Pedro Serrano
Existem meandros da administração pública brasileira que, embora
relevantes ao extremo para a cidadania, passam ao largo da atenção
pública.
É nossa melhor tradição casa grande-senzala no âmbito da
administração pública. Questões da gestão da maior parte do erário são
tratados como assuntos destinados apenas a iniciados, “técnicos
independentes”, mentes ilustradas conformadoras de nossa contemporânea
aristocracia, que passa longe da gente “diferenciada” de nossas ruas.
Decisões que afetam o bolso de todos são tomadas em reuniões fechadas
nas salas da alta burocracia técnica de Estado, insufladas por
sugestões de representantes também técnicos de grandes empreendedores
privados, interessados diretos nos assuntos em pauta. Mecanismos de
corrupção sistêmica são urdidos e vêm embalados – ao serem apresentados a
público – por conceitos inusuais no cotidiano da linguagem comum.
Ares de sofisticação técnica e jurídica são emprestados aos mais
comezinhos processos de mau trato com o interesse público. O velho
cambalacho vem agora sob as alcunhas de “flexibilização procedimental” e
“administração gerencial”.
Como já tive oportunidade de dizer em artigo já publicado nesta
coluna, tal categoria de perversões encontra seu início no governo de
Fernando Henrique Cardoso, foi mantida no governo Lula e agora vem
ampliada no governo Dilma Rousseff.
O governo Dilma tem mantido conquistas sociais únicas em nossa
história estabelecidas na era Lula, recuou minimamente em significativos
avanços nas relações exteriores de Lula, mas tem se diferenciado de
Lula no âmbito de políticas públicas no qual, a nosso ver, o governo
Lula mais deixou a desejar. E esta diferenciação, pasmem, tem sido para
ainda pior.
Se Lula não teve a coragem cívica de alterar o regime de prestação de
serviços públicos e o regime de contratações públicas, privilegiador
dos interesses privados em detrimento dos interesses coletivos,
estabelecido no governo FHC, Dilma ampliou estes mecanismos nefastos de
corrupção sistêmica.
Se de um lado Dilma se põe como presidenta moralizadora pela demissão
de ministros, de outro cria normas gerais que entregam à iniciativa
privada a real gestão de contratos públicos. Abre mão da soberania
estatal no âmbito das referidas contratações, inclusive criando
mecanismos de fraudes sistêmicas aos valores isonômicos e éticos que
deveriam nortear as licitações públicas.
Tal conduta já se observou no uso acrítico e na manutenção do regime
de concessões públicas criado por FHC, que “flexibilizou” as
prerrogativas do Poder Concedente, ou seja do Estado, no âmbito destas
contratações, submetendo o interesse público ao jugo das decisões
empresariais privadas, nas novas concessões entabuladas pelo governo
federal desde o início do mandato Dilma.
Copa do Mundo e Jogos Olímpicos
Mas tal conduta se exacerba na medida em que se criou e agora
inicia-se a aplicação de aspectos profundamente antiéticos e de
constitucionalidade duvidosa da chamada Lei do RDC, ou seja do Regime
Diferenciado de Contratações estabelecido para contratos relativos a
obras e serviços para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.
Inegável que a maior parte dos dispositivos da aludida lei são
positivos, implicam ganho de tempo e eficiência para a realização de
obras e serviços essenciais para a realização dos grandes eventos.
Ocorre que no que tange a grandes obras e serviços de engenharia, ou
seja em parte significativa das despesas que se realizarão para tais
eventos, o governo tratou de estabelecer um regime de contratação
desconhecido do grande público, mas que já vinha em parte sendo usado
pela Petrobras há alguns anos, qual seja o da chamada “contratação
integrada”.
Tal modelo de contratação implica deixar a cargo do contratado o
chamado projeto básico do empreendimento, ou seja as decisões mais
gerais quanto a método construtivo, materiais, planos de ataque da obra
etc.,restando à administração apenas a realização de um sintético
anteprojeto de engenharia.
Referido aspecto repercute em dois problemas graves no âmbito da
isonomia e da moralidade pública: de um lado subtrai do órgão licitante a
condição de realizar o cotejamento de propostas em disputa de forma
objetiva, pela ausência de critérios uniformes de julgamento,
possibilitando amplas formas de manipulação subjetiva do processo de
escolha do contratante privado; de outro entrega à raposa o cuidado das
galinhas, entrega a dimensão da obra como politica pública ao
particular, soterrando mecanismos de controle estatal inerentes à
soberania.
O aspecto da impossibilidade de cotejamento objetivo de propostas e
sua inconstitucionalidade estão, no âmbito jurídico da questão,
brilhantemente expostos na obra Regime Diferenciado de Contratações Públicas,
coordenada por Marcio Cammarosano, Augusto Dal Pozzo e Rafael Valim.
Aqui me atenho a dimensão política e ética de tal perversão legislativa.
O desvio de recursos que certamente se originará em tal forma de proceder é evidente.
Mais que isso, os dispositivos legais em questão estabelecem ainda
como forma de julgamento a técnica e preço, forma de julgar
inapelavelmente subjetiva, já que as notas atribuídas nos julgamentos
técnicos necessariamente comportam variações exclusivamente subjetivas
de juízo. Há sempre uma inafastável margem de avaliação subjetiva no
interior da qual as manipulações de resultados são realizadas.
No mercado de obras públicas é cediço que edital com julgamento técnico é edital dirigido a alguma empresa amiga.
Entregar este âmbito amplíssimo de definições e escolhas construtivas
ao empreendedor privado implica evidente política de manipulação de
licitações, escolhas direcionadas e posterior prejuízo aos cofres
públicos por ausência de possibilidade de controle publico na execução
destes contratos. E, diga-se, sem qualquer ganho de agilidade na
licitação, contratação e execução do objeto contratado.
Tenho pelo governo Dilma, como tinha pelo governo Lula, a mais
intensa simpatia. Acredito que no balanço geral de políticas públicas
estabelecidas por tais governos a cidadania brasileira saiu vitoriosa,
mas não há como deixar sem crítica esta relevantíssima dimensão da
gestão administrativa do Estado.
A crítica possível à dimensão ética de tais medidas não se estriba em
absurdos jornalísticos ou falsas impressões ocasionadas por matérias
superficiais e direcionadas politicamente. Trata-se de avaliação sincera
e objetiva de um tema que convivi por 25 anos de exercício profissional
e vida acadêmica.
Creio como inaceitáveis tais medidas em especial quando adotadas por
um governo democrático de esquerda. Só posso atribuir sua produção ao
mau comportamento de assessorias “técnicas” e à influência pouco ética
de interesses privados na burocracia pública.
O caso adquire contornos mais graves quando se anuncia a intenção
governamental de transplantar tal forma escandalosa de contratação para
os contratos de rotina. Quer-se transformar o mecanismo de corrupção
operacional e ocasional de obras de grandes eventos em corrupção
sistêmica permanente no âmbito das contratações públicas. É hora do
governo Dilma efetivamente retomar a bandeira ética que nós de esquerda
deixamos escapar das mãos por erros históricos.
Ter a coragem de revisar o todo da legislação de contratações
publicas, relativa tanto às obras quanto aos serviços públicos, voltar
corajosamente atrás na decisão de aplicar a contratação integrada às
licitações de aeroportos e outras que o governo entabula.
Tenho ciência que o todo da cidadania sequer suspeita deste tipo de
malfeito. Creio mesmo que a alta esfera de governo “assinou” sem
consciência real dos efeitos de tais medidas. Mas a perversão existe e
está para ser aplicada em obras relevantes e dispendiosas e ainda ameaça
se tornar permanente como método de administração. Há que se impedir
sua realização, é tarefa do governo e de todos nós.
Fonte: CARTACAPITAL
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