Os magistrados que decidem questões de interesse coletivo e optam por salvaguardar os interesses da ICAR, ao invés do supraindividual, fazem-no em atenção à identidade entre o poder secular e o divino (por espírito de corpo), eis que se julgam integrantes de um panteão de deuses?
-=-=-=-=
Apelação Cível n. 2011.033610-5, de Itajaí
Relator: Des. Substituto Ricardo Roesler
APELAÇÃO
CÍVEL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ABORDAGEM POLICIAL. VÍTIMA QUE
TERIA
SIDO AGREDIDA POR POLICIAIS MILITARES, POR TER EM TESE RESISTIDO À
INVESTIDA TRUCULENTA E SEM JUSTIFICATIVA DOS SOLDADOS, QUE PRETENDIAM
INVADIR SUA RESIDÊNCIA, APARENTEMENTE SEM JUSTIFICATIVA. AGENTES QUE
ATUAVAM NO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL, EM PERSEGUIÇÃO À
MOTOCICLISTA QUE CAUSAVA TUMULTO NA VIA PÚBLICA. REAÇÃO AGRESSIVA DOS
AUTORES, QUE TENTAVAM IMPEDIR A AÇÃO POLICIAL. LEGÍTIMA DEFESA
VERIFICADA. INEXISTÊNCIA DE EXCESSOS OU ABUSO DA AUTORIDADE POLICIAL.
RECURSO DOS AUTORES DESPROVIDO.
Vistos,
relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2011.033610-5,
da comarca de Itajaí (Vara da F. Púb. E. Fisc. A. do Trab. e Reg. Púb.),
em que são apelantes Francisco Alves e outros, e apelado Estado de
Santa
Catarina:
A Segunda Câmara de Direito Público decidiu, por votação unânime, negar provimento ao recurso. Custas na forma da lei.
Participaram
do julgamento, realizado nesta data, os Exmos. Srs. Desembargadores
João Henrique Blasi, presidente com voto, e Rodrigo Collaço.
Florianópolis, 22 de maio de 2012.
Ricardo Roesler
Relator
RELATÓRIO
Francisco
Alves, Maria de Lurdes Borba Alves, Dionisio Alves, Soraia Cristina
Coelho Alves por si e representando Gabriel Coelho Alves, Ana Andreia
Coelho por si e representando Pedro Henrique Coelho da Silva, ajuizaram
ação de indenização por danos morais contra o Estado de Santa Catarina,
alegando, em suma, que no dia 8.7.2007, por volta das 9h30min, estavam
assistindo passeio comemorativo à festa de "São Cristóvão", no município
de Itajaí, quando um terceiro deixou sua motocicleta em sua
propriedade, fugindo para a casa vizinha. Contaram que nesse momento a
viatura da polícia (GRT) se aproximou da residência, tendo o primeiro
autor questionado a intenção do policial. Relataram que o policial deu
um soco no peito do primeiro autor, que caiu no chão, iniciando agressão
por meio de golpes,
ameaças e injeção de gás de pimenta em todos os familiares que vieram
socorrê-lo. Aduziram que o terceiro autor tentou ajudar seu pai, quando
foi segurado por um policial, que lhe deu uma "gravata", enquanto a
segunda autora foi atingida por "gás de pimenta", sendo posteriormente
conduzida para o hospital. Informaram que a quarta autora, que
presenciou as agressões cometidas pelos policiais, passou por um "mau
súbito", colocando em risco sua gravidez. Asseveraram que sofreram
agressões físicas e morais causadas pelos prepostos do réu, motivo pelo
qual fazem jus ao pagamento de uma indenização por danos morais, no
importe de R$ 200.000,00 para cada autor.
Citado,
o réu apresentou reposta, alegando que a guarnição da polícia
militar deparou-se com uma motocicleta Honda XR 2050, que circulava sem
placa, e com seu condutor fazendo malabarismos, colocando em risco os
populares que frequentavam a festividade de "São Cristóvão". Afirmou que
quando o motociclista avistou a polícia empreendeu fuga, dando início à
perseguição policial. Mencionou que o suspeito deixou sua motocicleta
na residência dos autores, motivo pelo qual os agentes do Estado
tentaram ingressar na residência a fim de apreender o veículo,
entretanto foram agredidos pelos moradores, que ofereceram resistência à
entrada dos policiais. Afirmou que um dos policiais teve um dente
quebrado devido a um cabeçada de um dos autores, os quais também
apedrejaram a viatura policial. Sustentou que os policiais agiram no
estrito cumprimento do dever legal, tanto que foi arquivado o termo
circunstanciado, sem ter sido instaurada ação penal. Mencionou que os
motociclistas estavam realizando manobras perigosas e
sem capacete, sendo dever da polícia controlar a situação. Teceu outras
considerações, postulando a improcedência dos pedidos (fls. 48-60).
Réplica às fls. 119-124.
Manifestação do Ministério Público à fl. 125.
Saneador irrecorrido de fl. 126, oportunidade em que foi deferida a produção da prova oral.
Realizada
audiência de instrução e julgamento, oportunidade em que foram
inquiridas quatro testemunhas arroladas pelos autores e duas pelo réu
(fls. 134-144), além daquelas inquiridas no ato de fls. 146-148.
Alegações finais às fls. 149-154 e 155-157.
O Ministério Público opinou pela improcedência do pedido (fls.
159-162).
Sobreveio sentença que julgou improcedente o pedido da inicial (fls. 163-167).
Inconformados, os autores recorreram, repisando os seus anteriores argumentos (fls. 171-183).
Contrarrazões às fls. 185-197.
A promotora de primeira grau não se manifestou, deixando a análise para o Ministério Público de segunda instância (fl. 198).
Lavrou
parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Sr. Dr. João
Fernando Borrelli, que opinou pelo provimento do recurso (fls. 204-212).
É o relatório.
VOTO
Trato
de recurso de apelação interposto pelos autores contra a sentença que
julgou improcedente o pedido formulado na ação de indenização por danos
morais ajuizada em face do Estado de Santa Catarina.
Alegaram,
para tanto, que há prova do excesso na
conduta dos policiais, que causaram lesões físicas e morais aos
autores. Mencionaram que existe nexo causal entre a conduta dos agentes e
o dano, diante da ação arbitrária praticada contra idoso, mulher
grávida e crianças, invocando o princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana. Sustentaram, ainda, que os policiais não agiram no
exercício regular de um direito, devendo ser aplicada a responsabilidade
objetiva, não podendo ser invocada a excludente de responsabilidade.
Em que pese os argumentos aventados pelos autores, entendo que o apelo não mereça prosperar.
No que se refere à responsabilidade do Estado, a Constituição da República, em seu art. 37, § 6º, dispõe que:
"As
pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado
prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus
agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de
regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".
Assim, a Constituição garantiu que os danos a terceiros causados por agentes públicos,
nessa qualidade, serão ressarcidos independentemente de culpa, bastando que se prove o nexo causal e o dano sofrido.
Restou
incontroverso nos autos que os agentes do réu entraram na residência
dos autores com o objetivo de apreender a motocicleta utilizada por um
cidadão para tumultuar a festa de "São Cristóvão" que se realizava na
rua Odílio Garcia, bairro Cordeiros, no Município de Itajaí. Logo, o
cerne da questão gira em torno do alegado excesso cometido pelos agentes
do Estado, praticado dentro da residência dos autores.
Cediço
que a atividade policial exige medidas que muitas vezes geram algum
desconforto e privações, ainda que momentâneos, naquele que é submetido à
averiguação. Também não se desconsidera o fato de que por vezes tais
ações constituam verdadeiro constrangimento ilegal quando a conduta da
autoridade policial se mostra desarazoada, desproporcional e abusiva.
Contudo,
tendo em vista que a principal função da polícia militar reside em
manter a ordem e segurança pública, algumas atitudes se mostram
necessárias no exercício desse mister. Havendo suspeita de atividade
ilícita, é dever da polícia tomar as medidas necessárias, tais como:
revista pessoal e do local, questionamentos, verificação de documentos,
condução do
suspeito até a Delegacia, dentre outras, a fim de apurar a realidade
dos fatos.
Denota-se
da narrativa da inicial, que no dia 8.7.2007, por volta das 9h30min um
terceiro deixou a motocicleta na residência dos autores. Diante disso,
policiais militares que perseguiam o suspeito adentraram à residência
dos autores, sem nenhuma explicação, e deram um soco no peito do autor
Francisco. Os demais autores saíram em defesa do autor Francisco
sofrendo, da mesma forma, ameaças e as agressões físicas: o autor
Dionísio foi imobilizado por um dos policiais que lhe deu uma "gravata",
enquanto a autora Maria de Lurdes foi atingida pelo "gás de pimenta"; e
os demais autores, inclusive a autora Soraia grávida de cinco meses,
sofreram abalo moral ao
presenciaram as agressões físicas cometida contra seus familiares.
O
réu, por seu turno, sustentou que, na realidade, a guarnição da polícia
militar perseguia um motociclista que circulava sem placa e realizava
manobras perigosas, colocando em risco a população que assistia ao
desfile. O réu mencionou que os policiais agiram no estrito cumprimento
do dever legal, pois em meio ao tumulto provocado adentraram à
residência dos autores para fazer a apreensão do motociclista, ocasião
em que foram agredidos fisicamente pelos autores, que apedrejaram a
viatura policial.
Analisando as
fotografias de fls. 73-83 e os registros de ocorrência de fls. 84-91 é
possível perceber que, no dia 8.7.2007, vários motociclistas agiam de
maneira imprudente na festa de São Cristóvão, ingerindo bebida
alcóolica, trafegando sem capacete, e fazendo manobras perigosas, o que
levou à atuação da polícia militar na localidade.
Do
conjunto probatório constante nos autos, ao que parece, os próprios
autores deram azo à confusão causada, pois depois do ingresso do
suspeito em sua residência, não permitiram que a polícia exercesse sua
função de apreender a motocicleta, conforme depoimento do policial
Luciano de Melo, que participou
do evento no dia dos fatos:
"que
no dia dos fatos estava na companhia dos soldados Fabiano e Mota; que
foram destacados para acompanhar uma passeata; que havia vários motos
fazendo manobras arriscadas, tais como empinando e fazendo zigue-zague;
que um dos motoqueiros, que estava conduzindo uma moto sem placas, quase
atropelou uns pedestres, sendo que foi dada ordem de parada para ele;
que o motoqueiro desobedeceu a ordem e quando estava na frente da
residência do primeiro requerente, a moto falhou; que para não ter sua
moto apreendida empurrou-a para dentro da casa, mais precisamente
para a garagem; que o o motociclista correu para dentro da residência;
que a moto foi deixada fora do cercado da casa; que tentou fazer a
apreensão da moto, contudo, os moradores da residência, ora requerentes
intervieram dizendo que os policiais não poderiam colocar as mãos nela,
já que ela estava dentro do imóvel; que os moradores começaram a
instigar as pessoas que estavam observando a passeata para vierem contra
a guarnição; que um dos autores, inclusive bateu com uma tábua na
viatura, vindo a causar danos e um outro agrediu o Soldado Fabiano, que
teve um dente quebrado que não sabe como Fabiano foi agredido; que a
viatura policial também foi apedrejada, sendo que a primeira pedra foi
lançada da parte superior da casa, que esta pedra quebrou o vidro
traseiro da viatura; que diante disso alguns outros motoqueiros
começaram a apedrejar os policiais e a viatura; que foi solicitado apoio
de outras guarnições; que com a chegada do apoio
e do canil, foi possível fazer a apreensão da motocicleta, a qual foi
levada até a Delegacia; que a motocicleta não chegou a ficar dentro do
cercado da casa, ficando no portão que dá acesso à garagem; que tal
portão estava aberto que no momento em que estava consultando o chassi
da moto, veio o primeiro requerente, bastante alterado e puxou pelo
ombro do Soldado Mota; que ele falou que os policiais não poderiam
apreender a moto porque ela não mais estava em via pública; que diante
desses fatos os outros autores se viraram contra os policiais no intuito
de puxar a moto para dentro do cercado; que não pediu autorização para
entrar na residência já que a moto não estava dentro da casa e sim
próximo ao portão; que não se recorda se o primeiro requerente foi
empurarado e caiu no chão; que o spray de pimenta foi utilizado contra
os autores, os quais pretendiam agredir a guarnição; que havia somente
três policiais, enquanto os moradores
e os transeuntes eram em um número bastante maior; que o spray de
pimenta foi utilizado como forma de escalonamento de força, para evitar o
uso de armas legais; que um tiro também foi dado, com munição não
letal; que o tiro foi dado para cima como forma de impedir que a
guarnição fosse encurralada pelas pessoas que estavam ali e que se
voltaram contra a polícia e para fazer cessar o apedrejamento; que os
autores também estavam querendo encurralar a polícia e instigavam para
que as outras pessoas fizessem isso [...] que havia mais de cem pessoas
em confronto com a polícia [...] que a perseguição ao motociclista não
foi possível porque a guarnição era composta de somente três policiais e
pelo fato de que ao chegarem na residência já foram recebidos de forma
acintosa; que não reconhece nenhum dos autores aqui presentes como o
agressor ao Soldado Fabiano; que o autor Dionísio todavia bateu com uma
tábua contra a viatura". (fls.
142-143).
No
mesmo sentido foram os relatos dos policiais Fabiano José Alves e
Fabiano Mota de Jesus, que participaram da abordagem, este último,
inclusive, vítima de cabeçada por um dos familiares dos autores (fls.
147-148).
As
testemunhas arroladas pelos autores foram inquiridas como informantes,
não possuindo força probatória, porquanto parentes ou amigos íntimos dos
autores.
O
único testemunho do testigo que prestou compromisso legal, não comprova
que os policiais agiram com excesso na conduta adotada, a saber:
"[...]
que os familiares, ora requerentes, foram atingidos por spray de
pimenta utilizado pelos policiais; que acredita que os policiais
utilizaram spray de pimenta porque estavam em menor número e ficaram com
medo de uma represália por parte dos requerentes; que todos os autores
foram atingidos pelo spray de pimenta; que o requerente Dionísio foi
segurado pelos policiais como forma de impedir que acudisse o primeiro
autor; que diante dos fatos a quarta requerente, a qual estava grávida,
passou mal; que sabe que a viatura da polícia
foi apedrejada, contudo as pedras não foram lançadas pelos autores;
[...] que não pode dizer se os autores agrediram os policiais, porém
observou um tumulto e empurrões entre os policias e os requerentes; que
os empurrões ocorreram após os policiais entrarem na residência e os
familiares, ora autores, terem ido acudir o primeiro demandante; [...]
que viu as manobras que o motociclista estava fazendo antes de deixar
sua moto na casa; que o motociclista estava fazendo manobras arriscadas,
tais como, empinando e fazendo zigue-zague; que salvo engano do
depoente, a moto estava sem placa; [...]". (fls. 137-138).
Como
se vê, do depoimento citado, o que motivou a ação dos policiais foi
justamente o comportamento do motociclista, que
imprudentemente fazia manobras perigosas, colocando em risco a vida dos
cidadãos que participavam da festividade. Constatou-se pela descrição
da testemunha que os autores, em atitude impensada, apresentaram
resistência ao ingresso dos policiais na residência, mesmo sabendo que o
objetivo era a captura do motociclista; tudo leva a crer que, além de
os autores impedirem a perseguição do motociclista, ainda foram tirar
satisfação com policiais a respeito da abordagem efetuada. O próprio
autor Francisco relatou em reportagem ao jornal local que "perdeu a
cabeça" no momento em que os policiais invadiram sua residência (fl.
43).
É cediço que: "a
casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou
desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação
judicial"(art. 5º, inc. XI, da Constituição). No caso, os policiais
estavam atuando em situação de flagrante, o que autorizava o ingresso na
residência dos autores.
Forçoso
concluir nesse aspecto, que os policiais, por serem somente três,
utilizaram o spray de pimenta e o tiro com munição não letal para conter
os ânimos, ou seja, usaram de força progressiva, justamente para cessar
a ação dos autores e populares, que perturbavam o poder-dever da
polícia.
Há
no mais, informação de que não houve abuso na abordagem policial, e o
disparo foi animado pelo tumulto ocorrido na ocasião (fato que não é
propriamente negado pelos autores e confirmado pelas testemunhas),
quando populares investiram contra os soldados.
Afinal,
ainda que se tratasse inicialmente de um grupo pequeno de pessoas -
considerando que há notícias do envolvimento de populares que se
voltaram contra os militares - não vislumbro outra atitude senão aquela
adotada pelos policiais. Ora, os agentes do Estado agiram como deveriam
agir, utilizaram spray de pimenta (meio moderado), mesmo estando
autorizados a usar outros meios coercitivos, se necessário
fosse, em meio à confusão causada. A diferença entre a conduta legal e o
excesso, reside justamente no limite da atuação policial até cessar a
ação do agressor.
Enfim,
o conjunto probatório não aponta elementos concretos a respeito dos
acontecimentos, não há prova bastante para reconhecer-se a conduta
arbitrária e violenta dos prepostos do réu.
Em todos os tempos associou-se a imagem do poder ao divino; ter poder sempre
significou pureza, alteridade, uma ligação direta com a divindade. Ainda que, com o tempo, a legitimidade tenha perdido a conexão imediata com o religioso, a distribuição de poder nunca deixou de ser objeto destinado por distinção; a autoridade, portanto, mantém sua elevação, pois se presume que seja, por assim dizer, melhor que
seus comandados, de algum modo superior. Dito de outro modo, ter poder,
investir-se das prerrogativas de autoridade mantém-se objeto de sacralização, ainda que as vias de eleição modernamente sejam, por exemplo, produto de deliberação democrática.
Faço
essa breve
observação porque ela possivelmente justifica que aqueles que detenham
poder sejam submetidos à expiação exemplar por suas falhas; o tratamento
punitivo haverá de ser inversamente proporcional à distinção. A
exposição de suas feridas sempre reclama a urgência e severidade
punitiva.
Bem a propósito, algumas das instituições que representam o poder ou
sua autoridade têm frequentemente expostas suas mazelas e submetem-se
cotidianamente ao juízo do senso comum. Não é preciso dizer muito sobre a
polícia, sem dúvida uma das instituições mais julgadas pelos seus
desvios, e condenada de modo implacável. Aliás
hoje, infelizmente, essa instituição parece, em muito de seus setores,
ter subvertido a ordem inata que lhe foi conferida, e sujeitar-se a um
assombroso desprestígio; desfocada de sua imagem natural, a instituição,
composta via de regra por uma maioria responsável, ética e proba, está
muitas vezes associada à agressividade, ao arbítrio, à corrupção de
alguns poucos que a denigrem.
Essa
perspectiva é tão espantosa quanto real, e o caso dos autos é
emblemático: a resistência e desacato à abordagem dos policiais,
justificasse pela impressão truculenta dessa profissão.
Houve tempos, num passado recente, que uma abordagem dessa
natureza causaria calafrios, e talvez justificasse alguma resistência.
Falo de tempos sombrios e cínicos, em que a autoridade policial
transitava por polaridades conflitantes, contraditórias, atuando tanto
em tese na proteção social quanto na repressão, sob um mesmo discurso;
quiçá por isso pense o procurador-geral de justiça que "patente
desproporcionalidade entre a ação policial e o risco efetivo à
integridade física dos agentes, ou mesmo mera resistência, que o pequeno
grupo familiar, composto por idosos, gestante e crianças (frise-se!),
possa (porque não comprovado esse aludido risco ou ameaça) ter
apresentado" (fls. 208-209).
Felizmente
são tempos bem diferentes, e o cenário, ao que se percebe, é de simples
insubordinação, em que se tenta pôr à prova a autoridade policial a
partir num desafio quase medieval, e injustificado.
Nem
por isso se justifica não se ir além, e observar com atenção a
tessitura social contemporânea, para identificar e talvez entender parte
desses fenômenos que se materializam pela violência banal. E há, de
todo modo, algum receio justificado em determinados ambientes sociais
quanto à atuação de instituições como a polícia,
incessantemente denunciados na mídia. Mas a generalidade é sempre
perniciosa, e particularmente devastadora quando usada como
justificativa comum, para qualquer ato, em qualquer circunstância. Eis
porque é indispensável contextualizar cada situação, e não se deixar
levar por alguma presunção abstrata para justificar a violência como
exercício de defesa de um particular juízo de desconfiança.
Vivemos
ainda tempos difíceis, de indisfarçada exclusão de muitos, de feridas
sociais que tendem a se revelar em atos endêmicos - por vezes bastante
particulares - de violência, descoordenados e sobretudo sem direção.
Slavoj Zizek, comentando o recente episódio de violência ocorrido em
Londres, em que moradores de alguns guetos
investiram contra o comércio local, põe em discussão a crise ideológica
daquela classe pouco favorecida: talvez como forma de protestar contra a
provocação do capitalismo liberal, que ostenta vitrines para todos os
tipos de consumidores, mas não se importa, por outro lado, em determinar
de que forma isso pode se tornar acessível, aquelas pessoas, separadas
da proposta capitalista por distância muito maior das que as distancia
dos objetos expostos nas vitrines, resolveram simplesmente depredá-las
(Saqueadores, uni-vos!, Revista Cult, n.° 161, set.2011, p. 20-21).
O
que o filósofo esloveno propõe é estudar-se o tipo de resposta que se
tem dado a um ou outro estímulo - o simples exercício da força, violento
e cru, sem
forma e coordenação. Um protesto, portanto, sem qualquer valor (ainda
que seja sintomático), porque parte de uma negatividade abstrata, numa leitura hegeliana. O que, afinal, pretende-se com postura dessa natureza?
Simbolicamente
toda manifestação procura evidenciar uma fratura social, um desarranjo
institucional. Mas não creio que seja o caso destes autos. Aqui, de modo
um tanto torto, foi-se buscar uma justificativa sem evidência de
ressonância naquele pequeno corpo social. O caso em análise,
lamentavelmente, é essencialmente animado por uma negatividade abstrata,
sem causa (ou ao menos de causa velada), em que onde o discurso de
defesa revelou-se por simples desrespeito.
Ao
que consta dos autos, os policiais no exercício de sua função - pois
estavam perseguindo o motociclista que acabara de cometer ato ilícito -,
tentaram ingressar na residência dos autores. Na sequência, os autores
apresentaram resistência à investida dos policiais, pois supostamente
não sabia o porquê da abordagem - apesar de momentos terem presenciado
as manobras do motociclista que colocava em risco a vida dos populares.
Pareceu legítimo aos policiais o uso da força progressiva, que para além
da simples insatisfação revelou-se no confronto corporal com os
policiais.
Não é só. Sua insurreição segue além do singelo juízo de
desconfiança em face da polícia local (que, diga-se de passagem, não
passou de um juízo inaugural, sem provas), procurando legitimar seu
discurso a partir de notícias de que a polícia foi na ocasião
truculenta, imprimindo agressão contra idoso, mulher grávida e crianças.
Nada mais frágil. Ao invés de se perguntar porque os policiais
utilizaram spray de pimenta contra os autores, há que se questionar por
qual razão estes resistiram a atuação justa da polícia e causaram
mencionado tumulto.
Oportuno
destacar que, não se pretende aqui justificar ação desmedida de
policiais, o uso da força, contra cidadãos comuns. Contudo, se de fato
havia algum receio,
diante da confusão que se formara pelos próprios autores na tentativa
de intimidar os policiais, deveriam de forma civilizada permitir o
flagrante, o que certamente traria um defescho diferente. Ninguém o fez;
preferiram uns e outros investir contra os agentes, embora ninguém
soubesse ao certo a razão pela qual os policiais perseguissem o
suspeito.
Não há dúvida: qualquer agente público, pelo múnus público que exerce - sempre substrato de alguma autoridade -
deve ser exemplarmente repreendido pelos excessos que cometer. Não é,
contudo, com o exercício arbitrário da força e sobretudo com a violência
vazia que se legitima alguma insatisfação. Nada, absolutamente,
justifica a solução simples a partir de
violência, que quando muito externa apenas um indesejável instinto de
auto-afirmação.
Nesse
contexto, levando em conta o entrechoque de provas, que bem por isso
revela-se inconclusiva a acusação formalizada contra os agentes do
Estado, não há como prover o pedido dos autores.
Nego, assim, provimento ao apelo, para manter inalterada a sentença do magistrado Rodolfo Cezar Ribeiro da Silva Tridapalli.
É como voto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário