Senso Incomum
Apresentando a Nau.
Para quem não sabe, lembro. A Nau dos Insensatos é uma alegoria que descreve o mundo e seus habitantes como uma nau, cujos passageiros nauseabundos não sabem e nem se importam para onde estão indo. Vejam: eles não se importam! Na verdade, a Nau dos Insensatos (Das Narrenschiff) foi o primeiro best-seller da história, fora a Bíblia. Escrito em 1494 por Sebastian Brant, é um relato ácido da sociedade de então. Cada um dos 112 capítulos tem um endereço. Fala das falácias da Justiça, das injustiças da Igreja, a patifaria, os maus costumes, a vulgaridade dos nobres... Brant era formado em Direito. Sabia das vicissitudes das leis. E do “sistema”. Dividido em 112 capítulos curtos, cada qual dedicado a um tipo de louco ou insensato, o livro proporciona uma leitura provocadora e divertida.
Pois olhando a PEC 37, que visa a detonar/implodir o poder investigatório do Ministério Público, o único livro ao qual posso me remeter é a Nau dos Insensatos. É realmente espantoso que essa PEC navegue por aí. É uma insensatez.
Não iria escrever sobre esse assunto. Tenho um livro sobre isso, escrito em parceria com Luciano Feldens (Crime e Constituição, Ed. Forense), lá pelos idos de 2003-4, que chegou a sua terceira edição. Há decisões do STF. E do STJ. Há boa doutrina também. De todo modo, diante do quase-silêncio da comunidade jurídica sobre o perigoso avanço da PEC da Insensatez, tive que voltar ao assunto. E o faço agora. Na forma da Constituição.
O Brasil e a impunidade. Paraíso do proxenetismo com o dinheiro público.
O Brasil sempre foi o paraíso da impunidade. O sistema de estamento, já denunciado por Raymundo Faoro — e que aqui não me canso de replicar — ainda representa forte obstáculo à aplicação do princípio da igualdade. Não por menos aqui impera o foro privilegiado (recuso-me a usar o eufemístico “foro por prerrogativa de função”), pois materialmente, haja vista o sistema estamental, a elite termina por se imunizar pela baixa persecução criminal nas esferas superiores da jurisdição criminal. Não por menos, temos a triste prática de quedar antes a impunidade dos malfeitos no próprio STF. Preciso lembrar que na nossa Corte Suprema, até hoje, passados mais de 200 anos, não há caso de condenação que tenha aplicado, efetivamente, pena privativa de liberdade? Acho que não. Enquanto isso, há 240.642 presos por crimes contra o patrimônio. A realidade é inescondível: fala por si. La ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos (desculpem-me pela repetição da frase do De La Torre Rangel).
Contudo, de poucos anos para cá se nota uma mudança de paradigma. Pela primeira vez na história, passamos a ver pessoas do alto escalão político e econômico investigadas e detidas (o próprio Mensalão parece um bom exemplo). Também rapidamente foi elaborada súmula vinculante para regulamentar o uso de algemas, o que, coincidentemente, jamais havia motivado tamanha preocupação de nossa cúpula judiciária. Bom sinal. Condenações, porém, ainda são parcas.
De outro tanto, já de há muito o STF vem dizendo que o poder de investigar do Ministério Público é legítimo, portanto, constitucional. E, vejam a “surpresa”: em nenhum dos tantos julgamentos que tratavam do poder investigatório do MP, havia acusados pertencentes ao andar de baixo... Por que será?
E surge a PEC 37: o Brasil contra o resto do mundo.
Mas, a nave vai. Agora surge a proposta de Emenda Constitucional 37/2011, visando a vedar a apuração pelo Ministério Público das infrações penais. Numa navegação (ups, quero dizer, tramitação) recorde, está prestes a ser apreciada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Em um momento de virada paradigmática, de início do fim da impunidade de pessoas próximas ao poder, nada mais inoportuno que a PEC 37/2011, que aqui denomino de a PEC da Insensatez.
Sigo. É evidente que o poder investigatório do Ministério Público deve ser controlado (no sentido da regulação). Até as pedras (que não estudaram) sabem disso. Assim como é evidente que a atividade policial deve ser controlada. Aliás, a CF diz que o MP controlará a atividade policial... Não vi nenhuma PEC preocupada com isso. É também evidente que a atividade judiciária deve ser controlada. Em qualquer tombadilho se diz isso. Afinal, os juízes decidem praticamente como querem. O STJ um dia decide de uma maneira; dias depois, decide de outro modo; dias depois, volta a decidir como no início. Basta ver o modo como o STJ interpreta o prazo para escutas telefônicas...
Ou seja, é necessário que se coloque freios nas diversas atividades investigatórias-decisórias. Elementar: tudo o que é invasivo deve ser controlado, para não virar autoritarismo. No específico da PEC da Insensatez, seu mentor pretende colocar a atividade investigatória como exclusiva (ou privativa) para a polícia. Esquece sua Excelência que nenhum país — democrático — do mundo faz isso. Mas terrae brasilis tem que dar esse passo em direção ao fundo do poço. Atenção, Deputados: o Ministério Público é condutor da investigação criminal na Alemanha, desde 1975, Portugal, desde 1988, na Itália, desde 1989. Nem vou falar dos Estados Unidos da América. E tampouco da Espanha, em que as discussões se encaminham para além do poder investigatório. Pergunto: isso é pouco?
Trata-se de uma PEC pequeno-corporativa. Estou sendo duro na apreciação pela simples razão de que todos os argumentos técnicos — mas todos, mesmo — já foram utilizados em várias frentes. Adianta trazer argumentos de direito comparado? Adianta citar a Suprema Corte? Parece que não! Adianta dizer que na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado, Decreto 5.015, de 12 de março de 2004, cujo objetivo consiste em promover a cooperação para prevenir e combater mais eficazmente a criminalidade organizada transnacional, consta, no artigo 19, que os órgão mistos de investigação devem ser mistos, portanto, não exclusivamente policiais? Adianta dizer que o modelo investigatório a cargo do Ministério Público é também adotado pelo Tribunal Penal Internacional, conforme artigo 15º do Estatuto de Roma, de 1998, ratificado internamente pelo Decreto 2/2002, não se podendo criar, no Brasil, modelo dissonante do praticado na Corte Internacional? Não. Parece que tudo isso cai no vazio.
Os argumentos não são meus. São do STF. Do STJ. Do Direito Internacional. Dos Tratados que o Brasil firmou. Mas a PEC está avançando Congresso adentro. Navegando... Ora, quando a questão foge dos mínimos padrões de racionalidade, a questão assume contornos ideológicos. Políticos. Qual é a doutrina processual-penal ou constitucional abalizada que sustenta a PEC 37? Vejamos alguns detalhes que mostram a “fundamentação” da aludida PEC.
A “fundamentação” da Emenda, o Inquérito revitalizado e os pés de Curupira da PEC 37.
Meu caros leitores. Li as razões da PEC 37/2011 (Meninos, eu vi!!!). Uma lástima técnica. A começar que transcreve trechos de um livro desconhecido, fruto de publicação individual do seu autor e que sequer é vendido em livrarias. Trata-se de um “livro secreto”! Claro que isso é um mero detalhe. Não muda nada. A proposta afirma que a investigação criminal visa “a completa (sic) elucidação dos fatos, com a colheita de todos os elementos e indícios necessários à realização da justiça”. Alega que em razão de “muitas provas (sic) serem colhidas nessa fase, compete a profissionais habilitados e investidos para o feito (sic)”.
Ora, ora (e ora). Falar em “provas”, assim, desse modo, parece-me temerário. Ademais, a alegação de necessidade de profissionais habilitados para colher os indícios (provas?) não é pertinente para afastar de maneira absoluta o Ministério Público de qualquer investigação, mesmo em situações em que já ocorre de maneira supletiva. Alegou também que a falta de regras claras definindo a atuação dos órgãos de segurança pública tem causado problemas ao processo jurídico no Brasil. É? Que problemas são esses? E o que representa “vários processos” para justificar uma Emenda Constitucional? Constituição é coisa séria. Ou, pelo menos em um Estado Democrático de Direito, deve ser.
A legitimidade social se justifica quando nasce, no seio da sociedade, o reclamo, o desejo de mudar o Estatuto Fundamental. Embora nossa história seja repleta de casuísmos nada republicanos (como a Lei 8.985, de 7 de fevereiro de 1995, que anistiou políticos que cometeram crimes eleitorais), precisamos dar um basta. Assim, modificar a Constituição implica, acima de tudo, o uso racional do poder de legislar. Necessita haver uma base fática e social que justifique a proposta. Além de uma prognose que se revele positiva quanto ao seu impacto no meio jurídico e, consequentemente, social. Senão, vira puro exercício de arbítrio ou, mais grave, desvio de finalidade.
O Brasil, ao contrário do que enuncia a proposta, possui um modelo bastante autoritário e dependente do Executivo, na investigação criminal, sintomático de nosso sistema estamental. Significa dizer o quê? Ao contrário da ideia generalizada de destaque que têm as autoridades judiciárias e do Ministério Público na prática criminal, reside na polícia um poder muito maior, pois ela é quem diz, no dia-a-dia, na formalização ou não do flagrante, o que será ou não objeto de apreciação pelo promotor e pelo magistrado. Isso é óbvio. Isso pode ser lido até mesmo em qualquer Manual de direito processual penal simplificado... Há uma filtragem ainda durante a fase policial. Uma seletividade arbitrária. Isso prejudica a Democracia, uma vez que as autoridades policiais não são funcionalmente independentes, isto é, são removíveis e exoneráveis de suas funções por atos ex-officio do chefe do respectivo Executivo. Sem esse pressuposto, não se permite uma investigação profunda e sem pontos-cegos.
Esse modelo retrógrado, burocrático e falho do inquérito policial não possui similares nos sistemas processuais penais modernos. A PEC deveria enfrentar o problema do Inquérito e não reforçá-lo. A polícia deveria lutar para acabar com o IP. Mas, suspeito, o IP ainda subsiste porque serve à razão instrumental, como meio de controle do exercício do poder de punir ou não. E não esqueçamos: essa seletividade é inexoravelmente arbitrária. Por isso tudo, é possível dizer que a PEC tem pés de Curupira. Se aprovada, deixaria a marca retrógrado no chão de nosso ordenamento. Seria um ode à impunidade. E isso não podemos permitir.
Sempre defendi a regulamentação da atividade investigatória. Sou insuspeito em relação à defesa das prerrogativas dos acusados. Quando o STF julgou alguns dos processos em que estava em jogo essa prerrogativa do MP, cheguei a sustentar que o STF fizesse um “Apelo ao Legislador” (Appellentscheidung), isto é, in casu, dando um prazo para o parlamento regulamentar a matéria. Seria a saída técnica para o problema. Mas a regulamentação, obviamente — e até os pedregulhos sabem disso — deveria respeitar os vetores mínimos já reconhecidos pela Suprema Corte e constantes na Constituição. Por isso, penso que, mesmo que a PEC da Insensatez seja aprovada, esta não resistirá a um exame aprofundado de sua constitucionalidade. Sim, ela é inconstitucional.
O Ministério Público afastado da investigação?
E não adianta dizer que o Ministério Público terá o poder subsidiário de investigação (ou complementação de diligências...). A PEC é muito clara quando retira o MP da cena investigatória. O que quero dizer é que não devemos brincar de fazer leis ou emendas constitucionais. A democracia representativa é algo muito sério para ficar refém de “um fazer legislativo de conveniência” (para usar uma expressão de Dworkin). Se queremos, de fato, enfrentar o problema da impunidade, etc., vamos tratar isso sem corporativismos e sem retaliações. É evidente que a Constituição estabelece que a polícia deve investigar; mas ela não pode ter o monopólio da investigação, como quer a PEC. Quem, por exemplo, investigará a Polícia?
Mais: o Ministério Público tem a prerrogativa de instaurar inquéritos civis. Por óbvio que, no curso das investigações, as áreas de atuação se confundem. Pensemos no caso da investigação das hipóteses de corrupção, examinadas, em princípio, como casos de improbidade administrativa. O promotor/procurador da República poderia investigar a improbidade, mas não o crime (sendo que o fato, no mais das vezes, é rigorosamente o mesmo)? Teria de requisitar um inquérito policial para “esquentar” a sua investigação? Ou, nessas hipóteses em que se confundem a improbidade e o crime deveria sustar sua investigação e aguardar pela autoridade policial, sob pena de invalidade? Uau! Ou ainda, na medida em que o IP é peça dispensável — e parece que nisso a PEC não pode mexer — uma vez que não se pode impedir o Ministério Público de fazer a denúncia diretamente (independentemente do IP) quando já contar com elementos suficientes para justificar a ação penal, qual será o papel da PEC? Vai ter outra PEC na sequência?
Precisamos falar sobre a PEC 37.
Parafraseando o polêmico livro Precisamos falar sobre o Kevin, em que o menino psicopata promove uma matança no colégio onde estuda, digo que “precisamos falar sobre essa PEC”. No livro, a mãe se deu conta tardiamente de que “precisava falar sobre o Kevin”. Aqui, ainda dá tempo. Necessitamos falar sobre isso. Um monte de gente precisa. Do ministro da Justiça ao gerente de supermercado. A discussão interessa a todos. Também proponho que nos reunamos para discutir — pra valer — a regulamentação do controle externo da atividade policial, que parece ter prevalência nesse tipo de discussão; reunamo-nos para discutir a forma pela qual o MP pode investigar, com a obediência aos ditames processuais-constitucionais; reunamo-nos para discutir melhores formas de fazer funcionar o Poder Judiciário, buscando efetividades qualitativas; reunamo-nos para alterar a legislação que trata da criminalidade do colarinho branco... Reunamo-nos para fazer alterações no CPP de forma a que o sistema processual-criminal não reproduza as velhas fórmulas de perseguição às camadas pobres da população. Vamos discutir, finalmente, os modos de enfrentamento dos crimes cometidos pelo andar de cima. Por que é tão difícil pegar os grandes corruptos? Seria porque a polícia não possui o monopólio da investigação? Com a aprovação da PEC 37, isso mudará?
Tudo isso é urgente. O que não é crível é que o parlamento queira, antes de discutir todos esses grandes temas, apontar suas baterias para enfraquecer justamente o titular da ação penal. Se o nível de impunidade é muito grande, não seria melhor fortalecer o titular da ação penal, ao invés de enfraquecê-lo, fragilizá-lo? Os números de combate à criminalidade não são nada bons. A polícia investiga menos de 3% dos homicídios... E a culpa disso seria o poder investigatório a cargo do Ministério Público? Mas o Ministério Público nem investiga homicídios... Falemos sério: mal ou bem, de quem esteve à frente do desbaratamento dos grandes escândalos da República pós-1988? Não foi o MP? Ele fez ou faz pouco? Não sei. O que sei é que não podemos atirar fora a água e o bebê juntos. Uma pergunta: não daria para trabalhar juntos? Não era (é) essa a ideia constante na CF/88?
O Ministério Público pode ter cometido equívocos nestes 23 anos. Pode ter cometido excessos. Se assim ocorreu, foi porque não regulamentamos a investigação. O Congresso não o fez. E também porque, verdade seja dita, o MP até hoje tem dificuldade para entrar nas delegacias de polícia. O Controle Externo da Atividade Policial é um simulacro. Uma ficção. Não seria hora de fazer uma regulamentação efetiva nesse setor?
Não podemos nos esquecer dos avanços que fizemos nestes anos. O CNJ tem papel importante na redução da corrupção no Judiciário, no nepotismo, etc. O CNMP tem tido papel relevante, não somente no combate dos mesmos problemas do Judiciário, mas também na tentativa de regulamentar a atividade do MP no tocante à investigação e no tocante ao controle externo da atividade policial. Claro que isso não tem funcionado a contento. Mas houve avanços. O que devemos fazer é aprofundar os mecanismos de controle.
À guisa de conclusão ou “onde estão as autoridades”? Como ficará o ecossistema do crime?
Não é necessário sustentar, tecnicamente, que o MP tem legitimidade para investigar. Aliás, até as pedras sabem que o STF já vem decidindo desse modo. Também as pedras — as que estudaram e as que são néscias — sabem que no restante do mundo o MP tem o poder de investigar. Então, não é necessário entrar no mérito. Temos que ver as raízes políticas desse tipo de PEC.
Na verdade, uma PEC desse jaez deveria ter sido fulminada ab ovo. O Judiciário deveria ter vindo, de pronto, em defesa do Ministério Público. Na verdade, esperar-se-ia que a Defensoria Pública e as demais Procuradorias (e há várias, pois não?) viessem em defesa não somente do Ministério Público, mas da Constituição. A AMB, por exemplo. Dela se esperaria uma atitude propositiva. Esperar-se-ia também que os Tribunais de Constas se manifestassem a favor do poder investigatório do MP. E o ministro da Justiça de terrae brasilis? Ele concorda com essa PEC? Qual é o papel institucional do Ministério da Justiça? Para quê serve a Secretaria da Reforma do Judiciário? O que anda(ria) fazendo o Secretário da Reforma? O que estaria sendo reformado? Essa PEC não afeta a funcionamento da Justiça? Senhor Secretário da Reforma: o que nos diz sobre os efeitos colaterais dessa PEC? Isso não lhe diz respeito? E a doutrina processual penal? O que tem a dizer?
Preocupa-me, pois, não o Deputado e seus companheiros que votam a favor da PEC da Insensatez, mas o silêncio (até agora eloquente) dos demais. Como clamaria Luther King, onde estão os bons? O governo da Presidente Dilma concorda com a PEC?
O Ministério Público, paradoxalmente, paga, hoje, um preço maior pelos seus acertos do que pelos seus erros. Fez muitos inimigos. Só que a Instituição é paga para investigar, para denunciar, para acusar. E isso gera controvérsias. Mas exatamente por isso o constituinte deu as garantias ao MP. Aliás, examinando amiúde a Constituição, o poder investigatório do Ministério Público faz parte do núcleo essencial da Instituição. Retirando-o ou o mutilando, quebra-se a sua substância. Logo, a PEC está entrando numa área que se chama de “limites implícitos do poder de reforma”. Mas isso é uma discussão que parece que vai ser feita no STF. Se a nau chegar ao porto.
Democracia é controle. É accountability (prestação de contas). Retroceder não é nada democrático. Não podemos pegar um barco e não saber para onde estamos indo... Não. A nossa nau não pode ser a dos insensatos. Na verdade, se passar a PEC da Insensatez, esta será também a PEC dos Insensatos “estamentais”, porque beneficiará os mesmos de sempre, os pertencentes ao andar de cima... O incenso lhes “purificará”...! E não se trata de uma frase retórica. Vejamos os números, as estatísticas que tratam do combate aos crimes que colocam em xeque os objetivos da República, como sonegação de tributos, corrupção, lavagem de dinheiro, etc. Se esses números já são ruins com o Ministério Público investigando, o que dizer se dele retirar esse poder? Nossos vigaristas não são melhores ou piores que os vigaristas da Alemanha, Inglaterra, Holanda, Estados Unidos, etc. A diferença é que, na Alemanha, por exemplo, o “predador” dos proxenetas do dinheiro público não depende de injunções políticas e de disputas acerca de quem vai investigar... Lá, cada um sabe o seu lugar na cadeia alimentar no combate ao ecossistema do crime...!
Comecei com Sebastian Brant e com ele termino, paradoxalmente com o que ele diz no início de seu best-seller A Nau dos Insensatos, que me parece relevante para que passemos a olhar de outro modo “A PEC da Insensatez”:
“Que seja de utilidade e sirva de salutar ensinamento, de estimulo à conquista da sabedoria, juízo e bons costumes, assim como à emenda e punição da insensatez, cegueira, desacerto e inépcia dos homens e mulheres de todas as condições.”
Para quem não sabe, lembro. A Nau dos Insensatos é uma alegoria que descreve o mundo e seus habitantes como uma nau, cujos passageiros nauseabundos não sabem e nem se importam para onde estão indo. Vejam: eles não se importam! Na verdade, a Nau dos Insensatos (Das Narrenschiff) foi o primeiro best-seller da história, fora a Bíblia. Escrito em 1494 por Sebastian Brant, é um relato ácido da sociedade de então. Cada um dos 112 capítulos tem um endereço. Fala das falácias da Justiça, das injustiças da Igreja, a patifaria, os maus costumes, a vulgaridade dos nobres... Brant era formado em Direito. Sabia das vicissitudes das leis. E do “sistema”. Dividido em 112 capítulos curtos, cada qual dedicado a um tipo de louco ou insensato, o livro proporciona uma leitura provocadora e divertida.
Pois olhando a PEC 37, que visa a detonar/implodir o poder investigatório do Ministério Público, o único livro ao qual posso me remeter é a Nau dos Insensatos. É realmente espantoso que essa PEC navegue por aí. É uma insensatez.
Não iria escrever sobre esse assunto. Tenho um livro sobre isso, escrito em parceria com Luciano Feldens (Crime e Constituição, Ed. Forense), lá pelos idos de 2003-4, que chegou a sua terceira edição. Há decisões do STF. E do STJ. Há boa doutrina também. De todo modo, diante do quase-silêncio da comunidade jurídica sobre o perigoso avanço da PEC da Insensatez, tive que voltar ao assunto. E o faço agora. Na forma da Constituição.
O Brasil e a impunidade. Paraíso do proxenetismo com o dinheiro público.
O Brasil sempre foi o paraíso da impunidade. O sistema de estamento, já denunciado por Raymundo Faoro — e que aqui não me canso de replicar — ainda representa forte obstáculo à aplicação do princípio da igualdade. Não por menos aqui impera o foro privilegiado (recuso-me a usar o eufemístico “foro por prerrogativa de função”), pois materialmente, haja vista o sistema estamental, a elite termina por se imunizar pela baixa persecução criminal nas esferas superiores da jurisdição criminal. Não por menos, temos a triste prática de quedar antes a impunidade dos malfeitos no próprio STF. Preciso lembrar que na nossa Corte Suprema, até hoje, passados mais de 200 anos, não há caso de condenação que tenha aplicado, efetivamente, pena privativa de liberdade? Acho que não. Enquanto isso, há 240.642 presos por crimes contra o patrimônio. A realidade é inescondível: fala por si. La ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos (desculpem-me pela repetição da frase do De La Torre Rangel).
Contudo, de poucos anos para cá se nota uma mudança de paradigma. Pela primeira vez na história, passamos a ver pessoas do alto escalão político e econômico investigadas e detidas (o próprio Mensalão parece um bom exemplo). Também rapidamente foi elaborada súmula vinculante para regulamentar o uso de algemas, o que, coincidentemente, jamais havia motivado tamanha preocupação de nossa cúpula judiciária. Bom sinal. Condenações, porém, ainda são parcas.
De outro tanto, já de há muito o STF vem dizendo que o poder de investigar do Ministério Público é legítimo, portanto, constitucional. E, vejam a “surpresa”: em nenhum dos tantos julgamentos que tratavam do poder investigatório do MP, havia acusados pertencentes ao andar de baixo... Por que será?
E surge a PEC 37: o Brasil contra o resto do mundo.
Mas, a nave vai. Agora surge a proposta de Emenda Constitucional 37/2011, visando a vedar a apuração pelo Ministério Público das infrações penais. Numa navegação (ups, quero dizer, tramitação) recorde, está prestes a ser apreciada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Em um momento de virada paradigmática, de início do fim da impunidade de pessoas próximas ao poder, nada mais inoportuno que a PEC 37/2011, que aqui denomino de a PEC da Insensatez.
Sigo. É evidente que o poder investigatório do Ministério Público deve ser controlado (no sentido da regulação). Até as pedras (que não estudaram) sabem disso. Assim como é evidente que a atividade policial deve ser controlada. Aliás, a CF diz que o MP controlará a atividade policial... Não vi nenhuma PEC preocupada com isso. É também evidente que a atividade judiciária deve ser controlada. Em qualquer tombadilho se diz isso. Afinal, os juízes decidem praticamente como querem. O STJ um dia decide de uma maneira; dias depois, decide de outro modo; dias depois, volta a decidir como no início. Basta ver o modo como o STJ interpreta o prazo para escutas telefônicas...
Ou seja, é necessário que se coloque freios nas diversas atividades investigatórias-decisórias. Elementar: tudo o que é invasivo deve ser controlado, para não virar autoritarismo. No específico da PEC da Insensatez, seu mentor pretende colocar a atividade investigatória como exclusiva (ou privativa) para a polícia. Esquece sua Excelência que nenhum país — democrático — do mundo faz isso. Mas terrae brasilis tem que dar esse passo em direção ao fundo do poço. Atenção, Deputados: o Ministério Público é condutor da investigação criminal na Alemanha, desde 1975, Portugal, desde 1988, na Itália, desde 1989. Nem vou falar dos Estados Unidos da América. E tampouco da Espanha, em que as discussões se encaminham para além do poder investigatório. Pergunto: isso é pouco?
Trata-se de uma PEC pequeno-corporativa. Estou sendo duro na apreciação pela simples razão de que todos os argumentos técnicos — mas todos, mesmo — já foram utilizados em várias frentes. Adianta trazer argumentos de direito comparado? Adianta citar a Suprema Corte? Parece que não! Adianta dizer que na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado, Decreto 5.015, de 12 de março de 2004, cujo objetivo consiste em promover a cooperação para prevenir e combater mais eficazmente a criminalidade organizada transnacional, consta, no artigo 19, que os órgão mistos de investigação devem ser mistos, portanto, não exclusivamente policiais? Adianta dizer que o modelo investigatório a cargo do Ministério Público é também adotado pelo Tribunal Penal Internacional, conforme artigo 15º do Estatuto de Roma, de 1998, ratificado internamente pelo Decreto 2/2002, não se podendo criar, no Brasil, modelo dissonante do praticado na Corte Internacional? Não. Parece que tudo isso cai no vazio.
Os argumentos não são meus. São do STF. Do STJ. Do Direito Internacional. Dos Tratados que o Brasil firmou. Mas a PEC está avançando Congresso adentro. Navegando... Ora, quando a questão foge dos mínimos padrões de racionalidade, a questão assume contornos ideológicos. Políticos. Qual é a doutrina processual-penal ou constitucional abalizada que sustenta a PEC 37? Vejamos alguns detalhes que mostram a “fundamentação” da aludida PEC.
A “fundamentação” da Emenda, o Inquérito revitalizado e os pés de Curupira da PEC 37.
Meu caros leitores. Li as razões da PEC 37/2011 (Meninos, eu vi!!!). Uma lástima técnica. A começar que transcreve trechos de um livro desconhecido, fruto de publicação individual do seu autor e que sequer é vendido em livrarias. Trata-se de um “livro secreto”! Claro que isso é um mero detalhe. Não muda nada. A proposta afirma que a investigação criminal visa “a completa (sic) elucidação dos fatos, com a colheita de todos os elementos e indícios necessários à realização da justiça”. Alega que em razão de “muitas provas (sic) serem colhidas nessa fase, compete a profissionais habilitados e investidos para o feito (sic)”.
Ora, ora (e ora). Falar em “provas”, assim, desse modo, parece-me temerário. Ademais, a alegação de necessidade de profissionais habilitados para colher os indícios (provas?) não é pertinente para afastar de maneira absoluta o Ministério Público de qualquer investigação, mesmo em situações em que já ocorre de maneira supletiva. Alegou também que a falta de regras claras definindo a atuação dos órgãos de segurança pública tem causado problemas ao processo jurídico no Brasil. É? Que problemas são esses? E o que representa “vários processos” para justificar uma Emenda Constitucional? Constituição é coisa séria. Ou, pelo menos em um Estado Democrático de Direito, deve ser.
A legitimidade social se justifica quando nasce, no seio da sociedade, o reclamo, o desejo de mudar o Estatuto Fundamental. Embora nossa história seja repleta de casuísmos nada republicanos (como a Lei 8.985, de 7 de fevereiro de 1995, que anistiou políticos que cometeram crimes eleitorais), precisamos dar um basta. Assim, modificar a Constituição implica, acima de tudo, o uso racional do poder de legislar. Necessita haver uma base fática e social que justifique a proposta. Além de uma prognose que se revele positiva quanto ao seu impacto no meio jurídico e, consequentemente, social. Senão, vira puro exercício de arbítrio ou, mais grave, desvio de finalidade.
O Brasil, ao contrário do que enuncia a proposta, possui um modelo bastante autoritário e dependente do Executivo, na investigação criminal, sintomático de nosso sistema estamental. Significa dizer o quê? Ao contrário da ideia generalizada de destaque que têm as autoridades judiciárias e do Ministério Público na prática criminal, reside na polícia um poder muito maior, pois ela é quem diz, no dia-a-dia, na formalização ou não do flagrante, o que será ou não objeto de apreciação pelo promotor e pelo magistrado. Isso é óbvio. Isso pode ser lido até mesmo em qualquer Manual de direito processual penal simplificado... Há uma filtragem ainda durante a fase policial. Uma seletividade arbitrária. Isso prejudica a Democracia, uma vez que as autoridades policiais não são funcionalmente independentes, isto é, são removíveis e exoneráveis de suas funções por atos ex-officio do chefe do respectivo Executivo. Sem esse pressuposto, não se permite uma investigação profunda e sem pontos-cegos.
Esse modelo retrógrado, burocrático e falho do inquérito policial não possui similares nos sistemas processuais penais modernos. A PEC deveria enfrentar o problema do Inquérito e não reforçá-lo. A polícia deveria lutar para acabar com o IP. Mas, suspeito, o IP ainda subsiste porque serve à razão instrumental, como meio de controle do exercício do poder de punir ou não. E não esqueçamos: essa seletividade é inexoravelmente arbitrária. Por isso tudo, é possível dizer que a PEC tem pés de Curupira. Se aprovada, deixaria a marca retrógrado no chão de nosso ordenamento. Seria um ode à impunidade. E isso não podemos permitir.
Sempre defendi a regulamentação da atividade investigatória. Sou insuspeito em relação à defesa das prerrogativas dos acusados. Quando o STF julgou alguns dos processos em que estava em jogo essa prerrogativa do MP, cheguei a sustentar que o STF fizesse um “Apelo ao Legislador” (Appellentscheidung), isto é, in casu, dando um prazo para o parlamento regulamentar a matéria. Seria a saída técnica para o problema. Mas a regulamentação, obviamente — e até os pedregulhos sabem disso — deveria respeitar os vetores mínimos já reconhecidos pela Suprema Corte e constantes na Constituição. Por isso, penso que, mesmo que a PEC da Insensatez seja aprovada, esta não resistirá a um exame aprofundado de sua constitucionalidade. Sim, ela é inconstitucional.
O Ministério Público afastado da investigação?
E não adianta dizer que o Ministério Público terá o poder subsidiário de investigação (ou complementação de diligências...). A PEC é muito clara quando retira o MP da cena investigatória. O que quero dizer é que não devemos brincar de fazer leis ou emendas constitucionais. A democracia representativa é algo muito sério para ficar refém de “um fazer legislativo de conveniência” (para usar uma expressão de Dworkin). Se queremos, de fato, enfrentar o problema da impunidade, etc., vamos tratar isso sem corporativismos e sem retaliações. É evidente que a Constituição estabelece que a polícia deve investigar; mas ela não pode ter o monopólio da investigação, como quer a PEC. Quem, por exemplo, investigará a Polícia?
Mais: o Ministério Público tem a prerrogativa de instaurar inquéritos civis. Por óbvio que, no curso das investigações, as áreas de atuação se confundem. Pensemos no caso da investigação das hipóteses de corrupção, examinadas, em princípio, como casos de improbidade administrativa. O promotor/procurador da República poderia investigar a improbidade, mas não o crime (sendo que o fato, no mais das vezes, é rigorosamente o mesmo)? Teria de requisitar um inquérito policial para “esquentar” a sua investigação? Ou, nessas hipóteses em que se confundem a improbidade e o crime deveria sustar sua investigação e aguardar pela autoridade policial, sob pena de invalidade? Uau! Ou ainda, na medida em que o IP é peça dispensável — e parece que nisso a PEC não pode mexer — uma vez que não se pode impedir o Ministério Público de fazer a denúncia diretamente (independentemente do IP) quando já contar com elementos suficientes para justificar a ação penal, qual será o papel da PEC? Vai ter outra PEC na sequência?
Precisamos falar sobre a PEC 37.
Parafraseando o polêmico livro Precisamos falar sobre o Kevin, em que o menino psicopata promove uma matança no colégio onde estuda, digo que “precisamos falar sobre essa PEC”. No livro, a mãe se deu conta tardiamente de que “precisava falar sobre o Kevin”. Aqui, ainda dá tempo. Necessitamos falar sobre isso. Um monte de gente precisa. Do ministro da Justiça ao gerente de supermercado. A discussão interessa a todos. Também proponho que nos reunamos para discutir — pra valer — a regulamentação do controle externo da atividade policial, que parece ter prevalência nesse tipo de discussão; reunamo-nos para discutir a forma pela qual o MP pode investigar, com a obediência aos ditames processuais-constitucionais; reunamo-nos para discutir melhores formas de fazer funcionar o Poder Judiciário, buscando efetividades qualitativas; reunamo-nos para alterar a legislação que trata da criminalidade do colarinho branco... Reunamo-nos para fazer alterações no CPP de forma a que o sistema processual-criminal não reproduza as velhas fórmulas de perseguição às camadas pobres da população. Vamos discutir, finalmente, os modos de enfrentamento dos crimes cometidos pelo andar de cima. Por que é tão difícil pegar os grandes corruptos? Seria porque a polícia não possui o monopólio da investigação? Com a aprovação da PEC 37, isso mudará?
Tudo isso é urgente. O que não é crível é que o parlamento queira, antes de discutir todos esses grandes temas, apontar suas baterias para enfraquecer justamente o titular da ação penal. Se o nível de impunidade é muito grande, não seria melhor fortalecer o titular da ação penal, ao invés de enfraquecê-lo, fragilizá-lo? Os números de combate à criminalidade não são nada bons. A polícia investiga menos de 3% dos homicídios... E a culpa disso seria o poder investigatório a cargo do Ministério Público? Mas o Ministério Público nem investiga homicídios... Falemos sério: mal ou bem, de quem esteve à frente do desbaratamento dos grandes escândalos da República pós-1988? Não foi o MP? Ele fez ou faz pouco? Não sei. O que sei é que não podemos atirar fora a água e o bebê juntos. Uma pergunta: não daria para trabalhar juntos? Não era (é) essa a ideia constante na CF/88?
O Ministério Público pode ter cometido equívocos nestes 23 anos. Pode ter cometido excessos. Se assim ocorreu, foi porque não regulamentamos a investigação. O Congresso não o fez. E também porque, verdade seja dita, o MP até hoje tem dificuldade para entrar nas delegacias de polícia. O Controle Externo da Atividade Policial é um simulacro. Uma ficção. Não seria hora de fazer uma regulamentação efetiva nesse setor?
Não podemos nos esquecer dos avanços que fizemos nestes anos. O CNJ tem papel importante na redução da corrupção no Judiciário, no nepotismo, etc. O CNMP tem tido papel relevante, não somente no combate dos mesmos problemas do Judiciário, mas também na tentativa de regulamentar a atividade do MP no tocante à investigação e no tocante ao controle externo da atividade policial. Claro que isso não tem funcionado a contento. Mas houve avanços. O que devemos fazer é aprofundar os mecanismos de controle.
À guisa de conclusão ou “onde estão as autoridades”? Como ficará o ecossistema do crime?
Não é necessário sustentar, tecnicamente, que o MP tem legitimidade para investigar. Aliás, até as pedras sabem que o STF já vem decidindo desse modo. Também as pedras — as que estudaram e as que são néscias — sabem que no restante do mundo o MP tem o poder de investigar. Então, não é necessário entrar no mérito. Temos que ver as raízes políticas desse tipo de PEC.
Na verdade, uma PEC desse jaez deveria ter sido fulminada ab ovo. O Judiciário deveria ter vindo, de pronto, em defesa do Ministério Público. Na verdade, esperar-se-ia que a Defensoria Pública e as demais Procuradorias (e há várias, pois não?) viessem em defesa não somente do Ministério Público, mas da Constituição. A AMB, por exemplo. Dela se esperaria uma atitude propositiva. Esperar-se-ia também que os Tribunais de Constas se manifestassem a favor do poder investigatório do MP. E o ministro da Justiça de terrae brasilis? Ele concorda com essa PEC? Qual é o papel institucional do Ministério da Justiça? Para quê serve a Secretaria da Reforma do Judiciário? O que anda(ria) fazendo o Secretário da Reforma? O que estaria sendo reformado? Essa PEC não afeta a funcionamento da Justiça? Senhor Secretário da Reforma: o que nos diz sobre os efeitos colaterais dessa PEC? Isso não lhe diz respeito? E a doutrina processual penal? O que tem a dizer?
Preocupa-me, pois, não o Deputado e seus companheiros que votam a favor da PEC da Insensatez, mas o silêncio (até agora eloquente) dos demais. Como clamaria Luther King, onde estão os bons? O governo da Presidente Dilma concorda com a PEC?
O Ministério Público, paradoxalmente, paga, hoje, um preço maior pelos seus acertos do que pelos seus erros. Fez muitos inimigos. Só que a Instituição é paga para investigar, para denunciar, para acusar. E isso gera controvérsias. Mas exatamente por isso o constituinte deu as garantias ao MP. Aliás, examinando amiúde a Constituição, o poder investigatório do Ministério Público faz parte do núcleo essencial da Instituição. Retirando-o ou o mutilando, quebra-se a sua substância. Logo, a PEC está entrando numa área que se chama de “limites implícitos do poder de reforma”. Mas isso é uma discussão que parece que vai ser feita no STF. Se a nau chegar ao porto.
Democracia é controle. É accountability (prestação de contas). Retroceder não é nada democrático. Não podemos pegar um barco e não saber para onde estamos indo... Não. A nossa nau não pode ser a dos insensatos. Na verdade, se passar a PEC da Insensatez, esta será também a PEC dos Insensatos “estamentais”, porque beneficiará os mesmos de sempre, os pertencentes ao andar de cima... O incenso lhes “purificará”...! E não se trata de uma frase retórica. Vejamos os números, as estatísticas que tratam do combate aos crimes que colocam em xeque os objetivos da República, como sonegação de tributos, corrupção, lavagem de dinheiro, etc. Se esses números já são ruins com o Ministério Público investigando, o que dizer se dele retirar esse poder? Nossos vigaristas não são melhores ou piores que os vigaristas da Alemanha, Inglaterra, Holanda, Estados Unidos, etc. A diferença é que, na Alemanha, por exemplo, o “predador” dos proxenetas do dinheiro público não depende de injunções políticas e de disputas acerca de quem vai investigar... Lá, cada um sabe o seu lugar na cadeia alimentar no combate ao ecossistema do crime...!
Comecei com Sebastian Brant e com ele termino, paradoxalmente com o que ele diz no início de seu best-seller A Nau dos Insensatos, que me parece relevante para que passemos a olhar de outro modo “A PEC da Insensatez”:
“Que seja de utilidade e sirva de salutar ensinamento, de estimulo à conquista da sabedoria, juízo e bons costumes, assim como à emenda e punição da insensatez, cegueira, desacerto e inépcia dos homens e mulheres de todas as condições.”
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
Revista Consultor Jurídico, 21 de junho de 2012
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