferas religiosa e pública. No que se refere à discriminação nas relações de trabalho, desenvolveu-se a linha divisória entre o que são vínculos laborais e os liames entre uma instituição religiosa e seus ministros.
d) A associação religiosa não se confunde com um clube ou um sindicato. Não se pode confundir a situação peculiar das igrejas, que se sujeitam a regras próprias de seleção e de sancionamento de seus ministros e fiéis. Se é verdade que o ADA proíbe qualquer retaliação por causa das deficiências ou necessidades especiais, essa lei não pode avançar a ponto de derrogar a “exceção do ministério religioso”.
e) No caso dos autos, Cheryl Perich foi admitida na escola como alguém que, mesmo sendo professora, exerceria uma vocação especial, atendendo a um chamado, o que se traduzia no título que recebeu de Minister of Religion, Commissioned e no fato de haver se comprometido a desempenhar suas funções “de acordo com a Palavra de Deus e os padrões confessionais da Igreja Evangélica Luterana”. Ela se submeteu a um longo processo de formação teológica, foi admitida pelo Sínodo Luterano, apresentou cartas de recomendação de pessoas da hierarquia eclesiástica e ainda teve de se submeter a um exame oral por uma banca de religiosos dessa denominação. Seu desligamento só poderia ocorrer por meio de votação qualificada do corpo de sua congregação. Some-se a isso o fato de ela cumular o ensino laico com o acompanhamento dos alunos em suas práticas devocionais e na educação religiosa.
f) Os fundamentos da Corte de Apelações equivocadamente desconsideraram o valor do título de Minister of Religion, Commissioned. Não que o elemento formal deva prevalecer de per si. A educação religiosa específica e as atividades da professora confirmavam o elemento material do título conferido pela Igreja.
g) Ademais, a Corte deu ênfase em excesso ao fato de que os professores leigos exerciam algumas atividades de cunho religioso e que Cheryl Perich, conquanto fosse uma docente vocacionada, também lecionava conteúdos gerais.
h) “O interesse da sociedade na eficácia das leis (anti)discriminação no emprego é indubitavelmente importante. Mas, tão importante é o interesse dos grupos religiosos na escolha de quem pregará suas crenças, ensinará sua fé e levará a cabo sua missão. Quando um ministro, que foi demitido, processa sua igreja, alegando que a rescisão foi discriminatória, a Primeira Emenda fez a ponderação (dos interesses) por nós. A igreja deve ser livre para escolher aqueles que a guiarão em seu caminho.”[1]
O justice Thomas, ao acompanhar o voto-condutor, aditou que as “Cláusulas de Religião” (Religion Clauses) garantem a autonomia das organizações religiosas em suas questões interna corporis, o que abrange a seleção daqueles que podem ser seus ministros.
Por sua vez, o justice Alito as “Cláusulas de Religião” servem para proteger uma esfera privada das organizações religiosas, em ordem que se permaneçam livres para se autogovernar de acordo com suas próprias crenças. É uma forma de lhes subtrair da manipulação ou do controle secular, deixando-lhes livres para decidir as questões fundamentais, de governança eclesial, em consonância com sua fé e sua doutrina.[2] Para ele, “autonomia religiosa significa que as autoridades religiosas devem ser livres para determinar quem é qualificado para servir em cargos de substancial importância religiosa”. As igrejas possuem cargos voltados para as funções de liderança; de auxílio nos serviços de culto e nos rituais religiosos, bem assim de ensinar e transmitir os princípios da fé para as próximas gerações.[3] Os grupos religiosos possuem, de entre seus direitos fundamentais, a liberdade de escolher quem é qualificado para servir como porta-voz de sua fé.
A posição da Suprema Corte abre margem para diversos debates sobre a interferência do Estado em assuntos de economia, governança e regulação interna das pessoas jurídicas, quando elas se vinculam as escolhas fundamentais ou a valores que estão na base dessas organizações. No caso particular, o exame se limitou a um tipo específico de entidade, a igreja, que ocupa uma posição ainda mais especial e digna de ultraproteção constitucional.
A jurisprudência brasileira, desde o famoso julgamento do RE 31.179, em 1958, pelo Supremo Tribunal Federal, tem defendido que compete exclusivamente à autoridade eclesiástica decidir questões relativas às normas de confissão religiosa, que devem ser observadas por uma associação constituída para o culto:[4] “A autoridade temporal não pode decidir questão espiritual, surgida entre a autoridade eclesiástica e uma associação religiosa. Esta impossibilidade resulta da completa liberdade espiritual, princípio de política republicana, que conduziu à separação entre a Igreja e o Estado, por memorável influência positivista (...)”.
Em matéria de relação de emprego entre ministros de fé religiosa e suas igrejas, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho é também uniforme no sentido de não a admitir.[5] Há interessantes julgados, com maiores particularidades fáticas, que também rejeitam a tese do vínculo laboral quando o reclamante exercia atividades de segurança nos cultos religiosos. No TST, encontra-se um grupo de casos de policiais militares que, em suas horas de folga, atuavam em favor de determinadas organizações religiosas, coordenando a segurança de suas celebrações, e, posteriormente, alegaram ser empregados da igreja. O desprestígio da tese dos policiais dá-se em razão de que seus ofícios não eram timbrados pela subordinação jurídica e pela eventualidade de seu compromisso, limitado ao tempo em que não estava de serviço na caserna.[6]
É patente a facilidade da instituição formal de organizações religiosas, especialmente após a edição da Lei 10.825, de 22.12.2003, que as distinguiu como pessoas jurídicas peculiares e vedou “ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento”.[7] A tendência é o aumento de questões judiciais sobre os limites entre o autogoverno eclesial e a observância das normas gerais e comuns em face de relações trabalhistas, tributárias, reais e obrigacionais, quando, em um dos pólos, houver uma igreja.
A decisão da Suprema Corte é, como reconhecido nos Estados Unidos, um marco em termos de jurisdição constitucional sobre liberdades religiosas. Sua apreciação e sua comparação com o modelo brasileiro de direitos fundamentais de liberdade de culto e de religião é especialmente relevante para a solução de tantas controvérsias em torno de algo tão sensível para o espírito humano.[8]
[1] “The
interest of society in the enforcement of employment discrimination
statutes is undoubtedly important. But so too is the interest of
religious groups in choosing who will preach their beliefs, teach their
faith, and carry out their mission. When a minister who has been fired
sues her church alleging that her termination was discriminatory, the
First Amendment has struck the balance for us. The church must be free
to choose those who will guide it on its way”.
[2] Nessa parte, justice Alito
louva-se no precedente Kedroff v. Saint Nicholas Cathedral of
Russian Orthodox Church in North America, 344 U. S. 94, 116 (1952).
[3] “Religious
autonomy means that religious authorities must be free to determine who
is qualified to serve in positions of substantial religious
importance. Different religions will have different views on exactly
what qualifies as an important religious position, but it is nonetheless
possible to identify a general category of “employees” whose functions
are essential to the independence of practically all religious groups.
These include those who serve in positions of leadership, those who
perform important functions in worship services and in the performance
of religious ceremonies and rituals, and those who are entrusted with
teaching and conveying the tenets of the faith to the next generation”.
[4] STF. RE 31179, Relator Min. Hahnemann Guimaraes, Segunda Turma, julgado em 08/04/1958, DJ 26-06-1958.
[5]
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. PASTOR EVANGÉLICO. PLENO EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES
ECLESIÁSTICAS E INERENTES AO MINISTÉRIO RELIGIOSO. VÍNCULO DE EMPREGO
NÃO RECONHECIDO. DESPROVIMENTO. Diante da ausência de violação do
dispositivo indicado, não há como admitir o recurso de revista. Agravo
de instrumento desprovido” (TST. AIRR - 115900-74.2009.5.15.0001 ,
Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, Data de Julgamento:
02/05/2012, 6ª Turma, Data de Publicação: 11/05/2012)
[6] TST.
AIRR - 1096-92.2010.5.24.0006 , Relator Juiz Convocado: Flavio Portinho
Sirangelo, Data de Julgamento: 29/02/2012, 3ª Turma, Data de
Publicação: 02/03/2012.
[7] Art. 44, § 1o, Código Civil de 2002.
[8]
Sugere-se a consulta sobre esse tema ao capítulo: RODRIGUES JUNIOR,
Otavio Luiz . Artigo 5, incisos IV a IX. In: MIRANDA, Jorge; BONAVIDES,
Paulo; AGRA, Walber de Moura; BILAC PINTO FILHO, Francisco; RODRIGUES
JUNIOR, Otavio Luiz. (Org.). Comentários à Constituição Federal de 1988. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 95-108.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é
advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em
Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la
Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación
Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Revista Consultor Jurídico, 20 de junho de 2012
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